como diria LFV, do baú...
Cotidiano
Abriu os olhos porque não conseguiu dormir. Tinha passado a noite inteira
sentado na poltrona olhando para fora do apartamento, tomando gim puro e
com um maço inteiro de cigarros. Perto das seis da manhã resolveu fechar
os olhos para ver se conseguia se enganar. Nada.
Olhou para o lado e viu o despertador que marcava 6 e 10 da manhã. O tempo não
passava. A cinza do seu cigarro era a única forma de
percebe-lo. A cinza caiu no chão, ele não se importou e
deixou cair a guimba do cigarro.
Levantou-se pela primeira vez da poltrona desde a noite anterior e foi para
a janela. O sol ainda não tinha nascido mas estava para apontar. O céu
começava a acinzentar-se, puxava para o azul. Hoje será mais
um daqueles dias quentes, pensou ele. Não gostava de sol. Principalmente em
dias de semana.
Olhou de volta para a poltrona e viu a garrafa quase no fim. Percebeu um
pouco o amargo na boca. Mas não estava embriagado. Era o seu estado normal.
Só assim ele conseguia agüentar o mundo. Foi em direção ao banheiro e se olhou
no espelho, tinha os olhos fundos e a barba por fazer. Tomou uma
ducha rápida, pegou a espuma de barbear e colocou no rosto. Não podia
trabalhar barbado. Trocou de lâmina, começou a tirar a espuma, primeiro na
bochecha direita, de cima para baixo e depois o inverso. Percebeu um pequeno
filete de sangue que escorria, e tinha outro na garganta, então começou a fazer a
barba com mais violência. E logo apareceram outros filetes de sangue e
cortou o dedo ao tirar os cabelos do aparelho, abaixou o rosto para lavá-lo, e
olhou-se novamente no espelho e viu um rosto ensangüentado. Deu um sorriso e
saiu do banheiro.
Foi para o quarto. Abriu o guarda-roupa para escolher qual roupa iria usar.
Pegou uma calça preta e jogou em cima da cama intocada. Sentou e a vestiu.
Foi para a cômoda, abriu a primeira gaveta da parte de cima, viu o primeiro
raio do sol que passou pela janela e veio refletir no cano prateado que saía da
gaveta. Cabo de ferro revestido com uma mistura de couro e plástico duro.
Quinze balas no pente e uma na agulha.
Tirou a trava, puxou a agulha, colocou uma bala, fechou. Acionou o cão e
mirou longe da janela, apontando para todas as janelas dos
apartamentos que ele avistava, de um para o outro. O calor começava
a fazer efeito e ele começava a suar, apontava para as janelas,
cortinas vinhos, marrons, ar condicionado funcionando, janela escancarada,
ventilador ligado. Aparece um menino em uma janela ao alto. Ele aponta
para a criança, ela arregala os olhos assustados, ele fica imóvel,
percebe o medo de dentro do garoto, gosta do medo do garoto, começa a
esboçar um sorriso de satisfação. O garoto alivia-se. Relaxa um pouco
e também finge sorrir aos poucos. Os dois sorrisos crescem ao pouco
até o garoto se sentir a vontade. Os olhos dele continuam sérios, apenas
com um sorriso na boca. O garoto continua sorrindo, agora nervosamente,
até que pára. Ele puxa o gatilho.
Coloca o coldre preso no cinto, escolhe uma camisa cinza de botões cinza,
e um sapato baixo marrom, pega a carteira de dinheiro e o óculos escuro.
Caminha lentamente para a porta de saída da casa.
Fecha a porta da sala e se encaminha para o elevador, que demora. Ele saca a
arma e fica com ela engatilhada na mão, apontando para baixo. A camisa para
fora da calça dava a impressão de relaxamento que ele tanto desejava. O
elevador chega. Um casal de namorados em torno de 17 anos, que iam para
o colégio. Ele abre a porta e os dois param de se beijar. Entra e dá as costas para
os dois, olhando somente para o controle do elevador. Os dois não reparam na
mão dele. Ele começa a ouvir cochichos e risos baixos. Antes de chegar na
garagem ele aperta o botão para parar o elevador e se vira repentinamente
encostando o cano para a cabeça do rapaz. Escuta-se o estampido curto
e a menina se desespera com a quantidade de sangue que suja o elevador,
começa a gritar, ele aproveita e enfia o cano em sua boca e dispara.
O sangue deles se mistura com o do rosto dele quando ele passa a manga da
camisa para limpar o rosto. Aperta o botão que libera o elevador e salta na garagem.
Desce pelas escadas até o térreo. Empurra a porta da escada com a arma já
apontada para a direção onde fica o porteiro. Ele não estava ali, tinha ido
ver o que tinha acontecido no elevador. Ele se vira e abre fogo contra o
porteiro a queima-roupa na altura das costelas.
Sai pela porta da frente do prédio em direção ao ponto de ônibus. Caminha
lentamente. Guarda a arma no coldre, percebe o calor que faz, o sol está
forte, o céu não tem nenhuma nuvem. Dobra a rua e espera chegar o primeiro
ônibus, faz sinal e entra. Tira uma nota de dez e passa a roleta sem esperar
o troco. O trocador o chama e ele não atende. Senta em um dos muitos bancos
vazios. O trocador sai do seu lugar e vai até ele com o troco. Encosta nele
falando que ele tinha esquecido de pegar o dinheiro. Ele primeiro olha para
o dedo encostando nele. Acompanha o braço até chegar no corpo. E olha para
os olhos dele.
Coloca a mão na arma e pensa em quebrar o dedo dele, colocá-lo ajoelhado e
atirar na sua nuca. Mas desiste. Solta a arma, e estica a mão espalmada,
apanha o dinheiro trocado e coloca no bolso da camisa. O trocador pára de
sorrir e volta para o seu lugar.
Ele olha para fora do coletivo. O sol o incomoda mesmo com os óculos
escuros. O ônibus entra em ruas que ele não conhece. Repara em todos os
sinais com pessoas pedindo dinheiro ou vendendo algo, repara nas pessoas
que ainda dormem nas ruas debaixo das marquises ou em cima de bancos ou em
praças, repara em um grupo de meninos que estão parados juntos cheirando um
saco de papel, repara em um skatista que andam com um taco de baseball na mão.
O ônibus pára em mais um sinal. O garoto do skate vem deslizando
vagarosamente rente à calçada. Há uma velha que só esperava o sinal
fechar para atravessar a rua. O moleque a deixa passar na frente e a acerta
com o taco nas costas.
Ele levanta do seu banco exatamente nesse momento e corre para o motorista
pedindo que abrisse a porta dianteira. O motorista percebendo o seu olhos
injetados abre sem pestanejar. O skatista apanha a bolsa da velha e volta
para cima do skate para andar mais rápido. Ele saca a arma e vai na direção
do moleque mirando. Quando ele tem uma mira, atira. O garoto se desequilibra
e cai no chão. Ele caminha sem pressa até o garoto que tentava se levantar.
Ele chega chutando o braço de apoio do moleque fazendo-o cair, abaixa a arma
na altura da nuca e dá apenas mais um tiro.
Anda por ruas transversais fugindo do rebuliço que se forma. Entra
em uma rua muito arborizada e vê um policial correndo para a rua onde houve
o incidente, ele, tranqüilamente, deixa o PM passar para atirar nas suas
costas duas vezes. Quando o policial cai no chão ele vai até ele e
descarrega toda a arma. Joga o pente fora e coloca outro.
Chega em outra rua que faz a mão inversa à do incidente. Atravessa a rua e
pega o primeiro ônibus que passa novamente. Quando o motorista abre a porta
ele sobe. Sobe com a arma em punho, chega na catraca e coloca a arma no
peito do trocador que nem tem tempo de falar nada, dispara duas vezes.
Há desespero no ônibus, o motorista pára o carro e olha para trás para saber
o que acontecia, ele passa da catraca e fica na parte traseira do
ônibus, o motorista abre a porta dianteira e vários passageiros começam a
descer. Alguns quebram a janela e tentam sair por elas. O motorista tenta
sair por sua janela, ele começa a abrir fogo a esmo. Duas mulheres no fundo
do ônibus ficam paralisadas e não conseguem se mexer. Ele chega até elas e
pára, diz apenas "Pulem". Elas se levantam e saltam do ônibus.
Ele se encaminha para a direção do ônibus, escuta sirenes, escuta um
estampido, outro e mais outro, senta no banco do motorista, olha para
trás, para dentro do ônibus e percebe que mais ninguém estava dentro, dá a
partida e sai com o carro. Escuta vozes pedindo para que ele pare o carro.
Mais estampidos, acelera mais, na rua seguinte dois carros atravessados
interrompem o tráfego, vários homens atrás deles atiram, ele acelera mais
ainda, escuta os estampidos e sons de metais se desdobrando, acelera mais,
tiros, vê os homens da policia pularem de trás dos carros, acelera mais,
bate entre os dois carros de policia fazendo com que o cerco seja ineficaz,
acelera, sente um gosto esquisito na boca, passa a mão e olha o
sangue, olha para a camisa e vê mais sangue, está encharcada, começa a
sentir um pouco de tontura, acelera, os estampidos ficam mais
longe, há uma curva fechada que ele não consegue fazer e bate no poste de
esquina. Ele voa pelo pára-brisa e cai na rua, se levanta com a arma em punho,
atira em tudo que se move, olha vários policiais indo na sua direção, começa a
trocar tiros, acertam a barriga dele, ele não cai, continua a atirar,
acertam o ombro esquerdo, ele troca o pente, continua a atirar, até que
acertam o peito dele fazendo-o cair.
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O som da cinza caindo no chão o desperta. Não estava dormindo. Apenas tinha
entrado numa outra freqüência. Um transe. Esfrega os olhos inchados. Olha
para o relógio. Cedo. Muito cedo. Hora de se levantar. Leva o copo de gim na
boca. Meia garrafa resta. Levanta-se da poltrona. Vai para a janela olhar
como estava o céu. O sol ainda não tinha nascido. Mas o calor já estava
pesado. Prossegue em direção ao som. Tinha ouvido a noite inteira o mesmo
cd. Jazz. Desliga o aparelho. Senta na cama e toma mais um trago. Olha para
o nada. Imagina o que devia fazer. O pensamento corre. Toca o despertador.
Vira-se e o desliga. Vai para o banheiro. Caminha lentamente sentindo cada
nervo se alongar. Escuta estalos das articulações. Esbarra na porta de
entrada do banho. Tira a cueca. Esvazia a bexiga. Abri a água. Senti-a
gelada. Envolve todo o corpo. Tudo igual. Sempre igual. Fica alguns segundos
sem se mexer. O sabonete cai no chão. Volta a si. Tinha que fazer a barba
ainda. Enxuga-se porcamente. Olha-se no espelho. Passa a espuma. Desliza a
lâmina de um lado para o outro. Vê um filete de sangue. Depois outro. O
rosto é vermelho. Aproxima a face do espelho até encostar a testa. Dá
pequenas pancadas que aumentam de intensidade. Sente a visão turva, sangue.
Molha toda a cabeça. Enrola-a com a toalha. Escolhe uma roupa ordinária.
Camisa cinza para fora da calça. Abre a gaveta da cômoda. Um raio de sol
reflete dentro. Cabo emborrachado. Puxa a agulha. Coloca apenas uma bala.
Dedo no gatilho. Mira fora da janela. Indo de vizinho em vizinho. Percebe
que era observado. Um menino que sorria. Aponta para o pequeno. O menino não
sorri. Ele abaixa um pouco o cano. Olha diretamente para o menino. O garoto
pára. Ameaça um sorriso nervoso. Ele dá um sorriso. O menino... Ele aperta o
gatilho.
(888)
Sai de casa apressadamente. Espera o único elevador que funciona nesse
horário. Demora. Demora. Escuta alguns risos. Abre a porta. Casal de
namorados adolescentes que vai para o colégio. Ele fica de costas para os
dois. Eles continuam a fazer barulho. O elevador vai parando de andar em
andar. Sétimo. Sexto. Quinto. Quarto. Ele trava a porta. Vira-se e atira na
testa do garoto. Todo o elevador se suja do sangue. O moleque vai
escorregando até o chão. A menina grita. Ele encaixa o cano dentro da sua
boca.
Ele sai do elevador. Vai para a escada. Desce todos os andares restantes.
Percebe que a cabeça voltar a sangrar. Suja a manga da camisa. Abre a porta
do térreo. Vê o porteiro correndo em direção do elevador. Passa por ele. O
porteiro dá um grito em sua direção. Ele se vira e atira três vezes.
Encara o calor da rua de frente. Anda dois quarteirões até pegar o ônibus. O
sangue começa a se misturar com o suor. Ele passa a manga da camisa na testa
suja. Espera um tempo até o ônibus passar. Faz sinal para o ônibus parar.
Passa a roleta. Joga uma nota em cima do trocador. Senta no banco da janela,
no meio do ônibus. Escuta algum som estranho. Percebe um dedo encostando
nele. Segura o cano. Acompanha dedo, mão, braço, ombro rosto. Trocador.
Troco. Trocador sorrindo. Olha por alguns segundos os olhos do homem com o
dinheiro na mão. O trocador pára de sorrir. Imóveis. Ele larga o cano e
estende a mão para pegar o dinheiro. E coloca as moedas no bolso da camisa.
Olha para fora. Sinal de trânsito. Alguns moleques fazem malabarismos com
limões. Ele coloca a cabeça para fora. Um dos moleques deixa cair os frutos
no capô de um carro importado. O motorista abre a janela e grita algo. O
moleque corre em direção a uma praça onde várias pessoas dormem ainda. Ele
coloca a cabeça para o lado de dentro. O ônibus continua. Repara nas grandes
avenidas. Os prédios altos se encostam lá no último andar formando tetos.
Não conseguia ver o céu. Mas sabia que ele estava azul. Quente, muito
quente.
O ônibus entra numa área arborizada. Ele se levanta. Puxa a corda. Observa
um skatista que segura um taco de beisebol na mão. O skatista passa por uma
velha. Bate nela. A velha cai. O skatista pára e apanha a bolsa da velha.
Ele apenas olha para o motorista que abre a porta. Sai já com a arma em
punho apontando para o skatista. Dá o primeiro tiro e o skatista cai no
chão. Caminha lentamente para o corpo do ladrão. Tenta se levantar. Ele bica
o braço de apoio do skatista. Desaba. Ele encosta o cano na nuca. Escuta-se
um estampido em quase todo o quarteirão. O skatista cai inerte.
Ele entra em uma das ruas pequenas que cortam a avenida maior. Observa um
homem com uniforme vindo na sua direção. O policial passa por ele. Ele
descarrega toda a munição nas costas do homem. Troca de pente. Escuta alguma
balbúrdia da rua que vinha. Começa a correr. Chega à avenida que faz o
sentido oposta da maior. Atravessa a rua na frente dos carros. Faz sinal
para o primeiro ônibus.
O motorista pára. Abre a porta traseira. O rosto ensangüentado. Passa a
manga da camisa suja na testa. Sobe os degraus com arma em punho. Encosta no
peito do trocador e atira. O motorista pára o carro e começa uma correria.
Ele começa a atirar para cima e para os lados. Sem mira. As pessoas saltam
pelas janelas. Tropeçam, pisam nas outras. Ele vai para a parte traseira do
coletivo. Duas mulheres sentadas abraçadas imóveis. Ele encosta o cano na
mais gorda. "Saiam". Fala. Elas levantam e correm em direção a saída. Ele
caminha devagar para a frente do ônibus. Limpa a testa com a manga suja da
camisa. Senta no banco do motorista. Dá a partida. Ouvi sirenes atrás e dos
lados. Sai com o carro. Som de metal retorcido. Ele acelera. Vidros se
quebram. Ele passa dois quarteirões. Faz uma curva. Enxerga dois carros de
polícia impedindo o tráfego. Ele pisa mais. O ônibus passa no meio dos dois.
Desgovernado. Vai em direção ao poste. Ele é cuspido pela janela. Cai na
calçada. Senti a visão turva. Começa a trocar tiros para as suas costas.
Troca de munição. Senti o corpo sendo atravessado. O pensamento corre. O
corpo se desequilibra para trás. Abre os braços. As palmas das mãos para o
alto. Não escuta mais nada. A visão turva. Sangue. Sangue. Cai pesado.
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