Cidade
Uma ida ao centro da cidade nunca é impune. Mesmo que vc queira ficar só alguns instantes, ou se tem a pretensão de se enfiar naquele mundo chamado Saara, o meu caso hoje.
Não sei porquê, mas estava com uma saudade dessas muvucas. Lá em Nova Iorque, fui em Chinatown e a todo momento me lembrei daqui. Aliás, esse foi um dos motivos que mais gostei de NI. Saber que lá também tem uma vida no submundo. Que lá há sujeira debaixo do tapete. Talvez seja um fenômeno registrado em todos os grandes centros urbanos. Por enquanto, com a minha baixa qualificação no assunto, só posso me contentar na especulação.
O mercado da Chinatown brasileira - sim, porque há infinitamente mais chineses e adjacências que árabes e arredores - pareceu-me muito maior que a sua parente americana. Lá, eu, como todo bom turista precavido, só fui nas ruas principais, sem experimentar nenhum beco, tão tradicionalmente new yorker. Tinha lido que "pick pockets" era uma das modalidades que os pivetes gringos mais se orgulhavam e eu não queria facilitar tanto para eles. Já eram suficientes a minha cara de turista e a máquina fotográfica enrolada na minha mão.
Voltando para o produto nacional. Escutei em sua rádio comunitária que o Saara é o maior mercado a céu aberto do mundo. Não sei não, deve haver algo maior na sua matriz exportadora, na própria China. Entretanto, descobri que é praticamente impossível passear por todas as ruas, reparar em todos os detalhes, entrar em um décimo das lojas (esse se vc for homem). É maior que qualquer shopping que eu conheça. Bota aí o Barra Shopping, ou, sei lá, o Rio Sul. O Saara é maior. E mais barato.
: )
Outro detalhe apreendido da rádio é que todos os jingles, slogans e anúncios são cópias descaradas de algum outro mais conhecido. Tem plágio do "quer pagar quanto", do "não tem preço" e de vários outros. Assim como os produtos originalíssimos do Paraguai e de Taiwan, suas propagandas pedem emprestado algumas idéias de outrem, sem nem mesmo lhe comunicarem.
Eu acho isso ótimo. Tenho certeza que a economia gira melhor assim, sem a presença do Estado, que só aparece para coibir, quando aparece, do que se eles não fizessem nada ou respeitassem todas as regras. Tenho certeza que estariam empacados, engessados, sem saída. Assim, como uma paródia, existem produtos de todas as qualidades e marcas naquela região.
E, talking about repression: outro aspecto que me fez "sentir em casa" lá no "estrangeiro", foi presenciar, e receber inteiramente de graça, um empurrão de um policial nova-iorquino quando este corria atrás de uma banquinha de camelô na principal rua de Chinatown. Fiquei parado, pensando que não era só aqui que a polícia fazia merda; olha, que bom, posso falar mal deles também. Por essas e por outras, Nova Iorque me proporcionou a certeza de que eu poderia morar lá, sem me sentir longe de casa
Porém, qual foi a minha surpresa ao adentrar, já depois do Saara, a rua do Ouvidor, pedaço da Mega Saraiva e esbarrar, quase que casualmente, em quatro brutamontes vestidos com algo que me lembrou muito o uniforme de football americano e com cacetetes e insígnias típicas de nossa polícia. Nós, pareceu-me, ficamos com inveja dos brothers de cima, e resolvemos incrementar. Não é novidade para ninguém as guerrilhas que acontecem com razoável freqüência, ali, perto da Carioca, mas ver os sujeitos assim, deu até um certo medo. Só para terminar esse papo, um dado estatístico de meu amigo Abel: em toda a década de setenta, houve, no máximo, umas setenta matérias nos jornais que circulavam, falando sobre as porradarias camelôs x Estado. No ano passado, foram mais de 300.
E depois disso tudo, pego o ônibus para casa e, ao passar pela Cinelândia, um garoto bem esmirrado adentra pela porta da frente e passa rápido que nem um rato por debaixo da roleta, no que a trocadora grita para o motorista (Marcos) pedindo algum tipo de providência. O menino, esquelético, levanta a camisa para mostrar a barriga magricela e começa o seu discurso para explicar que precisava de dinheiro para o almoço e para dar de comer a sua avó e seus irmãos pequenos que estavam na praça. Mais do mesmo, como podemos perceber. Poucas pessoas se sensibilizam e entregam algumas moedas e ele com aquela cara de sofrimento de realidade ou fingida. Antes que o carro saia da Cinelândia, o garoto pede para saltar, porque tinha que ficar ali, senão iria se perder da avó. O motorista, talvez incentivado pelo pedido da trocadora, arranca com o carro antes que ele possa se aproximar da porta traseira. Mas, antes de atravessar o sinal, várias pessoas começam a pedir que o ônibus pare e assim o moleque possa saltar. O garoto tinha uma voz estranha, não era uma voz pequena compatível com o seu corpo, era algo mais forte, algo com sotaque, não, não era algo só com sotaque, era uma voz que não combinava com aquela cena, que não cabia dentro daquele espirro de gente. O motorista, com o pensamento de aplicar algum tipo de lição, prossegue após a abertura do sinal e se aproxima do Aterro, e quase a totalidade das pessoas gritam para o chofer que ele pare e abra a porta, e o menino diz que vai se perder da mãe (da mãe?, pensei na hora), que não poderá encontrá-la mais, e toda a confusão montada com a trocadora falando baixo para Marcos que deixe o menino livre até que o coletivo pára logo no Passeio. O menino, desesperado pula antes mesmo que o ônibus fique imóvel, enquanto um sujeito em torno dos quarenta sugere que ele espere parar. Todos os passageiros comentam algo logo após sobre a cena e em cinco minutos, todos já haviam esquecido e estavam preparados para outra anormalidade.
Podemos assim perceber que o Brasileiro (se é que haja essa figura meio mestiça) é um sujeito camarada. Mas completamente anestesiado com sua realidade. Posso me incluir dentro desse grupete. Esse tour pela cidade me mostrou que eu não desaprendi a ser carioca.
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