quinta-feira, 23 de setembro de 2004

A carona

O coração estremeceu ainda mais o volante em que ele se apoiava. Era uma batida compassada, mesmo que em crescente quanto ao ritmo, e forte, intensificara-se, as vibrações saíam pela caixa torácica, passavam pelo cotovelo, punho, dedos e atingiam a guia. E se depois de todo o imbróglio comentasse com alguém as razões dessa sutil transformação, era capaz de receber um corrente de risos dos interlocutores. Ele mesmo já havia passado por isso, conhecia a cena, avistava em todas as viagens esses hippies que vão dominar o mundo, como costumava comentar na roda dos companheiros.

(1)

Virou o rosto para o lado oposto, tentou se ater às imagens dos pastos essencialmente bovinos que se repetiam nas estradas desde o Rio, percebeu o raciocínio brotando na cabeça e tentou se segurar, não gostaria de virar o rosto, de conhecer o outro lado, de saber quem era aquela ali, de onde vinha para onde ia, por que será que saiu de casa, qual deve ser o seu destino? Deve ser muito bom viver assim na estrada, sem emprego, sem obrigações, é novinha, parece que é bonita, e se eu parasse, não... não há tempo, tenho que chegar em São Mateus o mais rápido possível, e minha família, o que é que minha mulher diria caso me visse agora?, a menina pode ser uma maníaca, não, isso seria ridículo, ela... agora dá para ver, é melhor olhar para o outro lado...

Pelo retrovisor reparou no dedo média dela apontando em sua direção. Uma agonia daquilo que poderia ser feito, dito, concluído, de todo o mundo que se reservava dentro de uma não-ação, ou melhor, dentro de uma atitude, tomar a iniciativa, poderia ter dominado o destino e propor-lhe outras interseções, uma companhia para uma viagem chata e repetitiva, sempre as mesmas vacas comendo o mesmo capim, com o sol a pino e a lua com estrelas, sem distinção de dias da semana ou feriados, era empurrar o acelerador, segurar a roda e seguir adiante. Doze horas depois aporta na pequena cidade desconhecida no norte do Espírito Santo, fazia o que tinha que fazer e voltava. Mais horas de asfalto quente e calor a pino e quando chegava no Rio, a mulher estava no mesmo lugar em que a havia deixado, como uma novela de que se perde alguns capítulos, mas sempre se sabe o fio da meada, basta assisti-la novamente por poucos segundos. Agora a possibilidade de mudança de canal, de transformação do programa havia ficado para trás, e talvez tal brecha dentro do seu cotidiano não se abrisse mais. E é provável que não fosse tomar qualquer atitude que diferisse desta, caso algo semelhante se repetisse.

(2)

Só para demonstrar para si mesmo que não havia qualquer incômodo, reduziu a marcha e parou, ofereceria carona. Os amigos costumavam contar que sempre era possível ouvir alguns casos loucos dessa gente que toma droga e vê coisas que não existem. E como falavam? Tinham aquele vocabulário próprio, uma cadência singular, um desprendimento quanto às normas, eram desregrados por natureza e escolha.

Do momento em que a avistou (cabelos castanhos claros, longos e mal cuidados, bolsa de renda a tira-colo, roupas largas, tecidos leves) até quando pisou no freio e a conseqüência do ato, não fixou o pensamento em nada específico e deixou que o instinto aflorasse – outro imprevisto, caso conseguisse se lembrar de todos os detalhes da história na manhã seguinte.

Com o veículo em descendente, a moça abre um sorriso de satisfação completa, como se tivesse alcançado o objetivo. Abaixa-se e apanha a mala arremessando sobre o ombro adentro. Conseguira a última carona na bifurcação da saída de Vitória, estava parada ali fazia horas. Se fosse em décadas passadas, ‘se fosse em 60, ou 70’, tinha esta convicção, ‘haveria mais amor no coração’.

***

Pintas, foi o primeiro detalhe que ele reparou no rosto da moça quando ela falou um ‘oi’ através da janela. Instantaneamente caiu no passado da primeira menina, era extremamente novo, mas o rosto pequeno e delicado, com as sardas, a transformavam num ser mais divino; despertou anos mais tarde, com a moça ao seu lado, de fora do carro perguntando para onde é que ele iria. A primeira troca de palavras. Como ele deveria se comportar, o que responder para não aparentar um completo idiota, ela não era assim tão mais nova que eu, se eu não tivesse casado tão cedo, ela poderia ser a, creio que deve ser dois anos mais nova que Lúcia, no máximo, ‘O quê?’, ela insiste em saber para onde ele vai. Ele responde que vai para o norte, diminuindo as palavras.

Um silêncio toma por completo o carro e ele pensa que nunca mais conseguiria quebrar a inércia. Sentia uma barreira entre os dois, o ar era espesso, era denso, ele mal conseguia respirar. Novamente o corpo latejou por causa do sangue que percorria suas artérias. ‘Eu também’ – rápida, fluída, em comunhão com o ambiente, dona de si. Ele tenta algo mais consistente e especifica que vai para o norte do Espírito Santo, numa pequena cidade chamada São Mateus. ‘Bah, já eu não sei exatamente onde parar. Eu quero conhecer o Brasil que é enorme’. Ele percebe o sotaque, mas não tem vontade de inquiri-la sobre sua origem. Não parecia certo. Ela não deveria ter destino, nem início, só o caminho. Ela pergunta o que é que ele faz. ‘É muito chato o que eu faço’. ‘Não deve ser, para estar na estrada’, Mas e quando a estrada se torna o seu cotidiano?, ele tem vontade de lhe perguntar para demonstrar que estava errada, mas sentiu que ela não lhe entenderia. Ficaram quietos os dois. ‘Você gosta de música?’, ela já mexia no toca-fitas do carro dele, nenhuma estação pegava, estavam num vale. ‘Tem alguma fita legal aqui?’, abre o porta-luvas e encontra uma da Elis Regina. ‘Gostava tanto dela’, segura o pequeno objeto, ele se divide entre manter a atenção na estrada ou na pequena inquieta ao seu lado. Parecia em constante ebulição, como se fosse capaz de cometer atos impensáveis imediatamente, apenas se houvesse algum impulso.

Colocou a fita, era um show ao vivo. Elis, no auge, voz firme, comentários entre cada música num tom borracho, ele sempre gostara desse jeito de Elis cantar, levando à máxima potência qualquer de suas músicas, ‘Ela era muito coração e as canções... ela as transformava em suas, né?’, ela pergunta e ele larga a sua frente e olha diretamente para ela, assustado, como se ela soubesse exatamente o que estava pensando. Ela não era exatamente o que a lenda dizia. Ia de encontro a qualquer idéia que ele já tinha tomado conhecimento, surpreendia-se a cada palavra, se embebedava de cada gesto, era excepcional tê-la por perto, saber que outras vidas acontecem lá fora, tão diferentes da sua. Teve um pouco de vontade em saber como ela se comportava longe daquele pequeno teatro de boas ações e quero ser sua amiga, importava saber quem era aquela menina do seu lado, de dentro dela, percorrer seus mais íntimos recantos. ‘Acho que vou com você até São Mateus, posso?’, ela inquiriu ainda antes da primeira música acabar.

(a)

Apareceu algo estranho dentro de si, como se uma oportunidade única aparecesse, mas que não tivesse a coragem suficiente para passar de determinados limites. Não era uma ligação com a mulher, com os amigos, com todos os conhecidos, com nada que ele vivera até o momento, apenas não acreditava no que ele estava vivendo. Uma angústia dominou-o, não cria em si próprio, não sabia se aquilo poderia acontecer com qualquer pessoa, não sabia agir quando tinha sorte, não sabia remar a favor da maré. Toda a sua vida tinha lutado, estar como estava, era fruto de trabalho pessoal e de mais ninguém. Era de família pobre, conseguira esse emprego com o patrão do cunhado exatamente porque parecia ser homem sério, não desses que farreiam todas as noites. Casara-se muito novo, acordava às sete todos os dias, mesmo nos que não trabalhava, seguia um método para que a vida não lhe apresentasse nenhuma surpresa indevida, para saber se comportar em qualquer das atitudes possíveis e agora, quando menos percebeu, tinha uma desconhecida sentada ao seu lado, perguntando se podia ficar com ele até o final da estrada, até o final de tudo, até quando não poderia mais. Queria propor uma alternativa que ele não tinha antevisto e ele deveria se comportar com isso, deveria dar uma resposta. Ele tinha que ser alguém, com iniciativa, ou optar por continuar sua vida que não era a melhor, mas também não lhe reservava grandes sustos. E então percebeu que não sabia mais falar, não lembrava como se conversava, como manter um diálogo, pronunciar palavras, deixar escapar sua opinião, para onde queria que corresse toda a história, não enxergava objetivo em uma das opções que ele possuía e isso o consumia. Como ele era tão cego dessa maneira? Precisou uma ou duas resposta, não concluiu nada e calou-se ainda mais.

(b)

‘Claro’, rateou e depois se perguntou se era realmente assim tão óbvio, se queria que ela ficasse com ele até São Mateus, se não era muito arriscado, se saberia se comportar, se era o correto. Não obtinha respostas, não havia resultados possíveis. As batidas do coração aumentaram de volume e ensurdeceram tudo a sua volta, turvando sua vista, tendo apenas o caminho a sua frente. Sentiu suas mãos frias e suadas, o corpo inteiro gelado, só a cabeça pesando e o pescoço sem forças, a vista embaçava de um branco que apaga das beiradas ao centro, como uma borracha que corrige os erros num caderno escolar. Ela tocou na sua coxa e ele voltou a si. Escutou numa voz calma se ele estava bem e no instante seguinte já se sentia regularizado. O toque, o carinho, a calma, a delicadeza e principalmente a preocupação, deram a ele algum tipo de força que o despertou do torpor, do abismo que havia se metido. Naquele instante eram conhecidos, haviam se ligado intimamente, um dentro do outro, um a partir do outro, estavam conectados. Não importava o que ele pensasse, como agiria, o que quisesse, quais fossem suas intenções, ela entenderia. Não era em São Mateus que ele pensava, não era dali a quatro quilômetros, nem no Rio de Janeiro. Era naquele meio de nada, com vacas comendo os capins que insistem em nascer da mesma maneira há séculos. Era esse sem sentido que ele teve vontade de incrementar, que ele queria figurar, colocar novas modalidades dentro da ordem pré-estabelecida. Queria fazer algo diferente só porque era possível, mesmo que não fosse o certo, mas isso não importava. Mesmo porque para pensar no que era errado deveria lembrar de outras pessoas e ele agora duvidava de qualquer outro ser no mundo. Talvez não existisse nada além daqueles morros. Não saberia dizer, só aquela menina quase da sua idade, de pele branca, que demonstrava uma vivência única. O amanhã talvez chegasse, e ele poderia comprovar, mas antes ele iria dormir, e quando acordasse, descobriria.

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