quinta-feira, 9 de setembro de 2004

Carta à comissão julgadora da revista ‘Proa’

Carta à comissão julgadora da revista ‘Proa’

Rio, Setembro de 2004

Senhores,

Não quero, com esta carta, me igualar àquele a quem afirmaram peremptoriamente ser eu um copiador. Pelo contrário, não me iludiria a este ponto. Tenho como fim, agora que já o li e reli, demonstrar, até mesmo através dos próprios argumentos do famoso escritor, da impossibilidade prática do plágio. Não anseio, também, que revejam sua decisão no que concerne ao meu pequeno conto. Sei da minha completa falta de qualidade e do meu posto inferior perante a média dos que tentam conviver desta forma. O máximo que me condiz é ser um aspirante; o que já me é bastante aprazível – considero. Entretanto, desejo acender uma fagulha para a mudança na forma de julgamento, mesmo que esta vontade seja em vão. Intuo cambiar o aspecto fundamental da avaliação de originalidade quanto aos temas abordados (já que isto, em princípios, é utópico), para inovação quanto às formas. Por outro lado, não defendo o rebuscamento extremo, nem apóio textos incompreensíveis pelo excesso de experimentalismo. Trafegando no raso e diretamente: almejo que os contos não sejam avaliados e rechaçados perante uma coincidência do tema principal. Em outras palavras, que caso igual ao meu não ocorra novamente.

Tentarei criar uma cronologia para que logo de início toda a argumentação seja fundamentada e explícita. Em fevereiro deste ano, descubro da possibilidade de publicação de contos inéditos – sublinho a última palavra – na conceituada revista ‘Proa’. Teria uma quinzena para desenvolver uma pequena trama que pudesse concorrer com os outros prováveis candidatos e mais um par de dias para enviá-la tradicionalmente.

Durante algum tempo, que não saberei precisar, uma névoa branca encobriu todo o meu raciocínio fazendo com que não vislumbrasse nenhum argumento, quiçá interessante. A angústia e a cotidiana ansiedade me impediam de aquietar-me e escutar o que a ‘musa’ tinha a me dizer. Foi nesse período que um espanto substituiu qualquer outro sentimento: soube da morte estúpida (se é que todas as mortes não o são) de um grande amigo meu, Ivan Nogueira.

Havíamos estudado juntos na faculdade. Ele vivia extremamente, abusava de todos os seus gostos, independente das conseqüências; ignorava e abdicava dos planos, de algo que pudesse ser chamado futuro. Era extremamente imediatista e colhia amizades e inimizades por isso. Mesmo assim, sempre fora o melhor da classe sem que, para isso, tivesse que se dispor mais que qualquer outro. Sua grande vantagem sobre os demais era simples: viciara-se em leitura, sem preconceito de origem ou de tradição. Horas de sua vida eram passadas diante das letras, sem nenhuma ordem ou estratégia.

Depois de colarmos grau, nos afastamos. Ele se mudara para uma cidade distante, transferido pela empresa a que já era contratado. Eu fiquei para manter meu cotidiano inalterado. Suas informações foram diluindo, escasseando... fiquei anos sem ouvir falar nele. Até o funesto dia.

Quero deixar claro que todas as informações que chegaram a mim foram trazidas de conhecidos que ainda mantiveram algum contato com ele, por isso, não muito confiáveis quanto à fidelidade aos fatos, principalmente considerando o ambiente em que me foram confidenciadas. Todavia, todas estas versões são válidas para demonstrar a origem de minha história. Espero não estar usando a memória de meu amigo em vão.

Tentarei ser raso nas descrições para não enfadá-los. Em certo momento da vida, Ivan decidira que deveria ser mais humano, menos idealistas, menos romântico, mais real, mais carne e osso, menos pensamento. Ele, um impulsivo crônico, renegou a si mesmo e se transformou num sujeito medíocre. Descobrira que ele era pai de uma garotinha de dez anos, casado há mais de quinze e mudara por completo suas diretrizes básicas. Aquelas frases me chocaram inenarravelmente. Um homem pode constituir família, é o mais óbvio de todas as histórias, pode ‘amadurecer’ e deve se tornar um cínico perante todo o mundo. Mas isto tudo, vindo de um homem que era a representação em movimento do Chinaski me assustou e muito.

Voltei para casa e sonhei acordado com um personagem regular, que vai da casa para o trabalho e vice-versa. Seu único momento de fuga de sua própria realidade acontece na hora da morte: ele relembra ou recria o passado de forma a ter uma morte inesperada, longe dos quartos de hospital. Exatamente o meu texto. Parecidíssimo ao conto ‘O sul’, de Borges.

Contudo, com esta carta, reitero minhas intenções de esclarecer dois pontos embaçados até o momento: Não conhecia a obra do argentino cego até a carta em resposta; tento com o meu texto criticar uma morte violenta, já que nosso tempo, nossa realidade não mais permite qualquer exaltação da ‘malandragem’, do ‘marginal’, ou qualquer outra denominação conotativa para o caos urbano do dia-a-dia. O escrito argentino, por sua vez, defende uma exaltação do perigo, da coragem, até da força bruta em última instância.

Admito, no entanto, as extremas coincidências que permeiam ambas as versões. Reafirmo que minhas intenções eram opostas às do famoso contista. Copio-os trechos, em ordem cronológica, que assustam pelas semelhanças:

“Dahlmann não estranhou que o outro, agora, o conhecesse, porém sentiu que essas palavras conciliadoras agravavam, de fato a situação.” (pág. 589 de suas Obras Completas).

“(...) ele não estranhou que o outro, agora, o conhecesse, porém sentiu que essas palavras conciliadoras poderiam agravar a situação.” (‘a morte sonhada’).

Se no primeiro caso, o argentino explica que o simples fato de terem identificado o bibliotecário, protagonista de seu conto, o empurrava para a reação, já que a ameaça dos gaúchos não era mais contra um ser sem rosto, mas contra um homem honrado, e sendo honrado, deveria defender seu nome, mesmo que isso culminasse na morte pelas facas; no meu texto, assim como não há mais valentões inocentes, ou malandros para se romantizar, defendo que não há mais honra suficiente que vale uma morte através de uma briga. As ‘palavras conciliadoras’ poderiam agravar a situação, mas não agem desta forma. Há a igualdade nas frases, mas seus sentidos, nos respectivos contextos, são angularmente opostos.

Também difere, em meu conto, da idéia de que o protagonista argentino procura uma morte honrada, enquanto o meu é vítima de um ato fatídico, mesmo que sonhado, exatamente como no primeiro caso. No meu documento, tento representar a neurose coletiva, o medo ante a violência sem forma; no outro, uma exaltação pela honra, pela violência como algo másculo. Em ‘a morte sonhada’, tento relembrar que a morte pode ser inesperada e devemos sempre estar disposto a encará-la, não com unhas, mas tendo aproveitado ao máximo possível a existência; Borges, numa espécie de melancolia do que nunca existiu, renega habilmente o passado que teve, inflando outro que não há, apenas por conforto.

Quanto ao meu argumento de que nunca havia lido Borges antes de todo este imbróglio, não tenho solidez para comprová-lo. Tento esclarecer que tais coincidências são tão ou mais prováveis quanto aos escritos que são propositalmente idênticos. Contudo, admito que não haja como corroborar tal tese. Relembro, porém, uma idéia do próprio argentino, num prólogo desta mesma coletânea de contos, ao comentar um dos seus mais conhecidos, quando defende a falta de originalidade de sua, ou qualquer obra: “Não sou o primeiro autor da ‘Biblioteca de Babel’”.

Conto com a boa vontade de todos os juízes não para modificar o imutável passado, mas para corrigirem o inevitável futuro.

Desde já grato,

r.

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