Quarto de hotel
Deitado num sofá-cama desmontado, luzes apagadas, olhos enervados e abertos. A janela à frente deixa passar a lâmpada fria do corredor que nunca é desligada. Quando antevejo uma sombra, me encrespo ainda mais: pode ser agora, devo saber como agir, mas não consigo programar este futuro. E é exatamente esta tensão que não me deixa dormir. A dúvida, a ansiedade, o nervosismo do completo absurdo que acabara de ouvir e da infinidade de conseqüências a que isso pode nos carregar. Sim, porque ela está ali, ao meu lado direito, dormindo sobre a cama de casal. Ela, depois de tomar consciência de toda a história pela qual passou, caiu num choro aos soluços, começando com os olhos marejados, o nariz vermelho, as lágrimas caindo; ela, sem forças, estafada até as últimas conseqüências, sem nenhuma energia. Ela, inocente, dorme o sono daqueles que foram derrotados por trapaça; dos agoniados, que tentaram lutar com tudo o que tinham, mas não havia muito o que fazer. E a energia foi se extirpando ao lutar contra um muro intransponível, foi diminuindo, finalizando até que o caminho único foi uma espécie de desmaio.
Eu aqui, minha cabeça dá voltas sem que possa acompanhar todos os caminhos percorridos. Quando menos espero, quando quero anotar os detalhes, quando desejo praticar este exercício que me acalma, já percorro outras lógicas, outros temores, outras saídas, outros planos. Raciocino para saber quem era o homem causador de toda esta balbúrdia quase brega e sigo a passagem marcada. Quarenta anos, classe-média e, como todos, conservador (havíamos conversado sobre política e ele me assustara com a sobriedade e força dos argumentos moralistas), com um bigode fora de moda para comprovar. Pai de duas filhas pequenas, meninas de destinos incertos ou infelizes... Havíamos conhecido uma delas, treze anos no máximo. Gostava de uma cantora pop americana, como o chavão. Era quietinha, ficou no canto, nos dirigiu a palavra uma única vez para perguntar algo sobre o nosso exotismo. Estava assustada, não imaginava nada além das suas fronteiras, quem eram aqueles com palavreados diferentes, entonações engraçadas? Será que um dia esse homem agora culpado por todas as nossas indecisões, todos os nossos medos, será que um dia ele irá se voltar para essa pequenina loura? Será que ele vai ser capaz de fazer algo dessa natureza? Será que ele terá algum tipo de trava porque ela é carne sua, sangue seu, e escolhe estranhos para poder liberar todas as suas escrotidões? Juro: espero que não. Não imagino quais seriam as conseqüências ou não quero chegar a tanto. Parece um roteiro de algum escritor sádico, que inventa as mais perversões apenas com o intuito de chocar. É incrível, na acepção única da palavra, quando encontramos a menos aprazível ficção ao dobrar a esquina.
É tão inacreditável: e se for uma fantasia dela, daquela que está deitada sobre a cama, que não tem nenhum vínculo comigo além da breve troca de gentilezas tradicionais entre conhecidos? Ela estava um pouco alta, me admitira, será que não houve uma confusão, uma mal-entendido, será que todas as palavras usadas não foram apenas para ilustrar uma possibilidade, algo que ela deveria evitar? Essas são argüições infinitas e praticamente irrespondíveis. Poderia continuar indefinidamente com os pontos de interrogação e nunca saberia como completar a lacuna da resposta. Não estava com eles, não posso interpretar sob meus olhos o acontecido, tenho que confiar nas partes, neste caso, na única pessoa que é minha conhecida real neste louco estado. O grande problema é que tudo faz um sentido assustador. Só por isso eu não gostaria de acreditar, não é possível que possamos viver tamanho lugar-comum.
O homem de bigodes gostava de trazer-nos bebida comprada do bolso dele quando era possível. Nossa geladeira sempre tinha cerveja de várias qualidades, com a desculpa de que deveríamos prová-las a todas e escolhermos a melhor. E se fosse apenas isso, toda esta trama de quinta não faria nenhum sentido. O problema foi o que aconteceu em um dia específico. A nossa ligação com ele, nossa dependência é quase total. As outras opções são andar a pé, ou esperar um ônibus pior que os de costume para ir trabalhar neste lugar que junta o provinciano e a estupidez dos transeuntes com o constante alto faturamento dos mesmos. Ele comumente nos traz para casa, para este hotel de beira de estrada, que parece saído de um filme de terror – mais um elemento para acrescentar na falta de originalidade de toda a trama. Nesta noite (já havia escurecido), era 26 de dezembro, ele me daria carona. Ele chega um pouco alterado, com a língua um pouco dormente, as palavras emborrachadas, os olhos piscando vagarosamente, o raciocínio lento. Saímos do restaurante e ele resolveu parar numa loja de conveniência para comprar uma cerveja. Perguntou se eu queria, aceitei de pronto para não fazer uma desfeita. A minha vontade na realidade era pequena. Voltou com uma garrafa grande, porém com tampa abre-fácil. Perguntou-me se era comum termos engradados assim de onde eu vinha, respondi que destes, somente em bares e para dividirmos. Ele fica uns instantes em silêncio, como que raciocinando o que deveria dizer a partir de minhas colocações. Resolvo quebrar o silêncio, aquele aspecto pesado, e pergunto onde fica uma cidade que já ouvira dizer, e sabia que era por perto. Eu ficaria feliz numa simples resposta afirmando que era por perto e que ele um dia nos levaria lá. Entretanto ele me pergunta, num tom de alguém que tivesse descoberto a pólvora sem a possibilidade de eu negar, se eu queria conhecer o vilarejo. Antes que pudesse balbuciar, ele já entrara num retorno a beira da estrada e nos estávamos a caminho.
A avenida é lúgubre, parecia que atravessávamos um bosque, com árvores em ambos os lados e nenhuma iluminação, além dos faróis do carro. Tudo era uma completa quietude, só quebrado em duas oportunidades, quando ele me pede para tomar cuidado com minha garrafa, pois se fôssemos parados por policiais, ele estaria mal, aquele não era o meu país; e quando ele afirma que o lugar que eu gostaria de conhecer é ridiculamente pequeno, não havia nada para fazer. Parecíamos sozinhos. De quando em quando, ele tirava os olhos da estrada e virava-se para mim e sorria alcoolicamente. Sentia-me cansado, havia trabalhado por mais de doze horas, a cerveja me dava sono, não conseguia manter uma clareza quanto ao que acontecia ao meu redor. Apenas era algo exageradamente estranho. Eu preferia estar em casa, mas não havia a possibilidade de recusar uma gentileza do homem que em todas as oportunidades que tivera foi-nos simpático. Era agüentar mais um pouco e logo estaria descansando. Estava neste exercício de paciência quando ele tirou a mão direita do volante e colocou atrás do meu banco. Virou-se para mim novamente e não sorriu; seus olhos pareciam mais abertos que anteriormente, o bigode parecia saltar de dentro do rosto, sua expressão era tensa. Levantei-me no banco e tentei ficar ereto para demonstrar uma firmeza que naquele momento não possuía. Ele evitou olhar-me novamente até que falou que havíamos chegado à cidadezinha. Consistia numa rodovia com alguns estabelecimentos comerciais em ambos os lados. Sem pedir minha opinião, ele atravessou o lugarejo e se embrenhou entre as árvores numa pequena rua com iluminação parca. Acordei de imediato e me segurei com força na porta do carro. Estava assustado em demasia para tomar alguma decisão, apenas queria ir embora. A mão dele continuava atrás do meu banco; os olhos injetados eram os mesmos e eu estava num lugar desconhecido, longe de qualquer vestígio de civilização. Não sabia o que fazer, estava por completo sob as decisões dele. No meio da mata ele me olhou novamente e o sorriso havia voltado, porém era agora sarcástico, de quem conhece todo o resto do jogo e gosta de aplicar sustos. Parecia satisfeito com o meu óbvio desconforto. Chegamos numa clareira e ele contou que dali saía com um de seus barcos para pescar no rio o qual podíamos avistar. Para fingir controle ou porque não tinha nenhuma perspectiva de raciocínio e encadeamento lógico, repliquei que não avistava o tal riacho. Pareceu-lhe a melhor resposta que eu poderia dar-lhe. Não pôde conter o sorriso e inquiriu-me se gostaria de avistar o rio mais de perto. Tentando manter o clima dentro do civilizado, disse para ficar para outra oportunidade, que estava muito cansado, que gostaria apenas de ir embora. Ele me olhou por alguns segundos com o ar mais lascivo que avistei em toda a minha existência. Agora, me parece que ele havia entendido minha resposta como uma aceitação de suas regras pérfidas e apenas quisesse postergar o que para ele era inevitável. Não sabia o que dizer e creio que qualquer manifestação minha naquele momento seria encarado desta maneira. O impulso de pular do carro me passou duas ou três vezes, mas ainda cria que todo o processo, todas as minhas interpretações das atitudes dele, podiam ser errôneas. O que eu sentia era inenarrável, era uma agonia parecida com a que eu sinto agora, algo como não haver a possibilidade de imaginar como esta ridícula história pode se desenrolar. Até que ponto, até quando podemos nos comportar como civilizados e quando temos que lutar pela sobrevivência com o que for possível e ao alcance. Depois disso possuía a certeza de que ele era capaz de fazer qualquer mal para satisfazer a si mesmo. Mas não tinha provas.
O que torna a trama ainda mais melodramática é que ele me contou, em oportunidades espaçadas, possuir um irmão gêmeo. No dia descrito acima, me confirmara que vinha da casa dele. Os dois – me garantiu – quando pequenos, haviam desenvolvido uma língua própria, para se comunicarem sem que os pais entendessem. Também gostava de repetir que ambos eram muito próximos ao ponto de um saber o que o outro pensava sem que precisassem conversar. Não me parece possível, ou pelo menos crível, ou racional ou qualquer outra palavra que retrate a realidade crua, que os dois brinquem de trocar as personalidades. Entretanto, a maneira como ele cambia de atitudes quando está bêbado, é impressionante. Em outra oportunidade, voltou a me oferecer carona. Havia se atrasado, por isso já o esperava pronto, no balcão do estabelecimento. Chegou, tentou falar com algumas pessoas do restaurante e logo foi interrompido por um casal de turistas que gostaria de saber mais sobre a região histórica, onde nos encontrávamos. Ele começou o seu discurso de guia, com fortes tendências tradicionais e me olhava a cada vírgula para que eu o aprovasse, ou pelo menos para conferir se eu estava reparando com afinco nele, ou para confirmar as minhas reações. Quando terminou, 45 minutos depois, a primeira pergunta que me fez foi se eu havia gostado do que ele disse. Respondi que não prestara muita atenção – o que era a verdade – porque novamente sentia-me esgotado. Havia algum tempo desde a carona descrita anteriormente, tinha sido em sua última folga e era raro coincidir com dias em que eu trabalhava. Ele chegava sempre embriagado porque passava essas tardes livres com o irmão, me confidenciou. Saímos da lanchonete e ele, como se quisesse repetir algo, ou terminar um assunto pendente, estacionou o carro num posto de gasolina onde podia comprar cerveja. Perguntou-me se gostaria de acompanhá-lo na bebida. Antes que qualquer razão, antes de ter qualquer lembrança, retorqui-lhe que não, que não queria porque gostaria de ir rapidamente para a casa. Tenho um certo receio de afirmar isto assim, peremptoriamente, mas observei uma decepção no homem, me olhando quase que com tristeza. Como se eu ousasse não seguir as regras estabelecidas por ele, em nosso último encontro. Levou-me para casa com rapidez e falando sobre assuntos genéricos e amplos, como se quisesse desviar a atenção do pequeno incidente.
Agora, em frente a esta janela, não consigo me acalmar. Sei que ele possui quinze diferentes tipos de armas – são para caçar, me contara em outras oportunidades. A janela de vidro ordinário não será nenhum entrave para ele, caso queira realmente fazer uma loucura e concluir esta narrativa absurda. Quando amanhecer, acordarei os dois aqui e sairemos para um lugar com outras pessoas, que não seja tão perdido no meio de coisa alguma. Por enquanto, tenho que ficar desperto para não ser pego de surpresa. Não tenho idéia do que farei, caso algo insano venha a acontecer, mas nem que eu quisesse, pregaria os olhos agora.
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