“Épico. Isto mostra que este cara não só é o maior nadador de todos os tempos e o maior olímpico também, como talvez seja o maior atleta de todos os tempos. Ele é o maior competidor de todos que andaram pelo planeta.” – Mark Spitz sobre Michael Phelps.
O homem sempre tentamos achar explicação para as coincidências. É-nos muito difícil encarar situações que normalmente não aconteceriam, mas acabam ocorrendo. Um telefone de alguém em quem estávamos pensando. Um sonho – no sentido de antônimo da vigília – que se profetiza. Uma situação que se repete, diversas vezes, com diversos formatos... Os exemplos prosseguiriam por folhas. Com a questão aleatória, aquela que não tem qualquer razão, dentro da irracionalidade em que vivemos, nós já usamos de diversos estratagemas para nos confortar. Da religião, passando pela ciência e outros totens modernos, até a simples resignição. Mas a coincidência... a coincidência acaba com o humor do mais arraigado ateu-racional-materialista. Uns a enquadramos como mais um traço da aleatoriedade. Outros apelamos para argumentos lógicos: defendemos que, ao sermos impressionados por determinado assunto, criamos uma espécie de filtro mental que destaca, do grande conjunto de situações em que estamos imersos, os assuntos mais afins, ressaltando, portanto, as incidências com caráter parecido e duplicado. Ou forçamos uma espécie de correlação entre os fatos, para dizer a frase redentora, um “maktub” qualquer, e demonstrar, assim, que ainda sofremos de uma mal disfarçada orfandade do deus pai que tudo vê, tudo pode, tudo sabe e ainda por cima nos protege. Ou apenas ficamos estupefatos, boquiabertos, sem qualquer palavra. O que é mais comum.
Parece que foi Carl Gustav Jung – que cunhou o termo sincronicidade, para explicar “a ligação entre os acontecimentos, em determinadas circunstâncias, pode ser de natureza diferente da ligação causal e exige um outro princípio de explicação” (CW VIII, par. 818) – quem criou, ou identificou e registrou, essa terceira categoria das ações. Além do aleatório (tudo aquilo que acontece sem uma relação de causa e consequência), e daquilo que se presta ao jogo da causalidade, haveria uma terceira classe do que pode acontecer, que não respeitaria nenhuma dessas duas regras anteriores. Aparentemente, Jung não chega a decifrar essas situações híbridas que são, sob o ponto de vista puramente racional, injustificáveis, mas que respeitam algum tipo de lógica, mesmo que nós não alcancemos (lembremos de Pascal: “Le cœur a ses raisons que la raison ne connaît point”). Como se houvesse um padrão que ainda não foi padronizado. Uma norma tão grandiosa e com tantas variáveis que abarcasse toda a Terra e fosse impossível, até o momento, de ser decodificada – e talvez nunca seja, mesmo. (pensemos, agora, em Shakespeare, pela boca de seu filho mais famoso: “There are more things in heaven and earth, Horatio, than are dreamt of in your philosophy”). Tal explicação foi melhor encarada quando físicos do porte de Wolfgang Pauli e Albert Einstein (portanto herdeiros da ciência, da exatidão, da tradição acadêmica que mais se sobressaiu desde a modernidade) deram o aval deles – com ressalvas – para a teoria. No macro ou no microcosmo, há partículas que respeitam algum padrão de comportamento, mas que são – ainda, ou não – imprevisíveis. Saber que algo existe, porém, não nos tira o assombro. Pelo contrário.
Um dia tem 8.640.000 centésimos. Pensar que apenas um deles possa ser decisivo na biografia de uma pessoa já seria pavimentar o caminho em direção a aceitação do fator aleatório em nossas existências. Imaginar e comprovar que dois personagens com trajetórias de vida parecidas foram afetados por um e quase o mesmo centésimo, porém com a diferença entre os dois episódios de 20 anos, faz começarmos a duvidar de nossa fé na razão e começar a abraçar a religião das coincidências. Estamos falando do hoje mundialmente famoso Michael Fred Phelps e do esquecido Matthew Nicholas Biondi. Elencar as conquistas e recordes do primeiro se torna, em pouco tempo, tedioso, e tira o mérito e o valor dos seus triunfos. Talvez um dado consiga abarcar a importância do nadador para os esportes em todos os tempos. Ele é o maior medalhista de ouro individual dos Jogos Olímpicos modernos, com nove conquistas em duas edições. Na natação, diferentemente de outros esportes individuais, como o surfe, de outro fenômeno chamado Kelly Slater, ou o automobilismo, de Michael Schumacher, ou mesmo esportes coletivos, é possível fazer uma comparação entre gerações de maneira menos absurda. Não comparando tempos, já que isso seria anacrônico, mas resultados. Ele pode ser considerado o melhor nadador de todos os tempos não apenas por ter ganho tantas medalhas nos Jogos Olímpicos – poderia ter tido apenas sorte de ter nascido numa geração fraca –, mas por, ao ganhar essas medalhas, ter batido os recordes mundiais na quase totalidade das respectivas provas, demonstrando que os resultados positivos não eram coincidência. Aliás, se há uma coincidência no caso – como se verá mais à frente – é o fato de a única prova em que ele não bateu o recorde mundial (foi “só” o olímpico) foi os 100 metros borboleta.
O currículo de Biondi não é tão brilhante quanto o de Phelps – nem poderia ser: só pode haver um maior nadador de todos os tempos. Competiu em três Olimpíadas (1984, 1988 e 1992) quando conquistou “apenas” oito medalhas de ouro, considerando as provas individuais e coletivas, fora pratas e bronzes. Era menos versátil e competia em provas mais rápidas que Phelps, como os 50 e os 100 metros livre – provas do brasileiro Cesar Cielo, por exemplo – e foi hegemônico na segunda até o aparecimento de um outro fenômeno: Alexander Popov. Biondi fica numa honrosa sexta colocação no ranking de medalhistas de ouro em apenas uma edição dos jogos, cinco, em 1988, em Seul. Mas a principal diferença entre os dois pode estar em apenas um centésimo.
Já o que junta ambos nadadores é um terceiro atleta das piscinas: Mark Andrew Spitz. Até Phelps, Spitz era o maior nome da natação na História. Era dele o recorde de medalhas de ouro numa mesma edição de Jogos Olímpicos, sete, em 1972, Munique – a Olimpíada que, infelizmente, ficou mais conhecida pelo sequestro e subsequente assassinato de 11 atletas israelenses. Spitz, judeu, ficou em segundo lugar. Além das sete medalhas, Spitz, mesmo com o seu famoso bigodão, também bateu os sete recordes mundiais das provas em que nadou, provando, com o mesmo argumento, de que não tinha se beneficiado de uma geração fraca. (Um exemplo de um bom nadador que teve a sorte de competir em uma Olimpíada fraca foi Gustavo Borges. Em 1996, ele foi segundo lugar com o tempo de 1’48’’08 nos 200 metros livre, que não lhe daria nem o bronze de 1992, quiçá de 1988 – medalha aliás, que ficou para Biondi.)
A história deste recorde de medalhas de Spitz começa quatro anos antes, em 1968. Assim como Phelps, Spitz foi sempre um garoto prodígio da natação. Aos dez anos já tinha um recorde mundial na categoria. (Phelps, por sua vez, bateu seu primeiro recorde adulto aos 15 anos e 9 meses, se tornando o mais jovem atleta a superar uma marca absoluta.) Na Cidade do México, Spitz chegou como uma grande expectativa de conquistar cinco medalhas douradas, considerando que já havia estabelecido, aos 18 anos, dez recordes mundias, e, um ano anos, nos jogos Pan-Americanos de Winnipeg, ele já tinha conseguido o quinteto. (Esse recorde de Spitz foi batido por um brasileiro, Thiago Pereira, no Pan de 2007.) Porém, Spitz só venceu as provas de revezamento que participou. No 200 metros borboleta, terminou em oitavo, o último colocado na bateria. Nos 100 metros livre, terminou em terceiro. E nos 100 metros borboleta, a única prova em que Spitz, Biondi e Phelps dividem, ficou em segundo, por 5 décimos de segundo. Numa época em que a divisão do tempo parava na primeira casa decimal após o segundo, num exemplo sutil da menor preocupação com a precisão do tempo, essa disparidade representava uma diferença ínfima. Talvez não como um centésimo, mas cinco.
Nunca saberemos ao certo, mas podemos imaginar que essa derrota no 100 metros borboleta – a prova favorita de Spitz – tenha doído mais que o oitavo lugar dos 200 metros do mesmo estilo. O lugar-comum assegura de maneira cruel que o segundo colocado é o primeiro perdedor. Numa sociedade competitiva, essa proximidade com o sucesso, essa dor do quase, a síndrome do vice, machuca mais que o completo anonimato, que a lanterna, que “fechar raia”, que no jargão da natação quer dizer chegar em último. Principalmente para Spitz, cujo pai, Arnold, lhe dizia: “Swimming isn't everything; winning is”. Era vencer ou nada.
Após o triunfo em 1972, Spitz abandonou a natação, aos 22 anos. Tentaria a carreira como ator, como, aliás, outro grande nome da natação americana e mundial, Johnny Weissmuller. Além de ter sido o primeiro homem a nadar a distância abaixo do cabalístico tempo de 1’00’’ nos 100 metros livre, Weissmuller se transformou no dono do mais famoso grito de Tarzan da história do cinema. Diferentemente do homem-macaco-peixe, a vida de Spitz fora das piscinas não foi tão famosa. Ele ainda tentaria voltar às piscinas, para as Olimpíadas de 1992, com mais de 40 anos. Em 1991, competiu numa prova não-olímpica, os 50 metros borboleta, contra Tom Jager – então recordista dos 50 metros livre – e... Matt Biondi. Perdeu para ambos. Desistiu da ideia um pouco louca de tentar ir a Barcelona quando não conseguiu nem se classificar para a seletiva americana. O tempo exigido era 55’59, ele fez 58’03 – uma eternidade de diferença.
O grande triunfo de Phelps também se iniciou antes de 2008. Oito anos antes, para ser exato. Ainda com 15 anos, ele foi o mais novo atleta da natação a competir em Sidney. Nadou apenas os 200 metros borboleta – talvez a mais assustadora prova que exista para um nadador – e, mesmo com a pouca idade, ficou em quinto lugar. Cinco meses após os jogos, ele bate o recorde mundial da mesma distância. Quatro anos após Sidney, era a vez de Atenas. Phelps já é, provavelmente, o maior nadador em atividade, num período que outro fenômeno também divide as piscinas com ele, Ian Thorpe. O americano está inscrito em oito provas, claramente numa tentativa de sobrepor as sete conquistas de Spitz. No campeonato mundial de natação do ano anterior, realizado em Barcelona, ele já tinha nadado em seis provas e levado quatro ouros e duas pratas. Comparando Barcelona 2003 e Atenas 2004, podemos ver que na primeira competição ele optara por não competir exatamente na prova em que Thorpe detinha o recorde mundial, os 200 metros livre, e não fora incluído no revezamento 4 x 100 metros livre, por não ser especialista na distância. Em Atenas, porém, ele estava escalado para ambos os desafios. E foram exatamente nessas duas provas que ele “falhou”, chegando em terceiro lugar. Ele ganhou em todas as demais provas e saiu de Atenas com “apenas” seis medalhas de ouro e duas de bronze. Ficou no quase.
Matt Biondi também competira em uma Olimpíada antes da sua principal, a de 1988. Nadou o revezamento 4x100 metros nado livre, que levou o ouro em Los Angeles. Quatro anos depois, em Seul, começava a saga do primeiro homem que se propunha a igualar as sete medalhas de ouro de Mark Spitz numa mesma edição dos jogos. Suas provas eram: 50, 100 e 200 metros livre (esta, a sua aposta mais arriscada), os 100 metros borboleta e os três revezamentos, 4x100 metros livre, quatro estilos e os 4x200 metros livre. Como acontecia com bastante frequência, os EUA foram soberanos nos revezamentos: em nenhum deles a equipe norte-americana ganhou com menos de um segundo de vantagem sobre os adversários. Nos 50 e 100 metros, apesar da concorrência com Tom Jagger na primeira prova, Biondi faturou ambas. Já nos 100 metros borboleta... Antes, porém, é bom deixar explícito que Biondi, ao cair na água, já não tinha chance de igualar Spitz. Ele perdera dois dias antes a prova dos 200 metros livre para um australiano até então praticamente desconhecido: Duncan Armstrong. Ficara em terceiro, sendo, provavelmente, abalado por essa derrota.
Nem sempre as histórias seguem um roteiro com encadeamento lógico - mesmo as mais coincidentes. Se essa saga tivesse sido criada por um roteirista afeito a simetrias, certamente alguns detalhes seriam diferentes. Ou Biondi teria vencido os 200 metros livre, ou a prova teria acontecido após o desastre dos 100 metros borboleta. Porém, talvez o borboleta não tivesse sido tão catastrófico, assim, caso ele tivesse vencido o crawl. Aliás, essa derrota de Biondi pode ter, sim, uma semelhança, pelo inverso, com uma prova de Phelps, já em 2008. Uma prova que nem foi vencida por Phelps, mas que injetou nele uma certeza de que ele não poderia perder mais.
É possível apostar que quem assistiu aos jogos de Pequim não esquecerá de uma cena específica. Phelps gritando com os músculos do peito, bíceps, abdômen, todos tensionados, com os braços estendidos à frente de seu corpo, as veias dos antebraços e pescoço saltando, em uma expressão máxima da vitória. Era o fim do revezamento 4 x 100 metros livre, sua prova mais difícil, já que não é especialista em velocidade. Os EUA haviam vencidos os franceses, numa chegada extremamente improvável. O caminho estava livre e a esperança nunca havia estado em tão alto patamar. Phelps fora o primeiro a cair na água entre os norte-americanos e entregara em segundo com um tempo memorável, 47’51, recorde continental, atrás apenas do australiano Eamon Sullivan que, na ocasião, batera o recorde mundial. Para efeito de comparação, com esse tempo, Phelps seria o terceiro colocado na prova individual, à frente de César Cielo e do conterrâneo Jason Lezak, que empataram em 47’67. Lezak era o último nadador do revezamento dos EUA, o responsáel por “fechar” a prova, como se diz entre os nadadores, e cairia na água junto com o homem que tinha vencido a prova individual, o francês Alain Bernard. Para dificultar a tarefa de Lezak, além de ter que bater um atleta que havia sido melhor que ele na competição individual, seu companheiro anterior tinha nadado a distância em cerca de um segundo mais lento que o adversário francês, e entregara o revezamento com meio corpo de desvantagem. Qualquer nadador teria todo o direito de ficar intimidado com essa incumbência. Se a natação, ou mesmo a vida, fosse lógica, e se respeitasse os resultados previamente obtidos, Lezak teria se matado de nadar e, mesmo assim, Bernard teria batido na frente. Phelps teria perdido nesse momento a chance de superar Spitz no número de ouros, mas nem poderia culpar o companheiro: ele estava nadando, em desvantagem, contra o campeão olímpico! Lezak nadou, portanto, por ele, pelo seu país – o presidente dos EUA, George W. Bush, estava na plateia, segurando uma bandeirinha –, por seus companheiros, mas muito mais por Phelps. Eram a vida, a carreira, a reputação de Phelps que estavam sendo decididas a cada braçada de Lezak. Ninguém acreditava. Era uma tarefa dificílima. Se é possível usar a expressão “impossível” para algo que, depois, foi feito, essa é a situação ideal. Antes de ele cair na água, o narrador da TV americana chega a dizer: “ele vai ter que voar”. Se ainda restasse alguma esperança ao maior dos crédulos, ele a teria perdido e desistido por completo quando visse que Bernard abrira o outro meio corpo de vantagem na virada dos 50 metros. A distância entre os dois beirava os dois metros e possívelmente um segundo. Porém, a volta de Lezak foi a mais fenomenal de todos os tempos. Ninguém parecia acreditar quando ele crescia e se aproximava de Bernard até que na chegada, bateu na frente do francês. Oito centésimos à frente do oponente. Enquanto Phelps gritava e comemorava, os companheiros franceses olhavam para o placar eletrônico, atônitos, sem acreditar no que tinha acontecido. Bernard escondia o rosto, ainda na piscina, envergonhado por ter perdido. Phelps tinha passado em sua prova mais difícil, mas ainda teria uma outra prova de velocidade pela frente. E dessa vez, não poderia contar com os companheiros. Eram os 100 metros borboleta.
Vinte anos antes, a mesma prova, 100 metros borboleta. Matt Biondi chega para competir podendo se tornar, ao menos o segundo nadador de todos os tempos, com seis ouros. Quase um Spitz. Uma medalha de diferença. Ao seu lado, o nome mais conhecido é o do alemão ocidental Michael Gross, apelidado de Albatroz, por ter uma envergadura comprida. Entre os oito finalistas, nadadores das maiores potências do mundo, à época. Além dos EUA e da Alemanha Ocidental, o Canadá, a Grã-Bretanha e a URSS. E um competidor do Suriname. Anthony Nesty. Reza a lenda que não havia nenhuma piscina olímpica no Suriname quando Nesty treinava lá. Seu país de origem tem tanta tradição na natação quanto o Zimbábue – que recentemente, aliás, teve uma nadadora duas vezes campeã olímpica, Kirsty Coventry. Nessa época, Nesty já treinava nos EUA e não era exatamente um desconhecido. Havia batido alguns recordes menores e tinha ganho o Pan de 1987 – mas estava longe de ser uma ameaça para os planos de Biondi. Quando o locutor chama o seu nome, o norte-americano mostra um sorriso confiante, quase displicente. A câmera de TV só o acompanha. O juiz pede para todos se aproximarem dos blocos de partida e percebemos a diferença física entre os nadadores. Nesty, negro, baixo para os padrões dos nadadores (1,80 m), com pouca musculatura. Gross, imenso (2,01 m), peitoral avantajado, cabelos louros amarelados. Biondi, altíssimo (2 m) , forte, ombros largos, cabelos pretos raspados à máquina. O juiz faz o pedido tradicional, “take your marks”, e apita, todos caem. Na água, como bom velocista que era, Biondi sai na frente de todos, virando os primeiros 50 metros abaixo do recorde mundial, e abrindo quase um corpo dos demais, que vinham juntos, num segundo pelotão uniforme. Aos poucos, contudo, ele vai cansando na volta, enquanto os demais se aproximam, vagarosamente. Porém, nada parece afetar Biondi seriamente. Tudo indica que ele vai se manter inteiro na luta pelas suas seis medalhas de ouro. A cinco metros da borda, todavia, todos os competidores estão bem próximos. Nesse momento, o espectador mais especulativo poderia imaginar que se houvesse mais uns dez metros, Biondi nem subiria no pódio: sorte dele que a prova acabaria em poucos instantes. Não foi preciso mais do que outros poucos metros. No “T”, a marcação nos azulejos do chão da piscina no formato dessa letra, Biondi mede sua última braçada de maneira errada e se estica todo para tocar a borda. Na raia 3, Nesty, com sua envergadura menos avantajada, dá uma braçada menor e encosta. O tempo de Matt Biondi: 53’01. De Nesty: 53’00. Biondi deixa de ganhar a medalha de ouro por apenas um único centésimo. O sentimento de incredulidade é compartilhado por todos. Enquanto Nesty sai da água para abraçar as pessoas, Biondi fica olhando para a borda, quase imóvel.
Novamente 2008. A sétima prova de Phelps era exatamente os 100 metros borboleta. A vitória seria dupla, a derrota, infinita. Se ganhasse, igualaria o recorde Spitz e ainda seria selecionado para o revezamento 4 x 100 metros quatro estilos dos EUA, com fortes chances de ganhar a oitava medalha. Se perdesse, repetiria o êxito de quatro anos antes, e ficaria no “quase”. Seria novamente o nadador que tentou bater Spitz e ficou bem próximo, duas vezes. Duas vezes falhando. Para complicar a prova para Phelps, por ser sua sétima prova, ele já estava mais exaurido que qualquer outro nadador naquela prova. Entre eliminatórias, semifinais e finais, Phelps tinha caído dezenas de vezes na água e nadado milhares de metros, entre elas, as provas mais cansativas que a natação tem, como o 400 metros medley e o 200 metros borboleta. Ao lado dele, estava o recordista mundial da prova, seu compatriota Ian Crocker. Se Crocker o vencesse, ele nem disputaria o revezamento e seu resultado seria ainda pior que o de quatro anos antes. Além dele, havia ainda um sérvio, nascido nos EUA, meio falastrão, chamado Milorad Čavić. Antes da competição, Čavić chegou a dizer que seria “bom” se Phelps perdesse a prova e ficasse marcado como o homem que apenas igualou o recorde de sete ouros. Phelps respondeu que quando pessoas falam coisas como essa, “it fires me up more than anything”. O norte-americano estava mordido. Queria a sétima medalha e a passagem para a eternidade.
Quando o locutor apresenta Čavić, na raia quatro, a dos favoritos, ele segura o escudo do uniforme de seu país – outro sem qualquer tradição no esporte – como quem quer demonstrar orgulho, comprovar que, mesmo tendo nascido nos EUA, é totalmente sérvio. Em seguida, é a vez de Phelps. Imóvel, completamente impassível, olhando para um ponto fixo logo acima do horizonte, escutando música, como faz sempre. Depois da apresentação obrigatória, apenas se vira e começa a tirar sua roupa. Na raia 6, Ian Crocker, já pronto para a prova, respira fundo, como se já soubesse que seria apenas o coadjuvante dessa disputa. Antes de subirem no bloco de partida, coincidentemente, Čavić e Phelps ficam frente a frente: ele decide subir por sua direita, e Phelps, pela esquerda. Eles não se encaram. Phelps apenas alonga os muito alongados braços enquanto Čavić balança os músculos. Sobem no bloco. Čavić faz o sinal da cruz, Phelps repete o seu procedimento padrão: abaixa o tronco à frente e cruza os dedos das mãos às suas costas para esticar pela última vez os braços, os soltando em seguida de maneira violenta para quase se autoabraçar, uma, duas, três vezes, como se estivesse batendo asas. Vai começar. Take your marks. Silêncio em todo o estádio. É agora. Bip. Todos mergulham e a torcida se transforma em uma plateia enlouquecida. A primeira braçada dos dois acontece concomitantemente, mas Čavić logo a seguir começa a liderar a prova com facilidade, enquanto Phelps, talvez sentido o cansaço, talvez optando por uma tática negativa – de voltas mais fortes que a ida –, está entre os últimos. Čavić passa os primeiros 50 metros em primeiro lugar, nove centésimos de segundo abaixo da parcial do recorde mundial. Ian Crocker está em segundo. Phelps continua como um dos últimos.
Além de ter uma grande “natação”, como se diz sobre os nadadores extremamente técnicos, com um estilo bonito de se ver, Phelps é uma grande especialistas também nos fundamentos: sua parte submersa da prova é, senão a melhor entre todos os competidores, uma das. Ao sair da água, após a virada, ele já é o quinto colocado, apenas meio corpo atrás de Čavić – mas o sérvio não vai entregar facilmente a prova. Aos 75 metros, Phelps já é o segundo, mas a diferença para Čavić diminui muito vagarosamente. Aos cinco metros da borda, novamente, pensamos: Phelps perdeu essa. No “T”, Čavić mergulha com a sua última braçada para bater na borda, enquanto a mão de Phelps ainda está no ar. Em seguida, filme repetido, protagonistas mudados, história já conhecida.
Phelps, 50’58. Čavić, 50’59.
Ele tenta esboçar uma comemoração: bate na água, tensiona os músculos, mas está cansado. Čavić vai cumprimentá-lo, em seguida Crocker. “Michael Phelps, você é absolutamente invencível”, diz o locutor da TV inglesa. Não há muito como discordar dele. Em outro momento, afirma: “Ele é um garoto de sorte”.
Sorte, um dos nomes da coincidência. Quando não sabemos muito bem o que acontece com nossas vidas, tentamos dar nomes para, ao menos, tornar essa situação mais familiar, nos afastar do desconhecido, nos confortar como uma figura familiar. Matt Biondi e Michael Phelps foram protagonistas de uma mesma peça em que a um foi dado um final não muito feliz, que, dentro dos padrões atuais, pode quase ser visto como ruim. Ao outro, a honra suprema. Para Biondi, estar próximo dessa coroa foi o seu maior problema. Phelps se esbaldou. O centésimo se transformou em uma moeda jogada ao ar que tinha cinquenta por cento de chance de cair para um lado ou para outro. O centésimo mudou de lado, dentro de uma história que visivelmente se repetiu, com personagens parecidos, locais similares, resultados diversos, angularmente opostos. Biondi na condição de favorito esperou que a borda chegasse para ele, assim como fez Čavić – que caíra na água na condição de homem a impedir a devastadora vitória do oponente. Phelps e Nesty foram em direção à chegada, como se não houvesse fim a corrida. Acreditando que enquanto não atingir o alvo, não chegou à conclusão. Eternizando o instante. Confiando que em um centésimo ainda é possível vencer.
Um centésimo. O piscar de olhos do clichê dura de dez a 20 centésimos. Praticamente a definição do “quase”. Um centésimo é quase inapreensível. Inexplicável. Não há nada que se possa fazer nesse tempo. Além de perder, ou ganhar, dependendo do lado que você encara o assunto. Um centésimo é o instantâneo. E o instantâneo é aquilo que nunca se apreende, é o eterno devir, é uma eternidade pelo seu lado oposto, aquilo que se modifica a todo momento. Menos quando entramos na transcendência. Então, um centésimo pode durar uma vida inteira e nunca ser esquecido. Para o mal ou para o bem.
Um centésimo. O piscar de olhos do clichê dura de dez a 20 centésimos. Praticamente a definição do “quase”. Um centésimo é quase inapreensível. Inexplicável. Não há nada que se possa fazer nesse tempo. Além de perder, ou ganhar, dependendo do lado que você encara o assunto. Um centésimo é o instantâneo. E o instantâneo é aquilo que nunca se apreende, é o eterno devir, é uma eternidade pelo seu lado oposto, aquilo que se modifica a todo momento. Menos quando entramos na transcendência. Então, um centésimo pode durar uma vida inteira e nunca ser esquecido. Para o mal ou para o bem.
Não existe uma lógica entre o nível da vontade de cada um e os resultados que daí se pode tirar. Não há como medir esse “querer” das pessoas, para saber quem era o que mais queria. Não há qualquer “justiça”, nos termos de quem faz bem, leva, que se esforça mais, ganha, quem merece é o bom. Ganha, simplesmente, quem bate na frente. Qualquer um pode entender esse processo. Não existe explicação complicada, estudo, ou outra tentativa de teorizar sobre o aspecto. Leva quem chega em primeiro. O placar eletrônico é amoral: registra os tempos e a discussão tem fim. Mas é tentador pensar o que faz um ou outro vencer. Treino? Alimentação? Biotipo? Vontade? Raça? Deus? Coincidências? E é ainda mais provocante quando isso ocorre com dois episódios em que um “justifica”, “explica” ou “desfecha” o outro. Como se houvesse, primeiro, um sacrifício para a compensação final, em que um personagem é imolado aos deuses da natação para a exibição pública de sua vergonha de ter perdido por um centésimo para que, 20 anos depois, um compatriota, um igual, pudesse alcançar a glória máxima, exatamente usando o mesmo procedimento. Os três atos explícitos: a vergonha inicial, a luta pela vitória e a consagração. O mentor e o aprendiz. Protagonistas americanos, antagonistas de nações menos famosas. Não é possível assegurar se as coincidências são realmente uma terceira forma de se encarar os atos e as ações. Novamente: é difícil fugir de tentar encontrar uma explicação, algo que decifre esse código superior, que possa torná-lo algo decodificável, que demonstre que há uma lógica atrás de tudo e que, portanto, estamos a salvos – o que a colocaria dentro da categoria da causalidade. Podemos imaginar que nesse caso, as coincidências podem ensinar algo, como a atitude ativa tende a ser melhor encarada pelo destino que a passiva. E logo descobrimos que é balela. Porque destino é apenas outro dos nomes que damos à coincidência.
ps. esse ensaio foi escrito antes do campeonato mundial deste ano. mas não mudam muito as minhas opiniões.
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