Essa cena do "Annie Hall" sempre foi uma das minhas preferidas. Um sujeito pedante, esnobe, que se autoaplica um verniz cultural, um pseudointelectual em suma, está discorrendo sobre diversos assuntos logo atrás do personagem de Woody Allen, Alvy Singer. Singer, claro, fica incomodado a cada frase de efeito, a cada paráfrase, a cada teoria inventada naquele momento. Nervoso, começa a discutir com Annie [Diane Keaton], até que não aguenta e pergunta ao espectador, diretamente, olhando para a câmera, como ele agiria numa situação dessas. O chato também sai do lado de sua parceira e vai discutir com Allen usando o argumento mais básico do mundo: "este é um mundo livre e eu posso me expressar do jeito que quiser" [ZZZzzz...]. Allen retruca perguntando quem era ele para dizer que sabia algo sobre Marshall Mcluhan, o último nome citado [namedropping é uma expressão em inglês que designa o fulano que fica enumerando celebridades intelectuais para mostrar, ou fingir, que os conhece]. O cara treplica informando que era professor de mídia-qualquer-coisa em Columbia e portanto era a pessoa mais indicada para falar sobre Mcluhan. Allen, furioso, diz que, em vez de falar sobre, chamaria o próprio Mcluhan para a discussão. O homem que cunhou a expressão aldeia global acaba dizendo que o tal professor não sabe nada sobre ele - Mcluhan - e acaba com o bate-boca.
Durante muito tempo Woody Allen caçoou do homem que se dizia culto em seus filmes. Talvez por ser realmente culto, em vez de querer parecer culto, talvez por perceber a completa desimportância de ser culto, talvez porque ele saiba que não exista essa história de intelectual, talvez por perceber que a cultura serve para absolutamente nada, dentro de um ponto de vista simplesmente existencial. Nessa última fase, digamos, pós-Nova York, ele caiu em várias armadilhas e se colocou no papel em questão - ou escreveu sobre esse personagem - de maneira mais condescendente. Como se percebesse que em um mundo aculturado, aquele que ao menos aparenta ter conhecimento é mais interessante que o completo ignorante. Em outras palavras: que é melhor um sujeito falar sobre Woody Allen sem nem mesmo ter visto um único filme dele, do que nem saber quem é o diretor nova-iorquino. Mas esse desvio no caminho durou pouco tempo. No último filme dele, "Midnight in Paris", novamente vemos um sujeito cheio das explicações profundas sobre a história da arte ser ridicularizado.
Verissimo - que já foi chamado, curiosamente, da versão brasileira de Allen - em uma de suas crônicas publicadas no seu primeiro livro [se eu não me engano - o que eu duvido - se chama "O popular"], faz uma brincadeira sobre quem seria os intelectuais. Como percebê-lo, como identificá-lo, como alimentá-lo, como tratá-lo, etc. Não é possível saber quem realmente tem conhecimento, ou quem finge, realmente. No fundo, como diz o próprio Verissimo em um contexto sobre Allen, só há raso.
Imagino que nem Woody Allen nem Luis Fernando Verissimo sejam contra a acumulação de cultura. As obras dos dois, as suas indagações, as suas propostas demonstram que isso seria completamente contraditório. O que eles propõem, na minha humilíssima opinião, é a quebra da sisudez da pessoa que tem acesso a esses conteúdos, mostrando que saber ou não o que Mcluhan disse ou quis dizer não torna ninguém melhor ou pior que outras pessoas. Ser ou não ser intelectual - se isso for possível - não é, ou não deveria ser, razão para dar privilégio a ninguém. É tornar a teoria do não-se-levar a sério uma prática diária.
4 comentários:
Como assim "a cultura serve para absolutamente nada, dentro de um ponto de vista simplesmente existencial"? A existência humana só é possível pela existência da cultura. Não necessariamente a cultura da literatura e das artes, mas a transmissão do saber. Era isso ou teríamos que desenvolver garras e presas ao invés do encéfalo e do polegar opositor, não? :)
Oui, mon bon ami. Nesse contexto que você coloca, é claro que a cultura - como acumulação de conhecimento geral - é indispensável para a, digamos, transformação humana. Indispensável e, eu acrescentaria, correlacionada. Não existe uma sem a outra.
No meu contexto, entretanto, a cultura é o acúmulo de conhecimento específico. No caso, em temas "artísticos", por exemplo. Ou sobre matérias valorizadas dentro de uma discussão "intelectual", como saber o que queria dizer Mcluhan. Nesse caso, a cultura é indiferente para sobrevivência humana.
E não vamos entrar na discussão sobre como todos os temas são entrelaçados nem sobre o conceito de "utilidade", tá? ;-)
Bacana. E eu acho que você captou bem o espírito da coisa. O Woody não tem aversão à "alta cultura", ou "cultura de teatro de ópera" (é a isso que você se refere, né?). Isso é muito evidente nos filmes e, mais ainda, nos seus textos. O que ele abomina - e eu acho que ele está certo - é a utilização social deste tipo específico de "informação" cultural. A "alta cultura", bem como qualquer tipo de cultura, pode ser "utilizada" ou "desfrutada" pra tornar a vida menos dura, mais suportável. Mas trazê-la à tona para as negociações sociais é a coisa mais ridícula do mundo inteiro.
Só tenho a repetir: "trazê-la à tona para as negociações sociais é a coisa mais ridícula do mundo inteiro". A mais ridícula.
Postar um comentário