sábado, 20 de julho de 2013

A humanidade segundo Hannah Arendt

[Uma versão menor do texto publicado na Revista de História.]


O que torna um homem Homem? Seriam os aspectos biológicos, uma junção de células que criam carnes, ossos, tendões, tecidos dos mais variados? Ou haveria algo além da mera questão evolutiva? Um caráter de humanidade, que diferencia o homem dos demais animais? Uma das mais importantes discussões que perpassa toda a história da filosofia, esta questão é o tema principal do filme “Hannah Arendt”, da diretora alemã Margarethe Von Trotta.

O longa-metragem, que, em certos momentos peca por um certo exagero dos atores, o que tira a naturalidade das cenas, não é exatamente uma cinebiografia da filósofa alemã de origem judia que migrou para os EUA para fugir da Segunda Guerra Mundial. Foca em um determinado episódio na história da autora de “As origens do totalitarismo” que ilumina, provavelmente, a principal discussão da sua vida: qual é “A condição humana” [não por acaso, nome de um outro de seus clássicos]?

Já morando em Nova York e com a sua vida completamente estabelecida, entre aulas na universidade e amigos e um marido a quem ela demonstra muito carinho, Hannah Arendt recebe a informação de que o famoso nazista Adolf Eichmann tinha sido preso pelo serviço secreto israelense em Buenos Aires e seria levado para julgamento em Israel. Ela, mesmo que não tivesse qualquer ligação direta com o caso, envia uma sugestão para a conceituada revista “The New Yorker” se oferecendo para cobrir, por eles, o processo.

Já na “terra sagrada”, ela assiste à dura rotina de depoimentos de testemunhas, de vítimas que passam mal em júri, e do próprio Eichmann. O alemão, em vez de admitir qualquer culpa no extermínio de milhares de homens e mulheres, se declara um mero cumpridor de ordens, um homem que simplesmente obedecia ao Führer. Mesmo que para isso tivesse que matar o próprio pai, naquele momento, ele era um soldado sem direito a retrucar as ordens enviadas. Hitler era a lei.

Hannah Arendt fica impressionada com o argumento e com o aspecto do réu. Ele parece tão normal, tão comum, tão banal, tão humano... E se ele não é o autor da ordem, seria ele o responsável pelas mortes dos judeus nos campos de concentração? Se ele é apenas o instrumento da ação de um mentor, ele seria igualmente culpado pelos crimes?

A resposta para todas as questões apresentadas até o momento neste texto é a mesma, e é insinuada logo no início do filme.

No início de sua vida intelectual, ainda bem antes da Segunda Guerra, Arendt decide ir estudar com um dos maiores filósofos do século XX, o igualmente alemão Martin Heidegger. Mesmo que anos depois Heidegger tenha colaborado com o regime nazista, os dois se aproximam e tem um caso de amor. Apesar das diferenças no campo político, os dois mantêm uma relação bastante próxima durante toda a vida, como pode ser comprovada pelas inúmeras cartas trocadas entre ambos.

Na cena em que a jovem Hannah se encontra com o já renomado professor, ele lhe pergunta: Então você quer aprender a pensar? Com a confirmação de Hannah, ele responde: O pensamento não se aprende. E não é apenas racional, mas envolve as mais variadas emoções.

A filósofa, já de volta a Nova York, se instala sobre o divã, fumando. Fica pensando o caso. Pensando o que tinha visto no julgamento, pensando as conversas que tinha tido com o seu mentor, anos antes, para tentar chegar a alguma conclusão. Pensando.

Após estourar o seu prazo, e demonstrando uma arrogância com as pessoas de fora do seu círculo de amizade quase exótica àquela personagem dócil de dentro de casa, ela entrega o texto que seria depois transformado no livro "Eichmann em Jerusalém" – e que causaria a provável maior controvérsia na sua vida.

Fazendo uma reportagem filosófica, digamos assim, Hannah Arendt não apenas desenvolve teses sobre o que viu ou pensou, mas também descreve o cotidiano do julgamento. Em uma de suas descrições, ela fala que houve uma espécie de conivência entre as lideranças judias e os comandos nazistas. Conivência essa que talvez tenha sido vista como uma forma de sobrevivência num primeiro momento, mas que, para ela, causou mais mortes no fim das contas.

Essa passagem, que não era nem próximo do ponto principal a que ela se agarrava, lhe causou uma inundação de cartas e ameaças. Judia, ela era acusada de trair o movimento sionista. Mesmo que ela dizia que sua pátria não era a Alemanha, Israel ou os EUA, mas os seus amigos.

O que a filósofa queria deixar claro era que, para ela, Eichmann, assim como todos os homens e mulheres afetados diretamente ou indiretamente pelo nazismo, tinham perdido o dom mais precioso de suas vidas: a humanidade. O totalitarismo tinha retirado a capacidade dos homens e mulheres de pensarem, do jeito que Heidegger sugeriu - e essa é uma das características principais do totalitarismo.

Fossem nazistas ou judeus, alemães ou poloneses, os homens e as mulheres se transformaram em seres sem vida, que ou repetiam ordens sem refletirem sobre, ou lutavam única e exclusivamente por sua sobrevivência. Para Arendt, o homem não sobrevive, o homem vive. Daí, de uma maneira geral, o totalitarismo nazista teria atingido a todos, sem determinações geográficas.

O filme sugere que o que torna um homem Homem é o ato de pensar, não no sentido de repetir automaticamente as decisões racionais, mas se envolver com as questões de maneira mais profunda, mais emotivamente, em suma, de maneira mais humana.

Em uma carta de Hannah Arendt para Martin Heidegger datada de setembro de 1969, ela parece confirmar esse raciocínio:

“Estamos tão habituados à antiga contraposição entre razão e paixão, espírito e vida, que nos espantamos em certa medida com a representação de um pensamento apaixonado, no qual pensar e viver se unificam. Este pensamento que se alça enquanto paixão a partir do simples fato de ter-nascido-em-um-mundo e então ‘procura seguir com o pensamento o sentido que vige em tudo o que é’ comporta tão pouco uma meta derradeira - o conhecimento ou o saber – quanto a própria vida.”

E completa em seguida:

“O fim da vida é a morte, mas o homem não vive por causa da morte. Ele vive porque é uma essência vital; e ele não pensa por causa de um resultado qualquer, mas porque é uma essência ‘pensante, isto é, meditativa’.”

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