domingo, 22 de junho de 2014

'Orfeu. Eurídice. Hermes', de Rilke

Insondável era a mina das almas.
Como veios de prata serpeavam
silentes pela treva. Entre raízes
jorrava o sangue no deflúvio para os homens,
e parecia duro como pórfiro nas trevas.
Nada foi mais vermelho.

Somente rochedos
bosques insubstanciais. Pontes sobre o vazio,
e o lago imenso, pardo e cego,
suspenso do fundo distante
como pluvioso céu sobre uma paisagem.
Entre prados, suave, em plena calma,
surge o traçado tênue do trajeto
estirado como longo risco branco.

Deste caminho único vinham eles.

À frente, o esbelto homem no manto azul,
mudo, impaciente, olhos fixos no alvo.
Sôfrego, devorava o caminho em grandes tragos
Com os seus passos; as mãos pensas,
graves e fechadas no colapso das rugas
nada mais sabiam do alívio da lira,
que pendia da ilharga esquerda
como um feixe de rosas em ramo de oliveira.
Seus sentidos estavam bifurcados:
o olhar como um cão o precedia,
voltava, no ir e vir pairava sempre ao longe,
aguardando na primeira curva,
mas o ouvido permanecia atrás como um perfume.
Parecia-lhe sentir às vezes
a caminhada dos outros dois,
que deviam segui-lo na senda ascensional.
Não restava, todavia, senão o rumor dos seus passos
que subiam ao aflar do vento no seu manto.
Mas a si mesmo dizia que decerto vinham.
Dizia bem alto e ouvia o esmaecer da voz.
Eles vinham, mas os dois encalçavam
os passos terrivelmente inaudíveis. Se pudesse
voltar-se uma só vez (não fosse a retrovisão o fim
do intento em vias de se consumar) veria
as plácidas figuras, que o seguiam, silenciosamente:

o deus viajor e mensageiro das distâncias,
o capacete sobre os olhos claros,
o fino caduceu diante do corpo,
o propulsar levípede das asas
e, confiada à mão esquerda: ela.

Amada sublime, que suscitou na lira
mais lamento do que as carpideiras,
em clamor convertendo o mundo: bosques e vales,
caminhos e povoados, campos e rios e animais;
em redor no mundo do clamor, como em outra terra,
a queixa tácita do sol e o constelado céu
um céu em pranto com estrelas disformes -
A sublime amada.

Ia guiada pela mão do deus,
o passo tolhido pelas longas vestes fúnebres,
incerta, branda, sem pressa.
Ia dentro de si, como suprema esperança,
e não pensava no homem que ia à frente
nem no caminho escalonado rumo aos vivos.
Estava em si. E o estar morta
dava-lhe plenitude.
Como um fruto de doçura e treva,
estava plena em sua grande morte,
tão nova que nada entendia.

Entrara em nova adolescência
inviolada; seu sexo era
botão em flor no entardecer,
e suas mãos eram tão alheias ao enlace
que mesmo o toque suave
do levíssimo deus que a guiava
a magoava como ousada intimidade.

Já não era a mulher loura
divulgada nos cantos do poeta
nem aroma e ilha do largo leito
nem propriedade desse homem.

Estava solta como os seus cabelos
liberta como chuva que cai
exposta como copiosa provisão.

Agora era raiz.

E quando enfim o deus
a deteve e, com voz condoída,
pronunciou as palavras: "Ele se voltou". -
ela não compreendeu e disse: "Quem?"

Mas ao longe, sombrio na saída clara,
estava alguém, cujo rosto
era irreconhecível. Ele estava parado e viu,
em meio à clareira do caminho,
o deus mensageiro, com olhar tristonho,
volver-se e acompanhar, silencioso, o vulto
que retornava pela mesma via,
o andar tolhido pelas vestes fúnebres,
incerto, brando, sem pressa.

(Trad. Ronaldes de Melo e Souza. A versão original está aqui.)

[Esse poema de Rilke me fez pensar numa outra interpretação para o tema de Orfeu e Eurídice. Após a tragédia, que é a morte de Eurídice, Orfeu poderia estar com ela desde que a mantivesse na memória, no seu pensamento, na sua imaginação. Ela não poderia se materializar. Era algo que não existia. Ao confrontar a realidade, Orfeu a perde. Eurídice já era outra Eurídice após a morte. Orfeu jamais a teria de volta.]

domingo, 15 de junho de 2014

Hinos de guerra no futebol

Se já há um saldo positivo desta Copa, além do gol do Van Persie e da subsequente goleada holandesa sobre a Espanha, é a invasão do Brasil por nossos amigos sul-americanos e a sua mais bonita, emocionante e arrasadora consequência: a moda de cantar os hinos de seus respectivos países a cappella. Começou com o Brasil, passou pelo Chile e chegou à Colômbia. Coincidência ou não, o único sul-americano que não usou desse subterfúgio [ou eu nem percebi], o Uruguai, perdeu.



Esse ato aparentemente simplório tem uma série de efeitos. Primeiro, os óbvios. O hino nacional se transforma num grito de guerra. É o momento que os jogadores se irmanam e percebem que fazem parte de um mesmo grupo, de uma mesma equipe, de um mesmo país. Eles têm características diferentes, mas objetivos comuns e vão lutar, juntos, para atingi-los.

Não precisa nem ter em suas letras refrões como "Aux armes, citoyens / Formez vos bataillons / Marchez, marchez! / Qu'un sang impur / Abreuve nos sillons!"; ou versos como "O Lord our God arise / Scatter her enemies, / And make them fall: / Confound their politics, / Frustrate their knavish tricks"; ou ser explícito como: "Son giunchi che piegano / Le spade vendute: / Già l'Aquila d'Austria / Le penne ha perdute. / Il sangue d'Italia / E il sangue Polacco / Bevé col Cosacco, / Ma il cor le bruciò" [aqui uma explicação da passagem], ou precisar saber muito de línguas estranhas para entender logo de cara quem é o maioral: "Deutschland, Deutschland über alles, / Über alles in der Welt". O hino é para dizer quem é amigo e quem é alemão.



Mesmo o brasileiro, que foca mais no tamanho ["Gigante pela própria natureza"] e das belezas do país ["Deitado eternamente em berço esplêndido / ao som do mar e à luz do céu profundo"], tenta elencar, logo de cara, muito sutilmente, quem é o nosso adversário: a ex-metrópole. O "brado retumbante" do "povo heroico" foi ouvido "às margens plácidas" do Ipiranga. Não há negociação, nem empate. É "independência ou morte", é vitória ou, em caso de qualquer outro resultado, derrota.

Salvo os exageros nas aproximações [tenho o defeito de enxergar mais as semelhanças que as diferenças], me lembrou a haka dos jogadores de rúgbi neozelandeses. Mas se não quisermos ir tão longe, me lembrou também a ladainha, o canto que antecede o jogo propriamente dito da capoeira, em que um solista faz uma lembrança dos seus antepassados, das suas origens, da sua história, portanto. Ou ainda aquela reunião que a galera de teatro faz logo antes das cortinas abrirem. Em todos os casos, é o momento em que todos presentes se juntam, como um só corpo, esquecem o mundo lá fora, e focam, juntos, no mesmo ponto.



Não é acaso que os times que cantaram o hino a cappella jogaram com uma vontade muito maior que a do adversário. Nem sei se o Brasil foi melhor que a Croácia - acho que não - mas entrou em campo querendo comer a bola. O mesmo pode ser dito para o Chile, que ainda deu uma bobeada contra a fraca Austrália, ou a Colômbia que, apesar da falta de Falcao García, não tomou conhecimento da Grécia, mesmo com Sócrates em campo.

Mas se todos esses argumentos não forem suficientes, basta lembrar que é uma maneira muito delicada de quebrar um protocolo da Fifa. A toda poderosa do futebol que não gosta de fazer nada fora das regras [com a exceção de algumas negociações envolvendo dinheiro] não tem poder para impedir que os jogadores simplesmente parem de cantar seus hinos. Claro que, para a Fifa, é o tipo de quebra de protocolo que é até bem vinda, já que não atrapalha seus interesses comerciais, ao contrário, mas enxergo esses atos como pequenos protestos muito barulhentos. Como se dissesse que a Fifa não manda em tudo.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Termos em disputa

Que a linguagem foi o grande tema da filosofia no século XX, isso, quem já ouviu falar de Wittgenstein, Heidegger, ou do próprio Benjamin, não há como negar. Acredito que seja fruto ainda da chamada "morte de Deus", anunciada com estardalhaço por Nietzsche, ou seja, do fim dos parâmetros superiores que controlavam, comandavam o que era certo ou errado, bom ou mau, verdade ou não-verdade. A partir de então, cada palavra teve que se virar sozinha, a partir da interpretação dos interlocutores que a estão usando.

Não é incomum que, antes de falar sobre qualquer assunto, o pensador passe um tempo justificando a utilização do termo que virá a seguir. É o caso, por exemplo, da palavra "autoridade", no famoso texto "O que é autoridade", em Entre o passado e o futuro, de Hannah Arendt. Igualmente comum que se procure noções que fogem do senso comum [e aí já começamos: "senso comum" no sentido Arendtiano, de um terreno/momento em que as pessoas dividem a mesma opinião] para expressões consagradas. É o caso, igualmente conhecido, de "verdade", na filosofia de Heidegger.

A história é conhecida e criticada. Heidegger teria analisado Platão, mas não somente ele, para demonstrar o momento em que a noção de verdade muda. Num primeiro momento, é apresentado como a retitude de um conceito em relação a uma ideia. Em outros termos: quando um termo corresponderia a uma coisa (ente) - a forma de interpretação usual, mas não única, da atualidade. Quando pensamos em "casa", por exemplo, muitas informações nos inundam, mas há um senso comum sobre o que seria "casa". Se disputássemos cada conceito, toda frase viria com um aposto. A verdade, num segundo momento da filosofia de Platão, nos revela Heidegger, seria descrita com a famosa palavra "alétheia", que, grosso modo, quer dizer "desvelamento".

Seguindo essa interpretação, para Heidegger, só seria possível encontrar o que é verdade, em poucos momentos, quando ela [a verdade] saísse do velamento, do esconderijo, e aparecesse. Heidegger é um pensador que, como sabe quem conhece sua principal obra, quer falar sobre o "ser", ou seja, o que nós, eu, você, todo mundo, seríamos sem o auxílio das carapuças que usamos diariamente. Sem ser jornalista, irmão, amigo, ex-marido, estudante, sem esses penduricalhos mundanos, ou, por outro lado, com a soma de todos eles, o que nós somos, o que é o nosso ser.

O filósofo alemão lembra que o ser tende a se esconder e só se apresentaria em determinados momentos, como em um flash. É o momento da verdade, ou melhor, a verdade em si. Não seríamos capazes de sermos verdadeiros em todos os momentos, mas há situações que somos. É fácil de entender com um exemplo bobo.

Sabe quando escutamos uma música [ou vemos um filme, ou olhamos um quadro etc.] que nos toca profundamente? Esse seria o momento em que teríamos contato com o ser. Não é comum, não é corriqueiro. Mas acontece. E, para comprovar como a linguagem é o tema dessa conversa aqui, nessa situação, quando vemos [ouvimos, observamos...] a verdade, não a conseguimos colocá-la em palavras.

Recorremos aos tais penduricalhos - o que Heidegger chama de "entes" - para tentar transmitir essa emoção, essa abertura, mas nunca passamos a verdadeira relação com o ser,com a exceção apenas de você conseguir provocar o mesmo "desvelamento" naquele que lê [ouve, vê...]. Falamos sobre a história da música, da banda, sobre a trajetória dos músicos, sobre suas influências, sobre os instrumentos, recursos utilizados, sobre as novidades supostamente apresentadas... mas isso não é o ser, isso são só entes que encobrem o ser. A verdade foi o que mexeu conosco e não dá para ser apreendida.

Recentemente, percebi como os termos em disputa causam problemas [graves ou pequenos, não importa] no cotidiano, exatamente pela falta de um senso comum. A polêmica envolvendo a hashtag #nãovaitercopa é um exemplo disso. Não acredito que os criadores desse slogan pensaram em sã consciência que conseguiriam expulsar a Copa do Mundo do Brasil. Bastaria pensar em Maquiavel e lembrar que o governo tem a força militar e a usará para impedir qualquer tipo de manifestação mais exaltada.

Mesmo que os criadores do slogan, ou seus primeiros bradadores, tivessem acreditado nessa utopia, de que a Fifa retiraria do Brasil a organização da competição, a poucos meses da realização do evento, não acredito [outra vez] que tenham ficado exatamente decepcionados com os resultados da massificação desse grito de guerra. Porque a expressão era isso tudo aí que eu escrevi: uma hashtag, um slogan, um grito de guerra. Em todos os casos, ela carrega mais um desejo que uma profecia. E o desejo não precisa ser completamente realizado, porque o desejo é móvel, nunca estanque, e tende a ser nunca realizado mesmo, por completo.

De certa forma, é difícil de entender mesmo: vai ter Copa e não vai ter Copa. É claro que Brasil e Croácia vão entrar em campo num Itaquerão não concluído na próxima quinta-feira para dar o pontapé inicial da competição. Mas, de certa forma, ao tornar a expressão "não vai ter Copa" comum, os manifestantes fizeram algo ainda mais difícil que cancelar a competição: fizeram uma nação inteira acostumada a viver a vida no fluxo a interromper o processo e pensar sobre o assunto.

O resultado disso é a enxurrada de justificativas para dizer o óbvio: que vamos todos [ou a grande maioria] torcer pela seleção. Um jogo de alto nível bem jogado é uma das possibilidades, arriscaria, de nós encontrarmos a verdade desvelada, para citar o Heidegger aí de cima, e isso é mais complicado que terminar as obras do aeroporto Galeão. Mas ninguém, com a exceção do governo e de seus partidários, apoia a maneira como essa Copa foi realizada. Ou seja, com essa confusão toda, com esse debate exacerbado, reforçamos uma distinção que está caindo bastante em desuso: privado x público. Vai ter Copa, privadamente, não vai ter Copa, publicamente.

ps. Qualquer crítica aqui ao governo não é um apoio ao lado direito-negro da força, ao contrário: a tentativa é forçar que atitudes mais à esquerda sejam tomadas. Porque pensar que o PT seja de esquerda é esquecer que os bancos brasileiros tiveram os maiores lucros da História nos últimos 12 anos.

terça-feira, 3 de junho de 2014

#nãovaitercopa x #vaitercopa



Essa discussão de #nãovaitercopa x #vaitercopa só me faz lembrar esse episódio antológico da "Comédia da vida privada". Revi novamente e, além de me arrepiar em diversos momentos, quase chorei em duas passagens.

No fim, o que o seriado defende é: temos que separar as nossas relações privadas das públicas [o que cada vez mais se torna difícil no dia-a-dia].

Metáfora da natação

Comecei a nadar com seis meses de idade, se os relatos que eu escutei a vida inteira estão corretos. Antes dos 5 anos, já dominava os quatro estilos. Aos 5, fui federado, e tinha o segundo número de inscrição mais baixo entre todos os atletas fluminenses da minha idade [eu conheci o primeiro]: 25.079. Nadei ininterruptamente até os 16 anos quando, depois de muitas decepções minhas, pessoais, resolvi viver a vida fora das piscinas. Não voltei a nadar até os 26, porque o luto era forte. Entre idas e vindas, após o retorno, continuo nadando até hoje. Mas, recentemente, houve uma grande mudança nesse meu hábito.

Durante esses quase 30 anos de braçadas, eu praticamente só nadei dentro de piscinas. Em um espaço razoavelmente controlado, limitado, onde você sabe muito bem o que te espera. Era um constante ir e vir, um exercício de contar azulejos. Poucas vezes havia algo que fugisse de um marasmo, de algo extremamente repetitivo e monótono. Entre essas exceções, lembro da lenda da piscina do Guanabara que escutava quando criança, e onde, por acaso, fui nadar de maneira bem amadora muitos anos mais tarde.

O Guanabara, que fica aqui pertinho de casa, tem a piscina olímpica mais antiga não só da cidade como de todo o Brasil, segundo o site oficial deles. A construção se iniciou em 1932 e acabou em 1935, e foi sede do campeonato sul-americano deste ano, além de, ao longo de sua história, ser palco de cinco quebra de recordes mundiais, inclusive de gente como Maria Lenk, Manoel dos Santos e José Fiolo, nomes que são famosos para quem lembra um pouco da história da natação. Há uma placa com o feito de Fiolo no parque aquático até hoje, por exemplo.

Por ser uma piscina tão antiga, e dedicada igualmente a outras modalidades dos esportes aquáticos, os engenheiros acharam por bem fazer o poço, aquela fundura enorme que serve de segurança para a galera dos saltos ornamentais, na mesma piscina. Até aí, mais ou menos tudo bem. É como se, ao nadar nas raias centrais, olhássemos para o abismo das profundidades, que nem sendo tão profunda assim [gira em torno de seis metros] parece uma eternidade para quem está passando ali em cima. Para piorar, quando éramos garotos, a área do poço estava totalmente tomada por lodo, como se não fosse limpa há décadas. Não se enxergava nada além de uma espessa cobertura de limo verde-amarronzado.

Girava entre os garotos a lenda de que haveria uma ligação clandestina entre a piscina e a baía de Guanabara, que fica literalmente do outro lado da rua, na sua vertente praia de Botafogo, o que justificaria o gosto salobro da água - e o que também explicaria a quantidade de recordes ali, já que a água mais densa proporciona uma maior flutuação, portanto menos atrito, além de uma maior capacidade de deslocamento com as braçadas. Nós, meninos ainda crédulos das coisas desconhecidas, não pensávamos muito nisso: apenas nadávamos mais forte todas as vezes que por azar caíamos nas raias centrais [onde normalmente ficam os melhores tempos balizados]. Eu, particularmente, fechava os olhos, de medo. Como dizem por aí: para olhar para o abismo tem que estar forte, porque, senão, ele pode olhar de volta.

De toda forma, a principal diversão de quem nada na piscina é, muito provavelmente, a competição. Nem, necessariamente, ser mais rápido que o coleguinha, algo muito comum entre nadadores que tem a síndrome do peixe beta - aquele que não pode ver um igual que quer logo brigar. Mas, se já está um pouco mais maduro, ser mais rápido que você mesmo. Como se você estivesse sempre querendo evoluir. Ou nunca estivesse satisfeito consigo mesmo. Ou tendo que arranjar maneiras de não morrer de tédio.

Recentemente, eu dizia, recentemente houve uma mudança. Decidi aproveitar que eu vivo numa cidade litorânea, e na proximidade de praias que, segundo o governo estadual [quem ainda acredita nele?], estão balneáveis, resolvi simplesmente abandonar a piscina e nadar na praia. Escolhi, para o receio de amigos, conhecidos, gente que gosta de mim, e quer me ver com saúde, a praia Vermelha, por ser, bem, por ser na minha rua. Todos os dias que não chove, nem na véspera, nem no dia anterior, eu dou minhas braçadas de um lado a outro dos morros, da Urca e da Babilônia [acho que o nome é esse]. Só não faço virada olímpica porque de um lado a pedra está tomada de limo, e do outro, não há pedra para se virar.

Antes desse novo cotidiano, a minha impressão foi outra: medo. Essa informação não deveria assustar quem me conhece já que eu sou um dos maiores medrosos que existe. Mas era um medo meio generalizado, sem um motivo específico. Era medo do que eu não conhecia, medo do que eu suspeitava, medo do que eu poderia conhecer. Medo, medo, medo. Nadar no mar, mesmo que numa praia bem delimitada, com uma distância de cerca de 250 metros entre uma pedra e outra, numa profundidade que não deve passar a da piscina do Guanabara [que, aliás, foi limpa há cerca de dez anos], dá medo. Ou me deu medo.

Em várias oportunidades, não dá para enxergar um palmo à frente da cara. Sempre é necessário levantar a cabeça para saber se você não vai ser atropelado por um caiaque, um sujeito no stand-up paddle, por um pequeno barco, ou mesmo por um outro nadador. Na pedra do morro da Babilônia, sempre há um homem vestindo branco e pescando, e desde que ainda garoto vi um outro menino ser fisgado por um anzol e ter que cortar a própria carne para retirar, com a menor consequência, o pedaço de metal da perna, eu tenho receio de ser pescado também. No outro lado, aos pés da pista Cláudio Coutinho, é comum encontrar gente que faz pesca submarina, com seus arpões prontos para disparar. Há uns anos, um sujeito flechado por essas armas brancas [como diria O Globo] apareceu boiando nesta mesma praia. Fora que é difícil confiar nas medições do governo quando você encontra todos os tipos de objeto boiando na praia, especialmente às segundas-feiras, após um domingo bastante ensolarado - mesmo que os parâmetros entre o que o governo avalia e o que eu vejo sejam diferentes.

Nadar no mar, descobri, é outro esporte. Mesmo que a água seja mais densa e, como já vimos, auxilie na natação, manter o equilíbrio dentro d'água é um exercício que não para nunca. Como as águas, mesmo as mais calmas, estão sempre se mexendo, o primeiro esforço que se faz é para ficar quieto, parado, para seguir adiante. É um trabalho constante que aumenta de intensidade conforme o mar está mais nervoso. É um negócio de estabilizar-se para logo se desestabilizar e forçar a estabilização, que logo sai de estabilidade. Parece um equilíbrio em movimento. Uma ginga da capoeira. O andar de bicicleta. Sabe aquele nado bonito, esbelto, que você viu nas Olimpíadas e conseguiu repetir depois de muito esforço? Esqueça. No mar, nadar já é muito.

Em um segundo momento, nadar no mar requer uma disciplina ainda mais ferrenha, porque você sempre tem que estar atento para não ser atropelado, como dito acima, mas também para nadar em uma linha razoavelmente reta: você deve ir em uma direção que você mesmo pré-estabeleceu. Além disso, todas as vezes que você se desliga, algo te rouba a atenção. Uma vez, encontrei um cardume de peixes bem pequenininhos e nadei sobre eles por cerca de 20 segundos. Parece pouco, mas me senti naquela cena do personagem principal do "Barba ensopada...", do Galera, quando ele nada sobre uma baleia [aliás, parece que a cena realmente aconteceu com o autor; aliás 2, parece que Galera também nadava na praia Vermelha quando no Rio]. Minha atenção foi tomada por aqueles peixinhos. A velocidade com que eles mudavam de rumo. O ritmo coreografado entre todos. Era por demais fascinante para eu poder pensar em qualquer outra coisa além.

Há também a beleza natural do Rio, que eu, talvez por ter nascido em outra cidade, ainda não me acostumei. É muito impressionante respirar para um lado e olhar para o Pão de Açúcar, ali, do meu lado, enorme, impávido colosso. Respirar para o outro e ver, lá de longe, o Corcovado e a estátua daquele moço de braços abertos como se quisesse dar um abraço na cidade inteira. Mas o principal é o sentimento de liberdade. O horizonte que não tem fim. É o não enxergar bordas por todos os lados. O não ver os limites postos tão fisicamente. Isso, realmente, é enobrecedor. Claro que há limites - não nado quando chove, não nado quando alguém, eu ou o mar, está de ressaca, não nado quando estou cansado, quando tenho que fazer outras coisas. Mas há ainda muita liberdade dentro dessas limitações. Uma liberdade que geralmente não enxergamos quando estamos presos à vida dentro da piscina.

Para isso, para enxergar essa liberdade, não ver esses limites como inibidores, mas como incentivadores, descobri que há de se ter um pouco de coragem. E coragem nada mais é que enfrentar os próprios - e não de outrem - medos. E os medos são sempre, me parece, do nosso tamanho.