sexta-feira, 21 de junho de 2024
quinta-feira, 11 de abril de 2024
"A queda do céu", excerto
Eles dormem sem sonhos, como machados largados no chão de uma casa. Enquanto isso, no silêncio da floresta, nós, xamãs, bebemos o pó das árvores yãkoana hi, que é o alimento dos xapiri. Estes então levam nossa imagem para o tempo do sonho. Por isso somos capazes de ouvir seus cantos e contemplar suas danças de apresentação enquanto dormimos. Essa é a nossa escola, onde aprendemos as coisas de verdade. (Kopenawa & Albert: 2015, e-book)
terça-feira, 9 de abril de 2024
Niilismo hoje - curso de filosofia
Na minha tese, brinco que o niilismo virou o último lugar de fala do homem-branco-hétero-cis. Seria apenas uma blague se o modo de pensar desse personagem, que se acha a maioria, não estivesse ainda no comando do mundo atual. Por isso que o niilismo ainda é contemporâneo.
Talvez não o niilismo da falta geral de sentido, que é o modo mais comum de entendê-lo – ou não apenas esse. Mas uma busca incessante para encontrar um fim para a vida, mesmo que seja o fim da vida. E estão aí religiões castradoras e trabalhos entediantes que não me deixam mentir.
Como não ter um sentido gera muita angústia, e podemos perceber isso em pessoas que sofrem de depressão, aqueles que acreditam nos paradigmas de sucesso do mundo contemporâneo precisam encontrar algo para dar um motivo para as suas vidas. Mesmo que seja um sentido asfixiante.
Nada contra saborear pequenas vitórias no cotidiano – e essa é provavelmente uma das formas de sobreviver nesse mundo –, nem contra certas concessões que devemos fazer para continuar funcionando enquanto a ~~revolução não vem e tudo mudará. Mas certas escolhas são derrotas dadas, antecipadas.
Quando optamos por uma vida em prol unicamente de reconhecimento externo, em vez de buscar realizar nossos desejos mais íntimos, estamos bem perto de cometer um longo e sofrido suicídio. E essa morte em vida é uma das formas mais simples de definir o que é esse niilismo hoje.
Por isso que é comum em diversos filmes bem populares que um personagem quando se descobre à beira da morte comece a, finalmente, viver tudo aquilo que ele sempre quis viver, mas nunca teve coragem para tal. Ironicamente, apenas ao fim da vida, que ele reconhece o seu valor.
Vamos falar sobre esses e outros temas correlacionados no meu curso Niilismo hoje, que será realizado na Acaso Cultural, uma casa de cultura que começou a funcionar numa construção histórica linda em Botafogo. Inscrições aqui.
quarta-feira, 3 de abril de 2024
Wordsworth, The Tintern Abbey Ode
… And I have felt
A presence that disturbs me with the joy
Of elevated thoughts; a sense sublime
Of something far more deeply interfused,
Whose dwelling is the light of setting suns,
And the round ocean and the living air,
And the blue sky, and in the mind of man:
A motion and a spirit, that impels
All thinking things, all objects of all thought,
And rolls through all things. Therefore am I still
A lover of the meadows and the woods and mountains.
….
Wordsworth: "The Tintern Abbey Ode"
quarta-feira, 20 de março de 2024
'Daquilo de que somos feitos', Ádamo da Veiga
Em geral, não gostamos de admitir para nós mesmos certos afetos, sentimentos, impulsos que consideramos ruins. O ressentimento é desses. O livro do Ádamo da Veiga, Daquilo de que somos feitos, mostra porém que independente da nossa vontade, essas paixões tristes nos compõem -- a todos.
O livro pode ser comprado aqui |
A obra conta a história de um professor de Filosofia, gay e obeso, que vive remoendo as muitas possibilidades de vida que ele poderia ter tido e nunca encarou. Um dia, o fatídico dia em que toda a ação se passa, ele vai viver uma situação extrema que torna as coisas ainda piores.
Antes de continuar, um disclaimer: Ádamo é um grande amigo e a obra foi carinhosamente dedicada a mim. Então essa resenha não é exatamente isenta. Eu encaro essa dedicatória, contudo, não exatamente ou apenas como uma homenagem: mas porque eu sou "especialista" em ressentimento.
Dito isso, podemos voltar ao livro, que é narrado em um fluxo de consciência paranoico, que emula o pensamento repetitivo desse professor que quer começar uma vida nova, se cuidando mais e valorizando suas relações, mas não consegue sair do lugar de reclamações constantes.
Apesar de começar com a mencionada cena extrema - um ex-aluno invade sua aula com uma arma, sequestra a classe e fala que vai matar todos -, "Daquilo..." fala mais sobre os ressentimentos do protagonista e das pessoas ao seu redor. Inclusive, claro, o tal ex-aluno.
O lançamento oficial ocorre dia 13 de abril |
Não sobra para (quase) ninguém. A ex-namorada feminista do aluno-problema? Ressentida. Um tio malandro do protagonista? Ressentido. Os colegas professores? Todos ressentidos. Só não são ressentidos aqueles personagens sobre quem o protagonista fantasia.
O grande mérito do livro, assim, é mostrar a arapuca em que nos metemos quando queremos mais parecer justos do que ser justos. O ápice aliás é uma reunião dos professores para saber se expulsam ou não o então aluno. O resultado já sabemos desde a primeira página do livro. Mas...
As boas intenções dos personagens realmente bons não os livram de cometer injustiças em busca de uma vingança em formato de reparação histórica que, em vez de transformar estruturalmente a origem do problema, acaba por apenas desaguar o ódio acumulado por gerações.
Em vez de in dubio pro reo, devemos julgar aquele arquétipo como representante da sua estirpe. Aliás, esse é outro trunfo do livro: os personagens, salvo exceções importantes no livro, não têm nome: são padrões que conhecemos, apenas exagerados. Em uma palavra: são caricaturas.
"Daquilo de que somos feitos" mostra o quanto estamos afundados na lama do ressentimento, esse afeto reativo que nos torna fracos, e que essa lama, se não elaborada e transformada em um adubo, pode fermentar para um movimento que destrói nossas bases sociais. Como nós bem sabemos.
terça-feira, 19 de março de 2024
Nova Iguaçu, a Laranja mecânica
Como comentei com um amigo e ele não sabia, vim aqui fazer meu dever de iguaçuano nascido-e-criado na cidade e explicar por que o uniforme do Nova Iguaçu Futebol Clube é laranja - talvez sirva para alguém.
[Killer Bill depois de marcar contra o Vasco] |
A explicação é simples: Nova Iguaçu, essa megacidade de quase 800 mil pessoas, a 24o mais populosa do país, a maior em extensão da Baixada, não é conhecida só por conta da Fani e o seu urru, mas por ter sido uma grande produtora de laranjas até o meio do século passado.
Minha mãe, nascida no Jardim Botânico mas que foi morar na cidade na década de 1950 por conta de tretas familiares, dizia que a cidade tinha um cheiro encantador de laranja que dava para sentir até da estação de trem.
Confirma o site da prefeitura da cidade:
"No século XX, a principal atividade... passa a ser o plantio de laranjas. Os pomares de Nova Iguaçu se estendiam por toda a Est. de Madureira, Cabuçu, Marapicu, alcançando também Itaguaí. Na época, Nova Iguaçu ficou conhecida como 'Cidade Perfume' por causa do cheiro das frutas"
De Nova Iguaçu saíram [quase] todos os outros municípios do que hoje é considerada a Baixada Fluminense: "Nova Iguaçu perdeu Duque de Caxias (1943), Nilópolis e São João de Meriti (1947). Nos anos 90, foi a vez de Belford Roxo e Queimados (1990), Japeri (1991) e Mesquita (1999)".
Do passado de laranjas, ficou pouca coisa, como um mural sobre o supermercado onde eu ia comprar sempre leite, pão ou farinha para a minha mãe. O supermercado mudou de lugar e um banco agora o ocupa o espaço. O mural continua.
[peguei a imagem no google maps] |
E, claro, a camisa do time de futebol que está na final do Campeonato Carioca deste ano. Por essas e outras que eu posso dizer que nessas partidas contra o Flamengo, sou Fluminense e Nova Iguaçu desde criancinha.
sexta-feira, 15 de março de 2024
Eudaimonia
Ninguém menos que Aristóteles, chamado na Idade Média apenas de “o filósofo”, diz que o objetivo da vida é a felicidade. Felicidade, para ele, como se sabe, era eudaimonia. Numa tradução literal, eudaimonia quer dizer algo como ter um bom “daimon”. Daimon é uma figura mística do panteão da antiguidade clássica, uma menos conhecida. Sua função, porém, aparece em outras civilizações e é até bastante popular, desde, ao menos, as Mil e uma noites – e os filmes da Disney. Seria parecido com o jinn da mitologia muçulmana, que são mais conhecidos em português brasileiro como gênios, aqueles que, em algumas versões mais conhecidas, ficam aprisionados em lamparinas. São figuras com poderes sobrenaturais, mas que não necessariamente atuam ao lado das pessoas com quem criam uma relação. No caso tradicional das lamparinas, ao ser libertado o gênio concede três desejos para o seu libertador e logo se sente livre para seguir adiante. Outra forma de entender esses daimons são os anjos da guarda. Porém, como é costume no pensamento cristão, o caráter de imprevisibilidade do personagem é totalmente apagado para que ele fique unidimensional. Cada pessoa tem o seu próprio daimon, como acontece com os anjos da guarda, mas os daimons são imprevisíveis como os jinns. Seria, então, um diabinho da guarda. Não o diabo da tradição a que estamos mais ligados, a encarnação do mal absoluto, mas alguém que poderia atuar de forma parecida com um trickster – para ficar ainda em figuras mitológicas. Um malandro, um embusteiro que nos acompanha e pode, sem que percebamos, nos pregar peças. Daí a fórmula de Aristóteles. O objetivo da vida é conseguir se dar bem com o próprio daimon, com esse ser imprevisível que está sempre ao nosso lado, nem sempre para nos ajudar. É estar preparado para qualquer número que cair dos dados jogados por ele, ter alternativas, saber saídas, inventar novos movimentos, tentar dançar conforme a sua – dele – música.
sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024
Nietzsche: GM3 §26, extrato
... não gosto desses túmulos caiados que parodiam a vida; não gosto desses fatigados e consumidos que se revestem de sabedoria e olham "objetivamente"; não gosto dos agitadores fantasiados de heróis que usam o capuz mágico do ideal em suas cabeças de palha; não gosto dos artistas ambiciosos que posam de sacerdotes e ascetas e no fundo não passam de trágicos bufões; tampouco me agradam esses novos especuladores em idealismo, os antissemitas, que hoje reviram os olhos de modo cristão-ariano-homem-de-bem, e, através do abuso exasperante do mais barato meio de agitação, a afetação moral, buscam incitar o gado de chifres que há no povo (– o fato de que toda espécie de charlatanismo espiritual obtenha sucesso na Alemanha de hoje tem relação com o inegável e já evidente definhamento do espírito alemão, cuja causa eu vejo em uma dieta demasiado exclusiva, composta de jornais, política, cerveja e música wagneriana, juntamente com o pressuposto para essa alimentação: a clausura e a vaidade nacionais, o forte, porém estreito, princípio de "Deutschland, Deutschland über alles", e também a paralysís agitans [paralisia que agita, isto é, doença de Parkinson] das "ideias modernas").
Nietzsche GM3 §26
quinta-feira, 11 de janeiro de 2024
'Memórias do subsolo', Dostoiévski [extrato]
Oh, dizei-me, quem foi o primeiro a declarar, a proclamar que o homem comete ignomínias unicamente por desconhecer os seus reais interesses, e que bastaria instruí-lo, abrir-lhe os olhos para os seus verdadeiros e normais interesses, para que ele imediatamente deixasse de cometer essas ignomínias e se tornasse, no mesmo instante, bondoso e nobre, porque, sendo instruído e compreendendo as suas reais vantagens, veria no bem o seu próprio interesse, e sabe-se que ninguém é capaz de agir conscientemente contra ele e, por conseguinte, por assim dizer, por necessidade, ele passaria a praticar o bem?
[Tradução Boris Schnaiderman]
quarta-feira, 3 de janeiro de 2024
'Les essais', Montaigne [extrato]
Ce qu'on nous dit de ceux du Brésil, qu'ils ne mouraient que de vieillesse, et qu'on attribue à la sérénité et tranquillité de leur air, je l'attribue plutôt à la tranquillité et sérénité de leur âme, déchargée de toute passion, et pensée, et occupation tendues ou déplaisantes, comme gens qui passaient leur vie en une admirable simplicité et ignorance, sans lettres, sans loi, sans roi, sans religion quelconque.
LIVRE II, CHAPITRE 12: APOLOGIE DE RAYMOND SEBON, de Montaigne.