quarta-feira, 28 de maio de 2003

Aquela noite

Foi naquela noite, a última da boate Interpol, ali em Copacabana. Disseram que iriam fechar para reformas por alguns meses, mas ela não voltou a abrir, até hoje.

Como iam fechar, eles queriam acabar com todo o estoque de bebidas que tinham. Por isso, fizeram uma promoção onde tudo era vendido por dois reais. Doses de uísque, tequilas, caipirinhas. Várias pessoas passaram mal pelos banheiros e até na pista de dança.

Por esses dois motivos, a liquidação das bebidas e o último dia da boate, a Interpol estava absurdamente lotada. A fila de entrada dobrava o quarteirão e ficava na rua transversal. Muita gente chegou cedo, antes das onze horas, e teve que esperar nessa fila. Lá dentro, o ar condicionado não dava vazão para tantas pessoas e o suor corria nas costas, empapando todas as camisas.

Mesmo assim, ou por causa disso, eu fui na despedida da Interpol. Um casal de amigos meus passavam uma temporada na minha casa e os levei juntos. Chegamos também cedo e engrossamos a fila de espera. Ficamos bebendo cerveja, que buscávamos toda a hora, de um boteco de péssima categoria ao lado da boate.

Por mais que os dois estivessem passando férias aqui no Rio, senti desde o início que o clima não era dos mais favoráveis entre eles. Raramente participavam da conversa ao mesmo tempo. E eu tinha que fazer o tipo cicerone, ora com atenção mais focada nele, ora nela.

Próximo de meia-noite, outros amigos chegaram e entraram na fila conosco, o que diluiu o peso que pairava entre nós três. Gente que não via há décadas, outros companheiros de longas datas. Conversávamos animadamente por algumas horas, já que era praticamente impossível entrar na Interpol na hora que quiséssemos.

Só depois das duas da manhã, já bêbado, entramos. Como disse antes, o lugar estava extremamente cheio. Em todos os lugares, corredores, pistas de dança, banheiros, bares, havia filas de gente suada. Começamos a beber caipirinhas e uísque por dois reais. Era para esquecer, brincamos.

Lá dentro, todo momento que olhava para o casal, eles discutiam. Não queria nem saber o motivo, mas via os dois gritando, ele apontava para ela, ela sarcástica, ele olhava para alguém que passava, só para irritá-la, ela saía para o banheiro e não avisava para ele. Decidi dar uma volta para deixá-los mais a vontade.

Fui para o outro lado da boate, fiquei atrás de uma pilastra, onde pude observar, três degraus acima de todos, a pista de dança completamente lotada, e a cabine do dj ao fundo. Por mais que a imagem seja batida, devo admitir que é bastante apropriada, era uma massa de pessoas sem rosto dançando ali, bem abaixo de mim, a poucos metros de onde estava. Uma coleção de corpos pulando ao som, completamente ignorantes do que acontecia ao lado. E eu, algumas vezes que bebo, fico meio triste, meio pensativo, sozinho num canto sem motivo, sem querer encontrar ninguém. Nessa hora, na minha frente exatamente, avistei um grupo de meninas lindas – o tipo que nunca tinha ido a Interpol e se aproveitava do fetiche de último dia . E logo assim que eu reparei nelas, percebi que uma, talvez a mais bonita de todas, me olhava com insistência.

Se por um lado me sentia cheio por saber do interesse de uma das meninas por mim, por outro me achava culpado por não querer aproveitar essa oportunidade. Já não era a primeira vez que isso acontecia. Num grupo de meninas, a que era mais bela de todas sempre olhava para mim com outras intenções. No entanto, nem sempre tinha vontade de ir falar com ela. Sentia que essa facilidade, essa necessidade descartável que algumas meninas têm, de querer alguém aqui, e logo outra pessoa ali, só para não ficarem sozinhas, me tirava a vontade de conhecê-las. Poderia estar fazendo um pré-julgamento, porém na quase totalidade sabia que estava certo.

Eu sei que esse pensamento é apenas uma adaptação do comportamento masculino de décadas. A mulher apenas se aclimatou àquilo que o homem pediu. Essa era uma das causas de querer, quase sempre, ficar sozinho nesses lugares. Observar os tipos, sem nenhuma pressão.

A menina, depois de alguns minutos me observando, na tentativa de demonstrar que estava interessada em mim, mas sem tomar nenhum tipo de atitude em relação a isso, desistiu e foi para outro lugar. Bem provavelmente com o intuito de achar outro alguém.

Algo dentro de mim sentia que eu tinha desperdiçado uma ótima oportunidade de ficar com uma menina linda. E havia um outro pedaço de mim que afirmava que a situação era tão sedutora quanto em um bordel. Não previa nenhuma complicação, e seria uma experiência puramente física. Qual seria a dificuldade, me perguntava. Quantas, iguais a essa, poderia conseguir, caso quisesse? Contudo, o lado que dizia que eu havia desperdiçado mantinha uma voz constante. Mesmo que não fosse a que me comandava naquele momento, ele falava baixinho na minha orelha ‘que desperdício’.

Olhei para o meu relógio e não acreditei quando vi que eram apenas quatro e meia. Fui dar uma volta nos outros ambientes, meio sem motivo, apenas para o tempo passar, e encontrei no caminho o casal de amigos, ainda numa discussão. Ele me chamou para próximo, entretanto falei que ia ao banheiro e escapuli. Em frente ao bar, pude ver uma cena que era exatamente antagônica a que eu havia participado. Um sujeito super malhado, sem camisa, com o corpo brilhando de suor, agarrava a força meninas que passavam na sua frente. Para ele, pensei no momento, a única coisa importante era o contato físico. Agia como que por instinto, sem nenhum tipo de trava, censura ou pensamento, mesmo. O pedaço de mim que repetia ‘desperdício’ observou a cena e apenas sorriu. Sentiu uma certa inveja dele por não ter nada que o impedisse de ser o mais impulsivo possível. Por outro lado, achei toda a cena violenta demais, apesar de perceber algumas meninas mais que interessadas no fortão.

Voltei do banheiro e encontrei o casal separado, ela sentada num banco com a cara amarrada, ele com um copo na mão, observando toda a pista de dança, de costas para ela. Propus irmos embora, e fui atendido de pronto pelos dois, na, talvez, única vez que concordaram em toda a noite. Saímos e fizemos sinal para um táxi parar sem pronunciar nenhuma palavra. Ele entrou no banco da frente, eu e ela no banco de trás. Ficamos sem falar nada até chegar em casa. No entanto, minha cabeça não parou. Queria saber se minha atitude tinha sido a certa ou era apenas um sinal de covardia. A menina, mesmo sendo muito linda, não me atraía em nada. A situação era asséptica, fria, impessoal. Mas o ‘desperdício’ voltara a minha orelha.

Entramos em casa, dei ‘boa noite’ para ambos e fui para o meu quarto. Eles – acredito – foram para o quarto que estava vazio. Coloquei uma música para tocar, deitei na minha cama, apaguei as luzes e fiquei com os olhos abertos, na espera do sono. O álcool mostrou-se eficiente e em poucos instantes já cochilava. Foi quando ouvi pequenas batidas na minha porta. Abri os olhos, meio que assustado, não sabia o que acontecia, e não era algo comum. Sentei na cama e abri a porta. Era ela, a mulher do meu camarada. Com um short e um top colado que deixava metade dos seios à mostra. Ela ficou na minha frente quieta, percebi que ela olhava na minha direção, só que não me enxergava. Parecia que atravessa o meu corpo, o meu quarto e chegava lá na rua. Ela fechou a porta com a mão esquerda e, a esse ato, senti uma resposta imediata do meu corpo. Aquela situação era por demais inesperada para não me excitar. Ela baixou os olhos para o meu rosto, com uma expressão próxima da assustada, querendo esconder os braços que sobravam, com uma necessidade de provocar o mal a alguém, de quebrar algo, de destruir e disse uma única frase: ‘Posso te chupar?’.

Na hora nem percebi muito bem o que aconteceu. Alguém pode estar se perguntando se eu não tive algum tipo de culpa. A resposta é sucinta. Sim, tive. Mas só no dia seguinte. No meu quarto, com a luz apagada, com a respiração dela ofegante, com nossos corpos suados se esfregando, não dava para identificar muito bem o que passava na minha cabeça. Apenas sabia que era algo proibido e isso me dava mais vontade de continuar. Não raciocinava que ela era a mulher do meu amigo, apenas que era alguém impossível, intocável. O que a tornava melhor,

Havia uma confusão no meu pensamento. Culpa, talvez do álcool, talvez de uma embriaguez impulsiva, talvez de alguma necessidade animal. Quando acabamos, ela se levantou e sem dizer mais nenhuma palavra desde que chegara, foi-se embora. Logo voltei a dormir, como se nada tivesse acontecido. No dia seguinte, os dois haviam parado de brigar. Ficaram agarrados durante todo o dia, em frente a televisão, ou quando saímos para almoçar e não perderam uma única oportunidade de se beijarem. Não tenho idéia se ela contou o que aconteceu conosco para ele. Mas, se fosse apostar, diria que não. Ela tratou de uma forma como se não tivesse acontecido. E hoje já começo a duvidar se aquela noite realmente aconteceu da maneira como me lembro ou se foi apenas algum tipo de sonho. Só tenho certeza que no outro dia, não escutei mais a palavra ‘desperdício’ sendo repetida na minha orelha.

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