terça-feira, 13 de maio de 2003

O poeta

Lembro que era uma sexta-feira. Daquelas que se fica na cama trocando de canal até o sono te convencer a dormir. Estava na casa da minha namorada da época, e percebi que em um dos canais passava uma entrevista com o poeta. Achei estranho porque nunca tinha assistido a algo parecido.

O repórter perguntava sobre a sensação de fazer aniversário. O poeta, olho longe, nem no jornalista, nem na câmera, olhava para a eternidade, com seu olhar sem olhar, cego, via o negro e enxergava muito mais do que nós todos juntos. Disse com aquele seu sotaque de nordestino orgulhoso que era apenas mais um aniversário, que não tinha nada demais por isso.

O que entrevistava, trêmulo, diante daquele que era um de seus ídolos vivos, queria saber sobre qual era a sensação de ser considerado o maior poeta brasileiro vivo. Ele apoiado no seu cajado, na sua guia, bochechas estufadas, nariz redondo, boca quieta, sente o que falar. Ele que produziu poemas da mais perfeita sincronia, poesias para serem lidos em voz alta, para brincar de encaixar, de jogos, respondeu que não sabia confrontar poesia, poesia não compara, poesia é única e indivisível.

E sobre a comparação com o mineiro de Itabira, o que o senhor diz? Eu o admiro, correu a responder, o poeta. O repórter volta a pergunta, insiste, o homem idoso, sofrido, cansado, tinha perdido o que mais prezava, a liberdade de ler o que quisesse, na hora em que quisesse, apóia-se na bengala com as duas mãos, segura o choro na garganta, fica em silêncio para engolir, a saliva prende no final da boca. Ele tinha uma certa inveja do de Itabira. O mineiro fazia poesia sobre todas as coisas ditas grandiosas, ele escrevia com o coração, era realmente emotivo, humano. Eu sou apenas um racional extremo, faço poemas exatos, daqueles que matemáticos gostariam de fazer. Às vezes duvido se sou mesmo poeta, quiçá humano.

O poeta não disse nada. Disse, mas não quis dizer nada. Falou que o mineiro era um dos maiores poetas da língua portuguesa. E eu, ele disse, só consigo fazer poesia sobre o dia-a-dia, sobre aquilo que vemos pela janela, aquilo que presenciamos na rua, que conhecemos quando estamos no sertão.

E sobre ser o “poeta cerebral”? Só acredito em poesia dessa maneira. Quem não tem preocupação formal, não faz poesia, apenas amontoa palavras e se diz poeta.

O poeta estava no fim da vida. Anos acusando-o de ser menor por ser racional. Mas, ele não era só racional. É impossível ser apenas racional quando se é poeta. Ele vê beleza no correr dos rios, no balançar da bananeira, na mineira que foi para Brasília. Ele quer educar as crianças através da pedra, mas foi ele que nos contou sobre a Morte e a Vida Severina. Não é possível ser insensível tendo escrito isso. Via a beleza nos pequenos atos e os montava para demonstrar melhor esse seu lado.

Só respondia laconicamente, estava fora do seu habitat, queria voltar para casa, esperar que o sofrimento da escuridão acabasse. Segurava a emoção na garganta como sempre segurou na sua poesia, escolhendo aqui e ali um salpico apenas. Termina a entrevista, do lado de dentro da tela, o poeta aliviado, e orgulhoso por ter se segurado. Descubro ao final ser uma homenagem póstuma, o poeta tinha morrido naquele dia, sua expectativa chegara ao fim. Do lado de fora da tela, eu choro por ele, choro para contrariá-lo, sim poeta, você, tanto quanto o outro, era um humano, humano demais que via através dos detalhes, que via por debaixo do pano da normalidade cotidiana e nos apresentava essa sua visão bem vestida, arrumada para uma festa, com os trajes característicos. Sim, poeta, poesia não se compara. Mas, você é grande, você é um dos maiores.

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