quinta-feira, 6 de maio de 2004

O do meu lado.

Um amigo meu me ligou perguntando se eu teria vontade de ir ao Chivas Jazz Festival que ocorre agora, porque ele trabalha numa empresa que patrocina o evento e sobrou um ingresso grátis. A minha única pergunta foi: onde fica a Marina da Glória?

O meu amigo só disse que talvez o maior problema fosse agüentar o cara que estaria comigo. Eu disse que com o showzinho de graça, não havia nenhum problema para aturar até esses tipos de mala.

Marcamos um horário e cheguei pontualmente, sorte porque a primeira apresentação, de um coroa chamado Bud Shank, só se atrasou uns dez minutos, o tempo de dar um mijada. Mas, o show ficou por conta do outro sujeito que compunha a mesa comigo. Ao sentar, ele já estava lá, e pude perceber que o uísque fazia efeito. Seus olhos estavam vermelhos e distantes e ele não conseguia ficar parado na minúscula cadeira. Logo reclamou disso: “É um absurdo ter essa cadeira nesse tipo de festival”, eu só pude sorrir e concordar com ele. Realmente a cadeira não era das mais confortáveis, mas, como eu estava com um sentimento de intruso, não tinha a intenção de falar mal de nada.

Começa a apresentação do quarteto, todos os sujeitos parecendo virtuoses (principalmente para mim, um leigo nessa arte, só conhecendo um pouquinho de nada de John Coltrane, Charlie Parker, Miles Davis, etc.), o Bud, um velho de setenta e sete anos, barrigudo, barba grande, óculos que caíam e o sujeito do meu lado comenta como para ele mesmo, ignorando a minha já pouco notada presença: “tinha que ser branco, repara, repara como ele não tem suingue”. Parei de olhar para o palco e o encarei meio intrigado, tentando descobrir quem ele era ou o que ele fazia ali, sujeito gordo, rosto cheio de marcas, pescoço roliço, pele rósea de álcool, mão agarrada ao copo de plástico cheio do líquido cor de cobre. O incrível era que, apesar de parecer um dinossauro de tão pesado, ele não parava de balançar a perna no ritmo da bateria e o corpo dava seguidas síncopes com as mudanças do ritmo, tão característica do jazz.

Fim de mais uma música, ele se levanta e grita para o sujeito que vende uísque para se aproximar. Todo mundo num raio de vinte metros se vira na minha direção, eu querendo entrar debaixo da mesa, e repara no sujeito que, obviamente, ignorou completamente a todos.

Logo em seguida, entra por uma fresta da tenda um pequeno morcego e começa a dar vôos rasantes que atrapalham um pouco a concentração de toda a platéia. O meu companheiro fica indignado rapidamente, começa a socar a mesa e sussurra, num tom quase inaudível: “vou tacar esse copo nesse bicho”, e se levanta de supetão numa posição de lançador de baseball, mas pára. Por sorte, ou azar sei lá, o animalzinho se afastara de onde estávamos e logo depois saiu, fazendo com que ele também desistisse.

Isso foi exatamente no momento em que Bud anuncia que tocará uma música em homenagem ao Brasil, de um velho amigo e ídolo dele, Antônio Carlos Jobim. Começa a música e percebo que é uma bem underground de Tom. E nessa versão fica ainda mais irreconhecível. Porém a cena mais dantesca é de Bud tentando sambar, ou pelo menos balançar o corpo nesse ritmo menos duro. O cara ao meu lado quase se desespera, bate no rosto, vocifera baixinho, o chama de ridículo, de gringo idiota e vira o uísque num gole só.

Termina a música e o saxofonista chama João Donato, dizendo que tinha trabalhando com o brasileiro na década de 60, e que tinha sido uma de suas melhores experiências. A cena surreal fica por conta do homem ao meu lado que se vira para o lado e cospe uma gosma no chão, no meio das cadeiras e mesas, na frente de um casal de senhores já bem coroas. João Donato dá um beijo em Shank e começam a fazer algo com muito mais balanço, é perceptível. O do meu lado estala dedos acompanhando-os até que passa outro carro de uísque e ele o chama, mesmo no meio da música. Eu ainda estava na minha primeira dose, completamente aguada, sem nenhum gelo de sobra, e ele já tinha derrubado umas quatro.

Tocam só uma música juntos e João sai do palco meio cambaleante, dançando com o pianista original da banda, Bill Mays. O do meu lado comenta alto, como se quisesse compartilhar seu pensamento com os demais, “É veado, tem que ser. Pederasta”, e todo mundo na minha frente se volta franzindo a testa e com expressões nada amigáveis. Ele continua superior, impassível a repreensões.

Mais outras poucas músicas e logo acaba o show de Bud Shank. Antes mesmo do bis, ele sai da mesa apressado, não sem antes cuspir novamente a gosma branca no chão, dessa vez perto da mesa da frente.

A próxima atração era uma banda que, dizia o folheto, tocava hard bop e cujo líder, o baterista Lous Hayes, havia tocado com vários medalhões, entre eles, Coltrane. Realmente o começo – sem o meu companheiro – foi arrasador, os caras da Cannonball Addelery Legacy Band, a banda que o acompanha, são mais “pesados” que o quarteto de Shank, dá para perceber de cara. Talvez daí que venha o “hard” do estilo.

Com um trompetista (Jeremy Pelt) de camisa para dentro da calça, meio arrumadinho, todo engomado, em contraposição ao saxofonista-alto (Vincent Herring) com o estilo bem mais largado, eu cometi o sacrilégio de lembrar de Dizzie Gillespie e Charlie Parker. Os dois duelavam, mas também tinham uma afinidade impressionante.

Nisso volta o sujeito com outro copo na mão. Esbarrou em todas as mesas antes de chegar na nossa, sempre murmurando algo que lembrava um pedido de desculpa para os que ele incomodava, senta em sua cadeira e pude perceber a lapela de sua camisa suja com a mesma gosma que estava no chão. Ele parecia não reparar nisso porque seus olhos acompanhavam a banda de Hayes com muito mais vontade que a anterior. “Isso sim é jazz, tem que ser negão. Não dá, branco não dá”.

Passava de música para música e nos intervalos, ele gritava: “toca hard bop, eu vim aqui para ouvir hard bop”, e eu querendo sumir. Em um momento, um casal veio cumprimentar a mesa que estava em nossa frente e ele não titubeou, arremessou um copo vazio nos sujeitos. Quando eles se voltaram para tirar algum tipo de satisfação, o sujeito os encara, “que foi, sai da frente, eu to aqui para ver o show também, sai da frente”. O casal ainda tentou argumentar, mas a mulher pediu para deixar, já que o meu companheiro estava nitidamente fora-de-si.

Na quarta música do grupo de Haynes, o cara que dividia a mesa comigo começa a se desinteressar pela música e começa a olhar para os lados. Vê uma mulher bonita, loura, um pouco mais nova que ele, e a chama, “Ei, ei, você, você... é. Você quer um uísque?”, a mulher não responde, ele insiste, ela o ignora, o marido volta do banheiro e ele desiste. Outra, a de trás, a que tinha presenciado o primeiro vômito dele, repara em todo o movimento dele, no que ele se vira e encara ela de frente. “Você é a mulher mais linda daqui”, diz ele. Eu já tinha me afastado o que eu podia dele, mas mesmo assim fiquei constrangido. A mulher boquiabriu-se e o marido apareceu para perguntar se havia algum tipo de problema ali. Ele não se deu por satisfeito e disse que aquela mulher era a mais linda do lugar, o marido parecia um pouco menos paciente e perguntou qual era o problema dele, se ele não se importava de virar para frente e cuidar de assistir ao show.

Ele ainda deu umas olhadelas para os lados, mas logo desistiu, percebendo que o ambiente esvaziara, e não havia mulheres próximas a nós as quais ele poderia se dirigir. Então, ele começou a puxar papo comigo. “Você ta gostando?”, “to. Bem, eu não entendo muito, mas é bem animado. Essa banda agora...”, e ele me interrompeu e começou a falar muito alto, não mais comigo, mas com todo mundo a nossa volta, “Esses caras são uns merdas. Vem aqui no Rio e pensam que podem tocar alguma coisa. Eu é que toco, seus putos, eu toco pa’caralho. Vocês têm que ver eu tocando. Eu toco pa’caralho. E sabe o que eu toco? Hein, sabem o que eu toco? Eu toco punheta” e desandou a rir. “Eu vou levantar aqui, vou abrir a minha braguilha e vou tocar uma para vocês”. O marido da senhora logo atrás da gente se emputeceu e pediu rispidamente para que ele sentasse, para que todo mundo visse o show. “Ah, então vocês não querem ver eu tocando? Pagam uma grana para vir aqui e não querem me ver tocando? Eu vou é embora”. “Isso, vai mesmo”, respondeu o sujeito aqui atrás. Ele, o meu companheiro, ainda reclamou alguma coisa, mas saiu, antes do show terminar novamente, esbarrando em todas as mesas e cadeiras que podia e, dessa vez, sem tentar se desculpar.

Para o final, a banda de Haynes não apresentou outra surpresa, mas, na verdade, eu já não estava muito interessado neles. Estava achando aquilo tudo tão surreal que se eu contasse para alguém, ninguém iria acreditar. Fiquei tão bolado que saí, logo depois dele. Também antes do show acabar.

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