quarta-feira, 29 de setembro de 2004

Quarto de hotel

Deitado num sofá-cama desmontado, luzes apagadas, olhos enervados e abertos. A janela à frente deixa passar a lâmpada fria do corredor que nunca é desligada. Quando antevejo uma sombra, me encrespo ainda mais: pode ser agora, devo saber como agir, mas não consigo programar este futuro. E é exatamente esta tensão que não me deixa dormir. A dúvida, a ansiedade, o nervosismo do completo absurdo que acabara de ouvir e da infinidade de conseqüências a que isso pode nos carregar. Sim, porque ela está ali, ao meu lado direito, dormindo sobre a cama de casal. Ela, depois de tomar consciência de toda a história pela qual passou, caiu num choro aos soluços, começando com os olhos marejados, o nariz vermelho, as lágrimas caindo; ela, sem forças, estafada até as últimas conseqüências, sem nenhuma energia. Ela, inocente, dorme o sono daqueles que foram derrotados por trapaça; dos agoniados, que tentaram lutar com tudo o que tinham, mas não havia muito o que fazer. E a energia foi se extirpando ao lutar contra um muro intransponível, foi diminuindo, finalizando até que o caminho único foi uma espécie de desmaio.

Eu aqui, minha cabeça dá voltas sem que possa acompanhar todos os caminhos percorridos. Quando menos espero, quando quero anotar os detalhes, quando desejo praticar este exercício que me acalma, já percorro outras lógicas, outros temores, outras saídas, outros planos. Raciocino para saber quem era o homem causador de toda esta balbúrdia quase brega e sigo a passagem marcada. Quarenta anos, classe-média e, como todos, conservador (havíamos conversado sobre política e ele me assustara com a sobriedade e força dos argumentos moralistas), com um bigode fora de moda para comprovar. Pai de duas filhas pequenas, meninas de destinos incertos ou infelizes... Havíamos conhecido uma delas, treze anos no máximo. Gostava de uma cantora pop americana, como o chavão. Era quietinha, ficou no canto, nos dirigiu a palavra uma única vez para perguntar algo sobre o nosso exotismo. Estava assustada, não imaginava nada além das suas fronteiras, quem eram aqueles com palavreados diferentes, entonações engraçadas? Será que um dia esse homem agora culpado por todas as nossas indecisões, todos os nossos medos, será que um dia ele irá se voltar para essa pequenina loura? Será que ele vai ser capaz de fazer algo dessa natureza? Será que ele terá algum tipo de trava porque ela é carne sua, sangue seu, e escolhe estranhos para poder liberar todas as suas escrotidões? Juro: espero que não. Não imagino quais seriam as conseqüências ou não quero chegar a tanto. Parece um roteiro de algum escritor sádico, que inventa as mais perversões apenas com o intuito de chocar. É incrível, na acepção única da palavra, quando encontramos a menos aprazível ficção ao dobrar a esquina.

É tão inacreditável: e se for uma fantasia dela, daquela que está deitada sobre a cama, que não tem nenhum vínculo comigo além da breve troca de gentilezas tradicionais entre conhecidos? Ela estava um pouco alta, me admitira, será que não houve uma confusão, uma mal-entendido, será que todas as palavras usadas não foram apenas para ilustrar uma possibilidade, algo que ela deveria evitar? Essas são argüições infinitas e praticamente irrespondíveis. Poderia continuar indefinidamente com os pontos de interrogação e nunca saberia como completar a lacuna da resposta. Não estava com eles, não posso interpretar sob meus olhos o acontecido, tenho que confiar nas partes, neste caso, na única pessoa que é minha conhecida real neste louco estado. O grande problema é que tudo faz um sentido assustador. Só por isso eu não gostaria de acreditar, não é possível que possamos viver tamanho lugar-comum.

O homem de bigodes gostava de trazer-nos bebida comprada do bolso dele quando era possível. Nossa geladeira sempre tinha cerveja de várias qualidades, com a desculpa de que deveríamos prová-las a todas e escolhermos a melhor. E se fosse apenas isso, toda esta trama de quinta não faria nenhum sentido. O problema foi o que aconteceu em um dia específico. A nossa ligação com ele, nossa dependência é quase total. As outras opções são andar a pé, ou esperar um ônibus pior que os de costume para ir trabalhar neste lugar que junta o provinciano e a estupidez dos transeuntes com o constante alto faturamento dos mesmos. Ele comumente nos traz para casa, para este hotel de beira de estrada, que parece saído de um filme de terror – mais um elemento para acrescentar na falta de originalidade de toda a trama. Nesta noite (já havia escurecido), era 26 de dezembro, ele me daria carona. Ele chega um pouco alterado, com a língua um pouco dormente, as palavras emborrachadas, os olhos piscando vagarosamente, o raciocínio lento. Saímos do restaurante e ele resolveu parar numa loja de conveniência para comprar uma cerveja. Perguntou se eu queria, aceitei de pronto para não fazer uma desfeita. A minha vontade na realidade era pequena. Voltou com uma garrafa grande, porém com tampa abre-fácil. Perguntou-me se era comum termos engradados assim de onde eu vinha, respondi que destes, somente em bares e para dividirmos. Ele fica uns instantes em silêncio, como que raciocinando o que deveria dizer a partir de minhas colocações. Resolvo quebrar o silêncio, aquele aspecto pesado, e pergunto onde fica uma cidade que já ouvira dizer, e sabia que era por perto. Eu ficaria feliz numa simples resposta afirmando que era por perto e que ele um dia nos levaria lá. Entretanto ele me pergunta, num tom de alguém que tivesse descoberto a pólvora sem a possibilidade de eu negar, se eu queria conhecer o vilarejo. Antes que pudesse balbuciar, ele já entrara num retorno a beira da estrada e nos estávamos a caminho.

A avenida é lúgubre, parecia que atravessávamos um bosque, com árvores em ambos os lados e nenhuma iluminação, além dos faróis do carro. Tudo era uma completa quietude, só quebrado em duas oportunidades, quando ele me pede para tomar cuidado com minha garrafa, pois se fôssemos parados por policiais, ele estaria mal, aquele não era o meu país; e quando ele afirma que o lugar que eu gostaria de conhecer é ridiculamente pequeno, não havia nada para fazer. Parecíamos sozinhos. De quando em quando, ele tirava os olhos da estrada e virava-se para mim e sorria alcoolicamente. Sentia-me cansado, havia trabalhado por mais de doze horas, a cerveja me dava sono, não conseguia manter uma clareza quanto ao que acontecia ao meu redor. Apenas era algo exageradamente estranho. Eu preferia estar em casa, mas não havia a possibilidade de recusar uma gentileza do homem que em todas as oportunidades que tivera foi-nos simpático. Era agüentar mais um pouco e logo estaria descansando. Estava neste exercício de paciência quando ele tirou a mão direita do volante e colocou atrás do meu banco. Virou-se para mim novamente e não sorriu; seus olhos pareciam mais abertos que anteriormente, o bigode parecia saltar de dentro do rosto, sua expressão era tensa. Levantei-me no banco e tentei ficar ereto para demonstrar uma firmeza que naquele momento não possuía. Ele evitou olhar-me novamente até que falou que havíamos chegado à cidadezinha. Consistia numa rodovia com alguns estabelecimentos comerciais em ambos os lados. Sem pedir minha opinião, ele atravessou o lugarejo e se embrenhou entre as árvores numa pequena rua com iluminação parca. Acordei de imediato e me segurei com força na porta do carro. Estava assustado em demasia para tomar alguma decisão, apenas queria ir embora. A mão dele continuava atrás do meu banco; os olhos injetados eram os mesmos e eu estava num lugar desconhecido, longe de qualquer vestígio de civilização. Não sabia o que fazer, estava por completo sob as decisões dele. No meio da mata ele me olhou novamente e o sorriso havia voltado, porém era agora sarcástico, de quem conhece todo o resto do jogo e gosta de aplicar sustos. Parecia satisfeito com o meu óbvio desconforto. Chegamos numa clareira e ele contou que dali saía com um de seus barcos para pescar no rio o qual podíamos avistar. Para fingir controle ou porque não tinha nenhuma perspectiva de raciocínio e encadeamento lógico, repliquei que não avistava o tal riacho. Pareceu-lhe a melhor resposta que eu poderia dar-lhe. Não pôde conter o sorriso e inquiriu-me se gostaria de avistar o rio mais de perto. Tentando manter o clima dentro do civilizado, disse para ficar para outra oportunidade, que estava muito cansado, que gostaria apenas de ir embora. Ele me olhou por alguns segundos com o ar mais lascivo que avistei em toda a minha existência. Agora, me parece que ele havia entendido minha resposta como uma aceitação de suas regras pérfidas e apenas quisesse postergar o que para ele era inevitável. Não sabia o que dizer e creio que qualquer manifestação minha naquele momento seria encarado desta maneira. O impulso de pular do carro me passou duas ou três vezes, mas ainda cria que todo o processo, todas as minhas interpretações das atitudes dele, podiam ser errôneas. O que eu sentia era inenarrável, era uma agonia parecida com a que eu sinto agora, algo como não haver a possibilidade de imaginar como esta ridícula história pode se desenrolar. Até que ponto, até quando podemos nos comportar como civilizados e quando temos que lutar pela sobrevivência com o que for possível e ao alcance. Depois disso possuía a certeza de que ele era capaz de fazer qualquer mal para satisfazer a si mesmo. Mas não tinha provas.

O que torna a trama ainda mais melodramática é que ele me contou, em oportunidades espaçadas, possuir um irmão gêmeo. No dia descrito acima, me confirmara que vinha da casa dele. Os dois – me garantiu – quando pequenos, haviam desenvolvido uma língua própria, para se comunicarem sem que os pais entendessem. Também gostava de repetir que ambos eram muito próximos ao ponto de um saber o que o outro pensava sem que precisassem conversar. Não me parece possível, ou pelo menos crível, ou racional ou qualquer outra palavra que retrate a realidade crua, que os dois brinquem de trocar as personalidades. Entretanto, a maneira como ele cambia de atitudes quando está bêbado, é impressionante. Em outra oportunidade, voltou a me oferecer carona. Havia se atrasado, por isso já o esperava pronto, no balcão do estabelecimento. Chegou, tentou falar com algumas pessoas do restaurante e logo foi interrompido por um casal de turistas que gostaria de saber mais sobre a região histórica, onde nos encontrávamos. Ele começou o seu discurso de guia, com fortes tendências tradicionais e me olhava a cada vírgula para que eu o aprovasse, ou pelo menos para conferir se eu estava reparando com afinco nele, ou para confirmar as minhas reações. Quando terminou, 45 minutos depois, a primeira pergunta que me fez foi se eu havia gostado do que ele disse. Respondi que não prestara muita atenção – o que era a verdade – porque novamente sentia-me esgotado. Havia algum tempo desde a carona descrita anteriormente, tinha sido em sua última folga e era raro coincidir com dias em que eu trabalhava. Ele chegava sempre embriagado porque passava essas tardes livres com o irmão, me confidenciou. Saímos da lanchonete e ele, como se quisesse repetir algo, ou terminar um assunto pendente, estacionou o carro num posto de gasolina onde podia comprar cerveja. Perguntou-me se gostaria de acompanhá-lo na bebida. Antes que qualquer razão, antes de ter qualquer lembrança, retorqui-lhe que não, que não queria porque gostaria de ir rapidamente para a casa. Tenho um certo receio de afirmar isto assim, peremptoriamente, mas observei uma decepção no homem, me olhando quase que com tristeza. Como se eu ousasse não seguir as regras estabelecidas por ele, em nosso último encontro. Levou-me para casa com rapidez e falando sobre assuntos genéricos e amplos, como se quisesse desviar a atenção do pequeno incidente.

Agora, em frente a esta janela, não consigo me acalmar. Sei que ele possui quinze diferentes tipos de armas – são para caçar, me contara em outras oportunidades. A janela de vidro ordinário não será nenhum entrave para ele, caso queira realmente fazer uma loucura e concluir esta narrativa absurda. Quando amanhecer, acordarei os dois aqui e sairemos para um lugar com outras pessoas, que não seja tão perdido no meio de coisa alguma. Por enquanto, tenho que ficar desperto para não ser pego de surpresa. Não tenho idéia do que farei, caso algo insano venha a acontecer, mas nem que eu quisesse, pregaria os olhos agora.

sexta-feira, 24 de setembro de 2004

Comentário rápido

Acabei de ver 'Olga' e achei bem bom. Não é a perfeição, principalmente quanto às suas limitações orçamentárias, mas há cenas em que é possível chegar aos soluços, de tão forte e emocionante. Só como um exemplo pequeno, de trama paralela que é assim mesmo excepcional: a história da mãe do Prestes, dona Leocádia. A senhora nada jovem luta de todas as maneiras que pode e conhece (atravessa toda a Europa, reúne uma série de exigências, recorre a advogados, se auto-exila no México etc.) para ficar com a neta e libertar a nora. É mais que comovente, é desestruturador. Isso porque a própria mãe de Olga cagou solenemente para a filha que jazia nos campos de concentração.

Obviamente não é do similar nacional que discorro, mas de 'Olga Benário: uma vida pela revolução', docu-drama (seja lá o que isso queira dizer na prática) franco-germânico, do ano passado, dum sujeito chamado Galip Iyitanir, turco de nascimento, mas alemão por adoção.

E fiquei pensando em como foi possível estragarem esta história que já nasceu pronta? Como diria uma personagem de Tieta 'mistério'.

Olga, após sua morte, o fim da segunda guerra mundial, o isolamento alemão oriental e a divisão de Berlim, se transformou num grande nome do socialismo. Uma pena que existia essa bobeira de heróis do bem e heróis do mal. Pelo que o filme defende, Olga está acima dessas pequenas divisões maniqueístas.

Aconselho: no Festival do Rio.

quinta-feira, 23 de setembro de 2004

A carona

O coração estremeceu ainda mais o volante em que ele se apoiava. Era uma batida compassada, mesmo que em crescente quanto ao ritmo, e forte, intensificara-se, as vibrações saíam pela caixa torácica, passavam pelo cotovelo, punho, dedos e atingiam a guia. E se depois de todo o imbróglio comentasse com alguém as razões dessa sutil transformação, era capaz de receber um corrente de risos dos interlocutores. Ele mesmo já havia passado por isso, conhecia a cena, avistava em todas as viagens esses hippies que vão dominar o mundo, como costumava comentar na roda dos companheiros.

(1)

Virou o rosto para o lado oposto, tentou se ater às imagens dos pastos essencialmente bovinos que se repetiam nas estradas desde o Rio, percebeu o raciocínio brotando na cabeça e tentou se segurar, não gostaria de virar o rosto, de conhecer o outro lado, de saber quem era aquela ali, de onde vinha para onde ia, por que será que saiu de casa, qual deve ser o seu destino? Deve ser muito bom viver assim na estrada, sem emprego, sem obrigações, é novinha, parece que é bonita, e se eu parasse, não... não há tempo, tenho que chegar em São Mateus o mais rápido possível, e minha família, o que é que minha mulher diria caso me visse agora?, a menina pode ser uma maníaca, não, isso seria ridículo, ela... agora dá para ver, é melhor olhar para o outro lado...

Pelo retrovisor reparou no dedo média dela apontando em sua direção. Uma agonia daquilo que poderia ser feito, dito, concluído, de todo o mundo que se reservava dentro de uma não-ação, ou melhor, dentro de uma atitude, tomar a iniciativa, poderia ter dominado o destino e propor-lhe outras interseções, uma companhia para uma viagem chata e repetitiva, sempre as mesmas vacas comendo o mesmo capim, com o sol a pino e a lua com estrelas, sem distinção de dias da semana ou feriados, era empurrar o acelerador, segurar a roda e seguir adiante. Doze horas depois aporta na pequena cidade desconhecida no norte do Espírito Santo, fazia o que tinha que fazer e voltava. Mais horas de asfalto quente e calor a pino e quando chegava no Rio, a mulher estava no mesmo lugar em que a havia deixado, como uma novela de que se perde alguns capítulos, mas sempre se sabe o fio da meada, basta assisti-la novamente por poucos segundos. Agora a possibilidade de mudança de canal, de transformação do programa havia ficado para trás, e talvez tal brecha dentro do seu cotidiano não se abrisse mais. E é provável que não fosse tomar qualquer atitude que diferisse desta, caso algo semelhante se repetisse.

(2)

Só para demonstrar para si mesmo que não havia qualquer incômodo, reduziu a marcha e parou, ofereceria carona. Os amigos costumavam contar que sempre era possível ouvir alguns casos loucos dessa gente que toma droga e vê coisas que não existem. E como falavam? Tinham aquele vocabulário próprio, uma cadência singular, um desprendimento quanto às normas, eram desregrados por natureza e escolha.

Do momento em que a avistou (cabelos castanhos claros, longos e mal cuidados, bolsa de renda a tira-colo, roupas largas, tecidos leves) até quando pisou no freio e a conseqüência do ato, não fixou o pensamento em nada específico e deixou que o instinto aflorasse – outro imprevisto, caso conseguisse se lembrar de todos os detalhes da história na manhã seguinte.

Com o veículo em descendente, a moça abre um sorriso de satisfação completa, como se tivesse alcançado o objetivo. Abaixa-se e apanha a mala arremessando sobre o ombro adentro. Conseguira a última carona na bifurcação da saída de Vitória, estava parada ali fazia horas. Se fosse em décadas passadas, ‘se fosse em 60, ou 70’, tinha esta convicção, ‘haveria mais amor no coração’.

***

Pintas, foi o primeiro detalhe que ele reparou no rosto da moça quando ela falou um ‘oi’ através da janela. Instantaneamente caiu no passado da primeira menina, era extremamente novo, mas o rosto pequeno e delicado, com as sardas, a transformavam num ser mais divino; despertou anos mais tarde, com a moça ao seu lado, de fora do carro perguntando para onde é que ele iria. A primeira troca de palavras. Como ele deveria se comportar, o que responder para não aparentar um completo idiota, ela não era assim tão mais nova que eu, se eu não tivesse casado tão cedo, ela poderia ser a, creio que deve ser dois anos mais nova que Lúcia, no máximo, ‘O quê?’, ela insiste em saber para onde ele vai. Ele responde que vai para o norte, diminuindo as palavras.

Um silêncio toma por completo o carro e ele pensa que nunca mais conseguiria quebrar a inércia. Sentia uma barreira entre os dois, o ar era espesso, era denso, ele mal conseguia respirar. Novamente o corpo latejou por causa do sangue que percorria suas artérias. ‘Eu também’ – rápida, fluída, em comunhão com o ambiente, dona de si. Ele tenta algo mais consistente e especifica que vai para o norte do Espírito Santo, numa pequena cidade chamada São Mateus. ‘Bah, já eu não sei exatamente onde parar. Eu quero conhecer o Brasil que é enorme’. Ele percebe o sotaque, mas não tem vontade de inquiri-la sobre sua origem. Não parecia certo. Ela não deveria ter destino, nem início, só o caminho. Ela pergunta o que é que ele faz. ‘É muito chato o que eu faço’. ‘Não deve ser, para estar na estrada’, Mas e quando a estrada se torna o seu cotidiano?, ele tem vontade de lhe perguntar para demonstrar que estava errada, mas sentiu que ela não lhe entenderia. Ficaram quietos os dois. ‘Você gosta de música?’, ela já mexia no toca-fitas do carro dele, nenhuma estação pegava, estavam num vale. ‘Tem alguma fita legal aqui?’, abre o porta-luvas e encontra uma da Elis Regina. ‘Gostava tanto dela’, segura o pequeno objeto, ele se divide entre manter a atenção na estrada ou na pequena inquieta ao seu lado. Parecia em constante ebulição, como se fosse capaz de cometer atos impensáveis imediatamente, apenas se houvesse algum impulso.

Colocou a fita, era um show ao vivo. Elis, no auge, voz firme, comentários entre cada música num tom borracho, ele sempre gostara desse jeito de Elis cantar, levando à máxima potência qualquer de suas músicas, ‘Ela era muito coração e as canções... ela as transformava em suas, né?’, ela pergunta e ele larga a sua frente e olha diretamente para ela, assustado, como se ela soubesse exatamente o que estava pensando. Ela não era exatamente o que a lenda dizia. Ia de encontro a qualquer idéia que ele já tinha tomado conhecimento, surpreendia-se a cada palavra, se embebedava de cada gesto, era excepcional tê-la por perto, saber que outras vidas acontecem lá fora, tão diferentes da sua. Teve um pouco de vontade em saber como ela se comportava longe daquele pequeno teatro de boas ações e quero ser sua amiga, importava saber quem era aquela menina do seu lado, de dentro dela, percorrer seus mais íntimos recantos. ‘Acho que vou com você até São Mateus, posso?’, ela inquiriu ainda antes da primeira música acabar.

(a)

Apareceu algo estranho dentro de si, como se uma oportunidade única aparecesse, mas que não tivesse a coragem suficiente para passar de determinados limites. Não era uma ligação com a mulher, com os amigos, com todos os conhecidos, com nada que ele vivera até o momento, apenas não acreditava no que ele estava vivendo. Uma angústia dominou-o, não cria em si próprio, não sabia se aquilo poderia acontecer com qualquer pessoa, não sabia agir quando tinha sorte, não sabia remar a favor da maré. Toda a sua vida tinha lutado, estar como estava, era fruto de trabalho pessoal e de mais ninguém. Era de família pobre, conseguira esse emprego com o patrão do cunhado exatamente porque parecia ser homem sério, não desses que farreiam todas as noites. Casara-se muito novo, acordava às sete todos os dias, mesmo nos que não trabalhava, seguia um método para que a vida não lhe apresentasse nenhuma surpresa indevida, para saber se comportar em qualquer das atitudes possíveis e agora, quando menos percebeu, tinha uma desconhecida sentada ao seu lado, perguntando se podia ficar com ele até o final da estrada, até o final de tudo, até quando não poderia mais. Queria propor uma alternativa que ele não tinha antevisto e ele deveria se comportar com isso, deveria dar uma resposta. Ele tinha que ser alguém, com iniciativa, ou optar por continuar sua vida que não era a melhor, mas também não lhe reservava grandes sustos. E então percebeu que não sabia mais falar, não lembrava como se conversava, como manter um diálogo, pronunciar palavras, deixar escapar sua opinião, para onde queria que corresse toda a história, não enxergava objetivo em uma das opções que ele possuía e isso o consumia. Como ele era tão cego dessa maneira? Precisou uma ou duas resposta, não concluiu nada e calou-se ainda mais.

(b)

‘Claro’, rateou e depois se perguntou se era realmente assim tão óbvio, se queria que ela ficasse com ele até São Mateus, se não era muito arriscado, se saberia se comportar, se era o correto. Não obtinha respostas, não havia resultados possíveis. As batidas do coração aumentaram de volume e ensurdeceram tudo a sua volta, turvando sua vista, tendo apenas o caminho a sua frente. Sentiu suas mãos frias e suadas, o corpo inteiro gelado, só a cabeça pesando e o pescoço sem forças, a vista embaçava de um branco que apaga das beiradas ao centro, como uma borracha que corrige os erros num caderno escolar. Ela tocou na sua coxa e ele voltou a si. Escutou numa voz calma se ele estava bem e no instante seguinte já se sentia regularizado. O toque, o carinho, a calma, a delicadeza e principalmente a preocupação, deram a ele algum tipo de força que o despertou do torpor, do abismo que havia se metido. Naquele instante eram conhecidos, haviam se ligado intimamente, um dentro do outro, um a partir do outro, estavam conectados. Não importava o que ele pensasse, como agiria, o que quisesse, quais fossem suas intenções, ela entenderia. Não era em São Mateus que ele pensava, não era dali a quatro quilômetros, nem no Rio de Janeiro. Era naquele meio de nada, com vacas comendo os capins que insistem em nascer da mesma maneira há séculos. Era esse sem sentido que ele teve vontade de incrementar, que ele queria figurar, colocar novas modalidades dentro da ordem pré-estabelecida. Queria fazer algo diferente só porque era possível, mesmo que não fosse o certo, mas isso não importava. Mesmo porque para pensar no que era errado deveria lembrar de outras pessoas e ele agora duvidava de qualquer outro ser no mundo. Talvez não existisse nada além daqueles morros. Não saberia dizer, só aquela menina quase da sua idade, de pele branca, que demonstrava uma vivência única. O amanhã talvez chegasse, e ele poderia comprovar, mas antes ele iria dormir, e quando acordasse, descobriria.

segunda-feira, 13 de setembro de 2004

Argentina 4, Brasil 2

Cometários sobre uma coincidente superioridade hermana em um campo literário.

Há um sebo de livros na rua Buarque de Macedo - primeira à direita na Rua do Catete, não me perguntem o número - espetacular.

Faz merecer tal acunha por:

a) se organizar como um livraria moderna, com sessões tanto de filosofia grega antiga e literatura russa quanto de livros sobre regiões desaparecidas (como Atlântida e coisas do gênero) e de ficção científica;

b) a organização: tem uma variedade absurda de assuntos, num pequeno espaço, sem que para isso fique entulhado;

c) ser possível encontrar livros que pareciam pertencer somente ou às livrarias de novos ou às edições antigas já esgotadas.

Nas minhas duas últimas incursões, em semanas intermitentes, deixei dois chequinhos que, apesar do número de obras adquiridas, me quebraram no meio do mês. Foram quatro argentinos: 'Livro de areia', Borges; 'Histórias de amor' Adolfo Bioy Casares; 'Octaedro' e 'História de Cronópios e Famas' do Cortázar - este algo raro. E dois tupiniquins: 'E com você, Antônio Maria', crônicas do pernambucano-carioca publicadas no Última Hora nas décadas de 50 e 60; e um livro compilação de outros dois, de contos, do Otto Lara Resende: 'As Pompas do mundo' e 'Retrato na Gávea'.

De todos estes, li apenas os dois primeiros e duas faces do terceiro.

O borgeano mostra um pouco mais do mesmo. Entretanto, ao considerarmos que o JLB estava há mais de cinco obras sem enxergar nada além de pequenos lapsos do amarelo e do azul, e ter voltado ao fantástico com maestria em alguns contos (ex.: 'O outro' e o que titulou o livro), já valem a pena. Inclusive é muito válido ressaltar a constante oralidade dos seus textos. Parece que estamos conversando com o velho. E, de certa forma, foi mais ou menos isso que aconteceu.

O Bioy Casares foi, de certa forma, uma decepção. Não que ele seja ruim, mas depois de ter lido a 'Invenção de Morel', o seu primeiro romance, a minha expectativa era altíssima. Nesta coletânea de contos em questão, ele não trafega, em nenhum momento no absurdo, nas linguagens cifradas, numa imaginação carregada, na fantasia. É quase um diário de um protagonista - quase sempre o mesmo - que narra suas conquistas, perdas, sacanagens, ironias, jogos de relacionamentos homem-mulher, essas coisas. Fica um tom acima das 'Comédias da vida privada' e um abaixo de Nelson Rodrigues. Mas nada que não tenhamos já visto algumas vezes. O talvez melhor escrito é aquele em que Bioy Casares tenta decifrar o que as mulheres desejam, num título sugestivo e discutível: 'Todas as mulheres são iguais'. Em sua argumentação, ele defende que, independente de formação, gênio, criação ou índole, todas as fêmeas da espécie só procuram uma coisa: segurança. A conferir.

'Octaedro' de Júlio Cortázar foi o responsável por todo esta enrolação até agora. O primeiro conto é, sem medo do exagero, perfeito. O segundo também está acima da média. Por cronologia:

'Liliane chorando' é escrito por um homem desenganado. Ele imagina como será a vida de todos que ele detém alguma afeição depois de morrer. Fala do seu enterro, como se comportarão os amigos, a mãe, Liliane - sua mulher, Alfredo, o quase-irmão. Descreve as coisas impregnado de uma emoção genuína, como se tivesse uma saudade, uma tristeza por não poder participar da vida de todos os que ficarem. Leva toda a narrativa, com várias brincadeiras quanto ao formato (há um momento que ele escreve 'fotograficamente' - sensacional!) até quando há um final que não pode ser chamado de surpreendente, mas em que você diz 'Não...' na tentativa de evitar o que não dá mais. Impressionantemente bom.

'Os Passos no rastro' começa com um comentário explicativo asssim: 'Crônica um pouco tediosa, estilo de exercício mais que exercício de estilo de um, digamos, Henry James que tivesse tomado chimarrão em qualquer pátio portenho ou platense dos anos vinte'. Por isso, comento-o outro dia, quando falar de um dos maiores ingleses nascidos nos EUA em todos os tempos.

Orelhadas sobre os brasileiros, só no futuro.

quinta-feira, 9 de setembro de 2004

Carta à comissão julgadora da revista ‘Proa’

Carta à comissão julgadora da revista ‘Proa’

Rio, Setembro de 2004

Senhores,

Não quero, com esta carta, me igualar àquele a quem afirmaram peremptoriamente ser eu um copiador. Pelo contrário, não me iludiria a este ponto. Tenho como fim, agora que já o li e reli, demonstrar, até mesmo através dos próprios argumentos do famoso escritor, da impossibilidade prática do plágio. Não anseio, também, que revejam sua decisão no que concerne ao meu pequeno conto. Sei da minha completa falta de qualidade e do meu posto inferior perante a média dos que tentam conviver desta forma. O máximo que me condiz é ser um aspirante; o que já me é bastante aprazível – considero. Entretanto, desejo acender uma fagulha para a mudança na forma de julgamento, mesmo que esta vontade seja em vão. Intuo cambiar o aspecto fundamental da avaliação de originalidade quanto aos temas abordados (já que isto, em princípios, é utópico), para inovação quanto às formas. Por outro lado, não defendo o rebuscamento extremo, nem apóio textos incompreensíveis pelo excesso de experimentalismo. Trafegando no raso e diretamente: almejo que os contos não sejam avaliados e rechaçados perante uma coincidência do tema principal. Em outras palavras, que caso igual ao meu não ocorra novamente.

Tentarei criar uma cronologia para que logo de início toda a argumentação seja fundamentada e explícita. Em fevereiro deste ano, descubro da possibilidade de publicação de contos inéditos – sublinho a última palavra – na conceituada revista ‘Proa’. Teria uma quinzena para desenvolver uma pequena trama que pudesse concorrer com os outros prováveis candidatos e mais um par de dias para enviá-la tradicionalmente.

Durante algum tempo, que não saberei precisar, uma névoa branca encobriu todo o meu raciocínio fazendo com que não vislumbrasse nenhum argumento, quiçá interessante. A angústia e a cotidiana ansiedade me impediam de aquietar-me e escutar o que a ‘musa’ tinha a me dizer. Foi nesse período que um espanto substituiu qualquer outro sentimento: soube da morte estúpida (se é que todas as mortes não o são) de um grande amigo meu, Ivan Nogueira.

Havíamos estudado juntos na faculdade. Ele vivia extremamente, abusava de todos os seus gostos, independente das conseqüências; ignorava e abdicava dos planos, de algo que pudesse ser chamado futuro. Era extremamente imediatista e colhia amizades e inimizades por isso. Mesmo assim, sempre fora o melhor da classe sem que, para isso, tivesse que se dispor mais que qualquer outro. Sua grande vantagem sobre os demais era simples: viciara-se em leitura, sem preconceito de origem ou de tradição. Horas de sua vida eram passadas diante das letras, sem nenhuma ordem ou estratégia.

Depois de colarmos grau, nos afastamos. Ele se mudara para uma cidade distante, transferido pela empresa a que já era contratado. Eu fiquei para manter meu cotidiano inalterado. Suas informações foram diluindo, escasseando... fiquei anos sem ouvir falar nele. Até o funesto dia.

Quero deixar claro que todas as informações que chegaram a mim foram trazidas de conhecidos que ainda mantiveram algum contato com ele, por isso, não muito confiáveis quanto à fidelidade aos fatos, principalmente considerando o ambiente em que me foram confidenciadas. Todavia, todas estas versões são válidas para demonstrar a origem de minha história. Espero não estar usando a memória de meu amigo em vão.

Tentarei ser raso nas descrições para não enfadá-los. Em certo momento da vida, Ivan decidira que deveria ser mais humano, menos idealistas, menos romântico, mais real, mais carne e osso, menos pensamento. Ele, um impulsivo crônico, renegou a si mesmo e se transformou num sujeito medíocre. Descobrira que ele era pai de uma garotinha de dez anos, casado há mais de quinze e mudara por completo suas diretrizes básicas. Aquelas frases me chocaram inenarravelmente. Um homem pode constituir família, é o mais óbvio de todas as histórias, pode ‘amadurecer’ e deve se tornar um cínico perante todo o mundo. Mas isto tudo, vindo de um homem que era a representação em movimento do Chinaski me assustou e muito.

Voltei para casa e sonhei acordado com um personagem regular, que vai da casa para o trabalho e vice-versa. Seu único momento de fuga de sua própria realidade acontece na hora da morte: ele relembra ou recria o passado de forma a ter uma morte inesperada, longe dos quartos de hospital. Exatamente o meu texto. Parecidíssimo ao conto ‘O sul’, de Borges.

Contudo, com esta carta, reitero minhas intenções de esclarecer dois pontos embaçados até o momento: Não conhecia a obra do argentino cego até a carta em resposta; tento com o meu texto criticar uma morte violenta, já que nosso tempo, nossa realidade não mais permite qualquer exaltação da ‘malandragem’, do ‘marginal’, ou qualquer outra denominação conotativa para o caos urbano do dia-a-dia. O escrito argentino, por sua vez, defende uma exaltação do perigo, da coragem, até da força bruta em última instância.

Admito, no entanto, as extremas coincidências que permeiam ambas as versões. Reafirmo que minhas intenções eram opostas às do famoso contista. Copio-os trechos, em ordem cronológica, que assustam pelas semelhanças:

“Dahlmann não estranhou que o outro, agora, o conhecesse, porém sentiu que essas palavras conciliadoras agravavam, de fato a situação.” (pág. 589 de suas Obras Completas).

“(...) ele não estranhou que o outro, agora, o conhecesse, porém sentiu que essas palavras conciliadoras poderiam agravar a situação.” (‘a morte sonhada’).

Se no primeiro caso, o argentino explica que o simples fato de terem identificado o bibliotecário, protagonista de seu conto, o empurrava para a reação, já que a ameaça dos gaúchos não era mais contra um ser sem rosto, mas contra um homem honrado, e sendo honrado, deveria defender seu nome, mesmo que isso culminasse na morte pelas facas; no meu texto, assim como não há mais valentões inocentes, ou malandros para se romantizar, defendo que não há mais honra suficiente que vale uma morte através de uma briga. As ‘palavras conciliadoras’ poderiam agravar a situação, mas não agem desta forma. Há a igualdade nas frases, mas seus sentidos, nos respectivos contextos, são angularmente opostos.

Também difere, em meu conto, da idéia de que o protagonista argentino procura uma morte honrada, enquanto o meu é vítima de um ato fatídico, mesmo que sonhado, exatamente como no primeiro caso. No meu documento, tento representar a neurose coletiva, o medo ante a violência sem forma; no outro, uma exaltação pela honra, pela violência como algo másculo. Em ‘a morte sonhada’, tento relembrar que a morte pode ser inesperada e devemos sempre estar disposto a encará-la, não com unhas, mas tendo aproveitado ao máximo possível a existência; Borges, numa espécie de melancolia do que nunca existiu, renega habilmente o passado que teve, inflando outro que não há, apenas por conforto.

Quanto ao meu argumento de que nunca havia lido Borges antes de todo este imbróglio, não tenho solidez para comprová-lo. Tento esclarecer que tais coincidências são tão ou mais prováveis quanto aos escritos que são propositalmente idênticos. Contudo, admito que não haja como corroborar tal tese. Relembro, porém, uma idéia do próprio argentino, num prólogo desta mesma coletânea de contos, ao comentar um dos seus mais conhecidos, quando defende a falta de originalidade de sua, ou qualquer obra: “Não sou o primeiro autor da ‘Biblioteca de Babel’”.

Conto com a boa vontade de todos os juízes não para modificar o imutável passado, mas para corrigirem o inevitável futuro.

Desde já grato,

r.

terça-feira, 7 de setembro de 2004

Produção CASEIRA, entrega DOMICILIAR.

O sonho de qualquer empreendedor no mundo inteiro.

O porquê

Pedro Dória, um jornalista de menos de trinta anos que em NOMÍNIMO tem a incumbência de ser o ‘homem da internet’, foi o último que li sobre o tal conselho de jornalismo. E sua argumentação é completamente contrária a tudo o que havia LIDO até o momento (mesmo assim, também era CONTRÁRIO a sua IMPOSIÇÃO).

Sua TESE era uma peça de simplicidade: o TROÇO estatal + sindical já nasce obsoleto.

Seus ARGUMENTOS, de uma obviedade escrota: o conselho serve para coibir meia dúzia de grandes e tradicionais empresas de comunicação. Mas com a popularização (o termo é meu) da internet, CENSURAR uma produção sem periodicidade, sem regulamentação, até sem origem fixa se torna IMPOSSÍVEL.

Na PRÁTICA, copio-o: “Lá nos EUA tem comentarista político com blog na mão tão influente quanto comentarista político do ‘New York Times’. Com centenas de milhares de leitores diários. É só fazer uma busca no Google: determinados assuntos aparecem primeiro em blogs e só depois na grande imprensa”.

ANTES, já havia lido, em algum lugar, que, pela primeira vez na HISTÓRIA, blogueiro foi tratado de igual para igual com jornalista na convenção dos DEMOCRATAS.

O cerne

O SUJEITO, dono de blog, ou que participa de um site de música, ou literatura com uns amigos, sem nenhuma pretensão, só por esporte, mas com algum tipo de rigor, com vontade de fazer diferente: este será UM JORNALISTA. Talvez, um dia, ganhe até um dinheirinho para fazer o que mais gosta, de bobeira, em casa, sem exigir muito de si.

O google, só para ficarmos no raso, oferece, através do seu blogger, RENDA para o blogueiro através de PROPAGANDA. Criaram uma empresa que faz a interface entre os anunciantes e o dono do ‘conteúdo’. Seleciona produtos afins, cobra de um lado e PAGA por CLIQUE ao hospedeiro. São tão bonzinhos que deixam o blogueiro escolher a forma e o jeito de publicidade que mais gosta.

(Na sexta conferi e já tenho quatro centavos de dólares para receber ; )).

O finalmente

Os argumentos tradicionais já existem e já os escutei. O mais facilmente apontável: O Brasil NÃO é igual ao EUA. NÃO temos nem tantos computadores, nem tamanho acesso à rede. Complemento dizendo que NUNCA teremos uma equiparação. Mas e daí? Também não temos muitos leitores, quiçá de jornais. Entretanto, a profissão JAMAIS ficou em baixa.

Este espaço, como outrora dito, funciona bem assim: nosso jornalzinho da faculdade, que há trinta anos era mimeografado, há vinte fotocopiado, há dez impresso, agora é desta forma que VOSMECÊ confere. SÓ Abolimos o papel.

E temos a POSSIBILIDADE do acesso limitado apenas à vontade e à conexão dos leitores. Produção CASEIRA, entrega DOMICILIAR. O sonho de qualquer empreendedor no mundo inteiro.

quinta-feira, 2 de setembro de 2004

"A música é a única arte que não constrói o pensamento"

Uma aula, uma frase e o estrago está feito.

Fatos soltos:

1) O argentino Jorge Luiz Borges sempre disse que a única regra que deveria ser respeitada na construção de uma poesia era a necessária busca pela música dentro das palavras. Citava que, dentre as sete (seis + cinema) principais categorias do que é comumente chamado 'arte', a música era a mais perfeita.

Em suas palavras: "(...) Reconheço que, nos poemas, as palavras devem ser musicais; às vezes vacilo entre duas possibilidades para completar um poema: uma é lógica, a outra e musical. É claro que prefiro a musical" (La Nacion, 7/8/85).

ou

"Tenho ouvido para a música oral, mas não entendo a música. Se não entendo minha própria vida nem o universo... Contudo, consigo conceber um universo que se expresse em música. Um universo do tempo... e a música daria a mais grata das formas do tempo, porque a música flui com o tempo." (idem ao anterior)
ainda:

"Sinto a música como algo infinito" (igual às outras duas citações)

2) Em seu "O nascimento da tragédia no espírito da música" (1871), Friedrich Nietzsche tenta refutar o pensamento socratiano o qual argumenta que as formas de arte que devem existir são somente as cerebrais.

Na introdução a esta obra está escrito: "(...) Sócrates interpretou a arte trágica como algo irracional, algo que apresenta efeitos sem causas e causas sem efeitos, tudo de maneira tão confusa que deveria ser ignorada. Por isso Sócrates colocou a tragédia na categoria das artes aduladoras que representam o agradável e não o útil e pedia a seus discípulos que se abstivessem dessas emoções 'indígnas de filósofos' (Nietzsche, Obras Incompletas págs 9 e 10).

Para argumentar contrário ao grego, o alemão compara a tragédia à música. Diz que ambas são da ordem do impalpável, onde não podemos alcançar a lógica, porque esta não há e, assim, talvez, cheguemos o mais próximo possível de uma explicação para toda a existência (certamente um pensamento bombardeado de metafísica). Para comparar ambas as formas artísticas, Nietzsche cita um conterrâneo que define belissimamente a música e que funcionava para ele como uma espécie de tutor na época: Arthur Schopenhauer.

"(...) a música, como foi dito, difere de todas as outras artes por não ser cópia do fenômeno, ou mais corretamente, da objetividade adequada da vontade, mas cópia imediata da própria vontade, e portanto apresenta, para tudo o que é físico no mundo, o correlato metafísico, para todo fenômeno, a coisa em si". (A. Schopenhauer, Mundo como vontade e representação vol I, 309).

novamente, o mesmo autor:

"(...) o mundo fenomênico, ou a natureza, e a música, como duas expressões diferentes da mesma coisa, a qual, por sua vez, é portador único da mediação de ambos. (...) A música é, portanto, se considerada expressão do mundo, um linguagem universal em sumo grau (...)" (idem anterior).

Assim, de acordo com os germânicos, a música seria a forma mais fácil de explicar o inexplicável porque não era uma cópia de uma pensamento sobre o absurdo, mas a cópia do próprio absurdo, diretamente, sem meneios, ou entraves.

3) Isto tudo só porque eu voltei às aulas e escutei de um professor de estirpe conservadora, numa aula que ainda citava (como novidade) a escola de Frankfurt e as definições 'alta cultura e baixa cultura', uma frase que batucou durante dias na minha cabeça: "A música é a única arte que não constrói o pensamento". Ele dizia que, se não considerarmos as letras, as notas sozinhas não, necessariamente, te fornecem uma idéia forte sobre o que deseja passar. Assim, você deve criar o seu próprio raciocínio, a sua própria imagem mental sobre o som que escuta. Não é nem necessário dizer que achei bem interessante.

4) Por último, cito o Zé. Lembro dele ter dito, da sua maneira e em variadas oportunidades, que, apesar de gostar de cinema, livros (um pouco menos), muito de imagens (de pinturas clássicas a grafites nos muros), o que mais mexia com ele era a música. Inexplicavelmente, ou à sua maneira, perdido em várias explicações prolixas, o moçoilo dizia a mesma coisa que todos os outros aí de cima.