quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

'Procrastinação' (trecho): Citações religiosas


“Quando surgiu, o cristianismo se valeu da imensa vontade de suicídio que havia entre as pessoas. Imagine viver em uma época em que não havia qualquer conforto. Viver era um terror, era uma constante privação, era um eterno sofrimento. O cristianismo fez desse desejo pela morte, pela auto-aniquilação, uma alavanca para o seu poder: carregou de culpa, de uma espécie de pré-culpa, uma culpa de algo que você nem fez, mas que pensou em fazer, de uma culpa pelo pensamento – o cristianismo foi um mestre em culpar o pensamento, até o mais inocente dos pensamentos –, carregou de culpa todos os tipos de suicídio, multiplicando imaginariamente a sensação do incômodo do real, da vida real na cabeça das pessoas, trabalhando com a fantasia, com a criação de cada uma das pessoas para que elas soubessem, ou imaginassem, ou vivenciassem o que seria, como seria a vida delas caso se matassem, caso eles interrompessem suas vidas, caso eles tomassem uma atitude contrária ao dogma pregado. E o que eles viram era pior que choro e ranger de dentes.

“Os homens viviam constantemente agoniados, porque não conseguiam enxergar uma saída, porque estavam sempre vivendo vidas miseráveis e convivendo com o sofrimento alheio. A única forma de se aliviar era a Igreja, era a confissão, era o desabafo no ouvido do padre que, dessa forma, tinha acesso a todos os segredos da comunidade, e portanto poderia controlar o que acontecia porque conhecia os mais íntimos segredos de cada um dos habitantes de seu vilarejo. Tinha acesso à informação, e não podia contar a ninguém, porque a confissão deve ser secreta. Mas, em uma posição privilegiada, o clero podia controlar as demais pessoas – e era o que acontecia.

“Para falar a verdade, a igreja não negou todas as possibilidades de suicídio: negou todas as possibilidades de saída, de escolha, de decisão. Porque ela manteve duas formas de suicídio, apenas duas, e as revestiu das mais altas esperanças e da mais importante dignidade: o martírio lento e o aniquilamento dos ascetas.

“Em todas as religiões, o homem religioso é uma exceção. A oração foi inventada pelos homens que nunca tiveram pensamentos próprios. Não sabem o que fazer nos momentos importantes de suas vidas, nos momentos mais elevados, quando eles percebem que deveriam se comportar com alguma dignidade. Eles não sabem o que fazer.  Foram anos sendo catequizados para não pensar nada além do que era autorizado. Doutrinados para apenas repetir, para ser o moto-contínuo, para repetir o que vinha de trás e jamais colocar a cabeça para fora.

“Os fundadores das religiões, para evitar maiores problemas, criaram a oração como forma de doutrinar o pensamento, adestrar o homem comum, o homem do bando, o homem da manada. A oração é a etiqueta do pensamento. É a cela vazia, é o caminho estreito, é a repetição que esvazia o raciocínio. É o dizer sem querer dizer, é o afirmar sem ter completa noção do que se está falando. Proibir ao homem menor de dizer suas orações seria roubar-lhes suas religiões.

“Quando encontramos a defesa da moral, quando ouvimos das pessoas a necessidade de moralizar as ações, quando percebemos que há um anseio por uma doutrinação, estamos escutando os argumentos do pensamento de rebanho. Quando há um argumento de que a necessidade da maioria é mais importante que a vontade de um único indivíduo, que esse único indivíduo deveria baixar a cabeça, não voar mais alto, porque, por outro lado, estaria atrapalhando o funcionamento de todo o grupo. O pensamento de rebanho é um pensamento de preservação da espécie, que não afirma a vida em todas as suas possibilidades. Limita o ser humano até onde ele acha que pode ir, para não atrapalhar, para não despertar a inveja dos demais, para não desestabilizar a ordem, a falsa ordem que falsamente organiza o rebanho. Pela moral, o indivíduo é instruído a viver em função do rebanho. Quando o indivíduo sai de um rebanho e vai para outro, deve se aclimatar às novas morais. Ele sempre é limitado, ele sempre se deixa limitar, sempre se diminuindo, se apequenando pelo seu entorno, não tentando encontrar o próprio caminho, descobrir qual é o seu verdadeiro tamanho, perceber a direção para onde o seu vento sopra, qual é o formato de sua pegada. A moralidade é o instinto de rebanho no indivíduo. Por isso, sou contra toda a moral, sou amoral, sou a favor da ética.

“Faça aquilo que você acha que deve fazer, e tenha coragem e força para aguentar todas essas consequências. Não pense que elas te trazem apenas felicidade imediata, elas têm consequências, mas apenas o homem sem visão, o homem míope, que joga com as regras de outras pessoas em vez de impor as próprias, pensa que essas consequências podem ter uma conotação – seja negativa ou positiva. Elas apenas são. Nada além disso. Acontece o que tem que acontecer. Não é um destino, é o inverso. Não existe a possibilidade de fazer algo diferente do que aconteceu. Não é possível voltar, não é possível retornar e tomar outra oportunidade. Assim que se tomou uma decisão, vá em frente, siga adiante.

“O mundo dança entre os dois polos e nunca podemos congelar um instante. Estamos em constante mutação. Pensar que um momento ruim é ruim apenas é não perceber que até os momentos ruins têm coisas boas, assim como o inverso. O bom tem dentro de si o ruim, como o seu inverso, como se fosse uma bola, um círculo, um grande cubo em que as características estão constantemente misturadas, e são, em si, mescláveis, podem ser uma coisa e logo são outras, e elas podem se transformar, e elas são diversas coisas ao mesmo tempo, sempre mudando, nunca podendo se congelar o momento.

“Imagine uma ampulheta que em vez de duas meias-bolas tivesse apenas uma e inteira e que estivesse em constante mutação, em constante movimento. E que cada grão de areia não fosse apenas areia, mas a antiareia, o inverso da areia, e todos os estados fluidos entre a areia e a antiareia. E conforme a bola-ampulheta se movimentasse, porque é impossível ficar parado, nada fica parado, tudo está em constante movimento, os grãos mudariam a todo momento de areia para antiareia, passando por todos os estágios intermediários.

“A pior coisa que a Revolução Francesa fez foi matar o Lavoisier, que conseguiu resumir em uma frase o que eu quero dizer: nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Foi acusado logo pelo Marat, pelo Marat, que é mais conhecido fora da França por aquela pintura do Jean-Louis David, de quando ele foi morto pela partidária dos girondinos; pois bem, Lavoisier foi acusado de vender tabaco de baixa qualidade! O grande cientista foi acusado de vender tabaco de baixa qualidade! Foi guilhotinado. Perdeu a cabeça. O curioso, o curioso nessa história é que Marat, um jacobino, extremista, morreu antes, quase um ano antes. E sua morte desencadeou o período do terror, que você sabe melhor que eu como aconteceu.

“Outra curiosidade é que essa mesma máxima, que ninguém sabe realmente se foi dita pelo Lavoisier, mas que ficou associada à figura desse homem morto na guilhotina por causa de tabaco de má qualidade, é que mesma essa frase, também não é uma criação sua, mas uma transformação de outra, de um grego chamado Anaxágoras, que dizia que ‘Nada nasce nem morre, as coisas já existentes se combinam e depois se separam’. É curioso que mesmo a frase, mesmo essa coisa simplória como uma frase, um pedaço de código, uma sentença perdida, uma combinação quase aleatória de palavras, nem isso pode ser original, não é novo, não aparece, não brota da terra, não não-existe e depois existe, ela sempre existiu e vai mudando, vai se adaptando, vai se encaixando aos ouvidos de seu tempo, os ouvidos que nunca querem escutá-lo, que se tapam, que criam pálpebras para evitar que as palavras estranhas, palavras que possam modificar, que possam desestabilizar, que deixem o chão mexido, que trema sua vida, para impedir que esse tipo de palavra entre, para impedir que as palavras que poderiam ir contra à ordem, à moral, ao rebanho, que pratiquem a tentação. Como a história da maçã.

“Lúcifer foi o único anjo que desafiou Deus. Lúcifer vem do latim lucem ferre – aquele que suporta a luz. Era assim como os romanos, herdeiros da tradição grega, que não respeitava uma moral que impunha a vergonha da culpa, era assim que os romanos chamavam Vênus, o planeta que anunciava o sol, o arauto de um novo dia. É fácil. Luz, sol = Deus. Lúcifer, aquele que o anuncia, aquele que o suporta, aquele, que, de certa forma, vem antes, que é mais forte, Lúcifer = antideus, ou, pior, Lúcifer > Deus. Não poderia dar certo.

“O homem tinha que ser doutrinado a não desafiar deus, e, por consequência quem fosse o portador de sua mensagem. Por isso, mostrou-se, foi imbuído nas mentes de todas as pessoas que por conta da Eva, da mulher, coitada, que aceitou a maçã-proibida, da árvore proibida, todos agora sofreríamos. Essa passagem é tão forte que dá para vê-la por dois pontos cruciais. Primeiro se propõe que estamos pagando uma conta que não é nossa, mas que, por conta de uma semelhante, e logo a mulher, que é mais forte, que naturalmente aguenta mais as dores, que carrega dentro de si as gerações seguintes, que é a responsável pela prole, portanto a mais perigosa dos seres, já que pai do filho nunca é óbvio como a mãe o é, portanto que deve ser combatida, diminuída, humilhada, colocada por baixo, sobre todas as responsabilidades do mundo, a mulher, por conta dessa mulher, nós sofreríamos, nós não viveríamos mais – e eu sublinho essa palavra – num paraíso – incrível como a palavra aqui parece se encaixar perfeitamente, mas que não diz muita coisa, já que não sabemos o que era esse paraíso, ou essa definição é uma definição moral, datada à moral de uma época e não algo atemporal, ética.

“Além dessa culpa que amarra, que acorrenta na perna uma bola de ferro, que prende a uma masmorra, além disso, essa mesma anedota, esse mesmo conto propõe ainda uma atitude passiva, que seja contrária à ação, que se espere que aconteça, que viva sobre a influência de deus e de seus mensageiros, de seus enviados, que são escolhidos pelos seus superiores, sob que tipo de critério, não sabemos, e sob quais circunstâncias, podemos apenas intuir. Portanto o homem e principalmente a mulher devem se martirizar pela pretensa burrice de si mesmo – porque quem garante que você também não cairia em tentação? – e deve esperar os padres da igreja para tentar se resguardar para, talvez, um dia, entrar novamente nesse paraíso perdido, nesse lugar idílico que é, por si, totalmente moral.

“Em vez disso, por que não se orgulhar da decisão de Eva, que queria pensar maior que o paraíso lhe permitia? Por que não perceber em Eva a primeira mulher, a primeira pessoa que desafiou uma moral estabelecida? Que queria apenas saber como era algo que não conhecia? E nem vamos voltar à questão de Lúcifer, que caiu porque desafiou esse deus todo poderoso, que não aceita nem o diálogo. Não me assusta que as ditaduras tenham uma inclinação ao catolicismo.

“Quando nasceu, Zaratustra sorriu e por isso o sacerdote da vila mandou o pai dele matá-lo. Onde já se viu uma criança sorrir em vez de chorar ao nascer? E o pior: o seu pai o colocou na fogueira. Mas ele não se queimou. Depois, colocou a criança para ser pisoteada por uma manada de bois, mas um animal o protegeu. Depois, o colocou no meio da floresta, mas Zaratustra sobreviveu a tudo.

“Antigamente, o que havia de pior era viver isolado, porque queria dizer que era quase a morte. Hoje, com toda a nossa tecnologia, isso chega até a ser engraçado, mas se você pensar que houve um tempo em que as pessoas dependiam uma das outras para tudo, para trabalhar na lavoura, para construir novas casas, para costurar roupas, para combater os invasores, se tem acesso ao motivo pelo qual a moral nasceu. O homem abria mão de sua liberdade, de seu sentimento de poder fazer o que ele bem queria para viver dentro dessa sociedade. A moral, portanto, sempre nivelou por baixo, sempre se prestou ao mais baixo nível para que todos estivessem incluídos.

"Imagine um mundo em apenas de duas dimensões – você pode escolher quais dimensões quiser: comprimento, profundidade, altura, qual você quiser, mas só duas. Imagine um mundo só com comprimento e profundidade, sem altura, por exemplo. Tudo é completamente raso, plano, não existe nada acima de nada, não existe o abaixo, todo mundo só vive em duas dimensões, são totalmente comprimento e profundidade, só isso e nada além. E então, um dia, chega um helicóptero, um objeto voador, algo que não está dentro do que as pessoas estão acostumadas. É sobre isso que estou falando.”

Nenhum comentário: