“Eu também encontrei um dos nossos quando tinha mais ou menos a sua idade. De vez em quando, encontramos um dos nossos, um desses homens que, se quiser, nunca encontra a mortalidade, que não morre nem se a cabeça for cortada, melhor que o Highlander. Estava fora de casa, como eu sempre estava, para evitar encontrar as pessoas que viviam lá em casa – eu odiava ficar em casa, era sempre muito bagunçado, confuso, escuro, fedido – estava andando pela nossa vizinhança, a esmo, sem qualquer destino, apenas para matar o tempo e a angústia.
“Eu o vi na esquina, em frente à padaria. Dava para ver que era um homem pobre, mas ele tinha uma elegância incomum. Usava um terno púrpura que, apesar de gasto, estava alinhado. Sua postura foi o que mais me impressionou. Era magro, alto, parecia ter mais de dois metros, mas na verdade não tinha mais que um metro e oitenta. Estava apoiado no poste, olhando o vazio, mas sem ver. Destacava-se do seu entorno, como se fosse a única figura com cor, num ambiente sépia, a única pessoa em movimento, onde todos apenas eram fotografias congeladas, de um passado que insiste em se repetir. Era louro, de olhos claros. Usava um chapéu – no meu tempo de moleque, as pessoas usavam terno e chapéu, não ria.
“Era um dia morno, sem sol, mas a umidade castigava. Percebi que, aparentemente, ele também me enxergou. Depois de uns instantes, fixou os seus olhos em mim e me fez ir até ele. O seu olhar era tranquilo, não tinha qualquer interpretação. Era simples, direto, comunicava que ele queria falar comigo, que ele queria apenas me conhecer, que ele me achou diferente de todos os em nossa volta.
“Atravessei a rua e fui em direção a ele. Ele me ofereceu um cigarro. Eu não fumava, mas aceitei. Ele me disse o seu nome, Klaus. Era alemão, tinha vindo para o Brasil na época da Guerra. Na Alemanha, ele estudava o cérebro e os limites do pensamento. O governo nazista gostava do assunto e o incentivava, mas quando acabou a guerra, ele foi visto como um traidor e tinha sido condenado à morte. Como ainda achava que poderia prosseguir com suas pesquisas, decidiu fugir. Conseguiu chegar ao Brasil e vivia de bicos, de conseguir que os outros pagassem as coisas para ele. E ele falou que isso era fácil. Eu duvidei – era novo, não sabia ainda nada – e ele sorriu para mim, como quem dissesse: inocente. Ele decidiu, então, me mostrar. Fomos ao supermercado do lado da padaria. Entramos e ele andou pelos corredores até encontrar uma fila de pessoas, comprando algum produto escasso, carne ou algo assim. Ele entrou na fila e começou a conversar com aquelas senhorinhas que estavam na fila antes dele e, em menos de cinco minutos, já tinha convites para almoçar ou jantar de duas senhorinhas de cabelos brancos.
“Decidi aproveitar e aprender tudo o que eu podia com esse homem. Voltei em casa, peguei a chave da nossa casa de praia e fomos, naquele mesmo dia, para lá. Ficamos três semanas lá. A primeira coisa que ele fez ao chegar e nos instalarmos foi perguntar o que eu queria saber. Eu, ainda muito cru, perguntei o que é a verdade. Ele olhou para mim, sorriu ternamente, com carinho, e respondeu: é uma mentira.
“Aquela resposta ficou rodando dentro da minha cabeça e eu não consegui perguntar mais nada naquele momento. Fiquei desconcertado. Ainda acreditava em algo que fosse a emanação de todas as outras coisas. Por um lado, é um pensamento mais simples, que, se não nos esforçarmos muito, acabaremos tendo. Por outro, não há como fugir de nosso ambiente, de nosso entorno e sempre repetimos o que estamos acostumados a ouvir, até que conseguimos nos livrar disso, nos libertar, nos tornarmos independentes. Portanto, eu ainda repetia, sem perceber a ideia de um deus, que fosse o dono, o criador das demais coisas, fosse a verdade, e o restante fosse apenas o reflexo dele, um reflexo opaco, sem comparação com o brilho original, quando na verdade, somos um erro, somos o máximo que a evolução chegou – mas o mundo já viveu gerações e gerações sem que nenhum ser vivo aparecesse, e o mundo pode continuar sem nenhum ser vivo. Somos coadjuvantes, somos colaterais.
“Dias depois, após raciocinar muito sobre a resposta dele, sem chegar a qualquer conclusão, sem entender bem o que ele tinha dito, apenas achando a frase estilosa, como tudo o que ele fazia – era um homem elegante – tomei coragem e o perguntei, diretamente, o que ele queria dizer, o que quis dizer com a verdade ser mentira. Novamente ele me deu um sorriso de ternura, como se achasse engraçado eu estar passando por esses tipos de dúvidas, mas também entendesse que era algo normal para mim, como se ele, de certa maneira, se visse em mim, como se eu estivesse seguindo, sem saber, o caminho que ele tinha trilhado um dia, lá na Alemanha. A verdade é uma invenção, disse ele, a verdade não existe, só existe mentiras, ficções, que nós acreditamos. Mas não é ruim não existir nenhuma verdade?, tentei ainda perguntar, mas já completamente confuso. Ele respondeu que não, não havia nem bom nem ruim. Isso também era invenção. Perguntei se a vida, se o mundo não era ruim, ele disse que a vida não era boa nem ruim, a vida é.
“A vida é. Aquela frase, aquela frase, interrompida, assim, no meio dela, como se faltasse algo, como se pedisse que alguém a completasse, como se causasse propositalmente um estranhamento para despertar um interlocutor, mas apenas o interlocutor razoavelmente curioso, porque o adormecido iria passar sem perceber que a frase acabou antes de terminar. A vida é. A vida é o quê?, me perguntava, sem saber que estava fazendo a pergunta errada. Sem saber que essa pergunta não existia, sem saber que qualquer resposta poderia se encaixar ali, sem saber que a vida é o que ela é, no momento que ela está sendo, para quem for que esteja vivendo.
“Minha cabeça ficava cada vez mais confusa. Meus raciocínios não chegavam a qualquer conclusão. Eu queria clareza, mas uma clareza a que eu estava acostumado, com uma luz fraca, enquanto ele acendia um farol para onde eu não conseguia olhar diretamente, porque não estava acostumado, porque tinha medo de ficar cego. Nós temos medo de saber, de conhecer porque pode nos desconectar com a nossa vida, pode nos levar a um mundo onde o chão é gelatinoso, onde o ar é duro, onde tudo o que conhecemos é diferente, e teremos que nos adaptar, teremos que nos modificar – e raros são os que querem mudar, raros os que querem sair do chão, mudar de ar, se movimentar. O resto gosta de raízes que o identifiquem com o ambiente, que ele não precise fazer qualquer esforço. Eu quero remar contra a maré – como diz o Cazuza, para me exercitar. Eu quero mais sofrimento, para fortalecer esse meu músculo, esse músculo que não existe fisicamente, mas que é o único que nos faz andar, realmente. Enquanto as pernas caminham, mas não saímos do chão, esse músculo, que é treinado, que é exercitado com o sofrimento, com os problemas, ele é o que nos faz avançar, é o que nos fortalece, nos prepara.
“Extremamente confuso, perdido nos meus raciocínios que não chegavam a qualquer conclusão, interrompi o café dele na manhã e o metralhei com diversas perguntas. Hahaha. Eu era tão inocente. Até curioso pensar nisso, hoje. Perguntei o que havia no mundo, antes do mundo existir. Perguntei para que nós existimos. Perguntei como sabemos se estamos fazendo a coisa certa. Perguntei qual caminho tomar. Ele me ofereceu um cigarro. Tomou mais um gole do café e falou para segui-lo.
“Fomos andar na praia. Eu sei, é meio clichê, mas estávamos em frente ao mar, e era 1950, quando os nossos atuais clichês foram criados. Ele me perguntou: por que o mar tem ondas? Porque a gravidade da lua afeta a água, respondi, cheio de mim. Ele sorriu, ternamente. E por que é ritmado? Por que há uma onda e depois outra, por que há um balanço? Eu não sabia responder. E ele também não dizia nada, apenas me olhava, ternamente, no que eu interpretei na hora como se fosse uma cobrança. Aquilo me angustiava. Não saber o que de alguma coisa, o motivo, o porquê, aquilo me consumia, aquilo começou a me fazer mal. Era um dia nublado e frio, típico do inverno na costa, com céu cinzento e vento constante. Mas eu sentia um calor que não tinha razão de ser, sentia um peso, a minha vista escurecendo a cada piscadela, até que uma hora eu quase desfaleci. Me abaixei, ajoelhado, cansado, como se tivesse gasto toda a minha energia procurando uma resposta de algo que eu nem mais lembrava o que era.
“Ele esticou a mão para me ajudar a levantar e disse apenas: tente focar sua energia naquilo que você pode saber. No que você não tem como saber, espere até a resposta vir a você. E quando levantamos, eu estava ainda um pouco confuso, eu olhei para o mar e fiquei muito impressionado, fiquei o mais impressionado que já fiquei na minha vida, antes daquilo e até hoje, quase 50 anos depois, eu olhei para o mar e não havia uma única onda, o mar estava mais parado que uma piscina, estava quieto, tranquilo, calmo.
“Ele me levou para casa e eu ainda pude dar uma olhada no mar, antes de entrar, e o mar continuava sem qualquer movimento. Entrei e apaguei no sofá, como se eu não dormisse há semanas, como se eu estivesse gasto todas as minhas energias, como se estivesse esgotado. Quando eu acordei, a primeira coisa que eu fiz foi olhar o mar e ele estava agitado como sempre esteve.”
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