A única dificuldade que eu imagino que deva existir está no fato de eu ter retrabalhado as citações do filósofo. Peguei a frase e a tirei do seu entorno, tentando, porém, manter um pouco do contexto, ou adicionando a minha interpretação. O que, no caso, modifica muitas coisas, claro, mas é como se fosse um acréscimo, um avanço, um se adiantar um pouco. Ou, ao menos, um sair do lugar. Também pode atrapalhar um pouco o fato de eu ter usado uma edição cuja tradução foi bastante criticada, já. [Antes que me perguntem porque eu a comprei, já respondo: era a mais barata. Sou tradutora, tenho orgulho dos meus pares, mas o meu salário não condiz com as minhas intenções.] Já chegaram a dizer que a tradução é um plágio de outras traduções! Ou, melhor, um amálgama! Pega-se daqui um pouco, acrescenta-se ali um tanto, retira de outro lugar e [quase] ninguém vai reparar, já que raramente as pessoas leem duas versões da mesma obra e a ficam comparando – como eu, às vezes, me pego fazendo.
Além do problema ético – roubo da propriedade intelectual – e econômico – está deixando de pagar os verdadeiros tradutores por seus trabalhos, há o maior deles, provavelmente: a mudança de tom na tradução, o que é agravado no caso de livros de filosofia – mas não só os de filosofia, claro. Imagine você que o Tradutor 1 use uma palavra X para designar o conceito Y. Durante a leitura da versão da tradução feita por 1, estamos acostumados com a palavra X. E todas as vezes que a lemos, pensamos em Y. Porém, o Tradutor 2 entende o conceito Y diferentemente e o traduz como Z. Então, quando formos ler a versão-amálgama, nos perderemos sem saber se Z é um novo ou o mesmo conceito de X. Não tendo acesso ao original, a situação pode ser ainda pior caso o Tradutor 3 use a palavra Z para o conceito W. Ou seja, para uns casos, Z quer dizer Y, para outros, W. E em alguns casos, Z é igual a X. Enfim. Após essa sopa de letras, dá para entender como a questão é problemática.
Fiquei pensando agora sobre o que eu fiz acima. Também peguei uma versão e a mexi. E a retrabalhei. Não é um plágio. Mas não estou dando o devido crédito para o seu autor primeiro. Mas o que eu fiz foi sair desse caminho e partir para outro. Mas isso, de certa forma, também é apropriação indevida. Mas eu fiz apenas um colagem, uma citação, uma referência. Um remix. Remix. Que medo de usar essa palavra e parecer que estou tentando parecer moderna.
“E como ficou chato ser moderno / agora serei eterno”, já dizia Drummond, num dos típicos casos em que a internet se presta ao exemplo de demonstrar como a questão da autoria é complexa demais para se resumir à assinatura do texto: nas buscas pela web em português essa frase é mais atribuída a Picasso que ao próprio autor, mas quando se procura em espanhol, a frase volta a ser de Drummond. No fundo, se a mensagem for passada, qual é a importância – para o mundo – de quem a escreveu? Claro que se olharmos para um caso específico, para o do autor, himself, talvez ele seja menos reconhecido e, assim, tenha mais dificuldades de sobreviver. Um artista basea boa parte de sua busca pela sobrevivência em seu nome. Quanto mais conhecido for, maior é a probabilidade de ser mais fácil viver, conseguir vender mais, trabalhar com outros negócios correlatos. A questão principal é: isso não modifica em nada a produção da frase. Afora o fato de que o único objetivo do artista é produzir arte – nada além disso, mesmo que isso soe extremamente romântico e que sugira que o artista deva passar fome para sobreviver ou trabalhar em outros empregos – o artista não muda o que foi dito, escrito, desenhado, tocado, construído, após o ponto final. Ele pode jogar fora o que escreveu, mas se tornar público, se mostrar ao público, já não pertence mais a ele, ou apenas a ele. O leitor, o espectador, o receptor, não apenas hoje em dia, mas sempre, é parte tão fundamental na construção da obra como o próprio produtor, quem mete a mão na massa. É um típico caso de interrelação – de jogo – em que um não sobrevive sem o outro, e que a arte faz o intermédio entre os dois lados, que não necessariamente são opostos, mas raramente estão no mesmo corner.
Ao ter contato com um texto, o leitor o recria em sua cabeça, de maneira que ele se torne único, um objeto diferente do que foi passado, do que existiu. Ele busca em sua caixa de referências os modos de decifrar esses códigos e abrir a porta que vai lhe proporcionar o deleite, o gozo, o prazer. Por conta destas consequências, aliás, essa procura interna por ferramentas não pode ser algo exatamente racional, ou mediada por uma intenção, um propósito, mas algo que tenha bastante do intuitivo, que trabalhe com o impulso, com o que há de primeiro, de espontâneo, de explosivo dentro de nós, para que possa ir – pensei em escrever circular, mas a melhor é opção é serpentear [ou torcicolar, palavra que eu achei um luxo] – para que possamos seguir ondulantemente, ou melhor ainda, sinuosamente, com curvas côncavas e convexas tendendo ao infinito em que cada raio diminui ao passar pelo meridiano imaginário que separa os dois hemisférios.
Por isso, talvez, esse nome “remix”, que hoje é tão incensado [palavra dúbia que quer dizer tanto “elogiado” quanto “ludibriar”] é apenas uma nova forma de chamar algo que sempre existiu. O hábito de revisitar o que já foi dito-produzido, e re-produzir – que é diferente de reproduzir. Se no último caso é uma questão de cópia, de repetir os mesmos códigos nos mesmo lugares – o que, como veremos, já é uma tarefa impossível em si – no segundo, é saber que se vai produzir um novo material a partir do que já fora produzido. “Novo”, no caso, é uma figura de linguagem, ou força do hábito – mas no sentido de que algo que não existia fisicamente antes e agora há.
Sobre a impossibilidade de se “reproduzir” algo, temos diversos exemplos bons na história da literatura. Basta pensar que a provável mais conhecida peça teatral do mundo não é original – ou não é a primeira a contar a história do príncipe da Dinamarca. Há relatos que Shakespeare teria copiado uma outra versão anterior de “Hamlet” – isso sem contar com toda a central de boatos envolvendo o maior bardo inglês. Porém gosto de citar sempre o caso de Pierre Ménard , esse homem que em pleno século XX tentou a tarefa inglória de escrever – reparem, não tentou reescrever, mas escrever – o “Quixote”. Ao fim, conseguiu alguns lampejos de originalidade, mas o caso era complexo demais para ter uma solução simples e totalmente satisfatória. E, last but not least, de um amigo meu, escritor pouco conhecido, chamado Ronaldo Pelli que sofreu com acusações de plágio por conta de um de seus contos, em que ele, sem qualquer conhecimento da versão anterior do tema, repete frases inteiras de outro conto, de um outro escritor, esse sim de renome, relevante, reconhecido e, como já disse, uma espécie de meu avô literário, Jorge Luis Borges – que, aliás, dizia que não existe “originalidade”, porque não há origem, nem “versão final”, porque não há fim."
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