quarta-feira, 31 de dezembro de 2003

acabei de ver uma placa de carro com os seguintes dizeres: "god creates the man, but simon colt made them equal".

talvez o que mais me assustou aqui no inicio, como um estranhamento antropologico, se me permitem a pseudice, foi a facilidade de se adquirir armas. no supermercado, encontramos rifles - dizem que eh para cacar - por apenas 35 dolares. no minimo, impressionante.

o sujeito que foi me buscar no aeroporto, pediu para eu colocar a minha mala "over this gun". fiz uma cara de assustado e ele, "yeah, this is a gun". exatamente como se dissesse, "o meu guarda-chuva, ora. vc nunca viu um guarda-chuva". depois, descobri que ele tem quinze armas em casa, mas nunca pensou em usa-las para se defender.

e olha que, apesar do bigode e de beber cerveja pelo gargalho ao dirigir, ele foge bastante do estereotipo do americano medio.

o que choca eh perceber que o que o michael moore mostrou no seu doc., nao eh aumentativo de nada. nao houve fantasia para fazer cinema. muito do que ele foi acusado (de falsificar a realidade) pode ateh pesar contra ele, mas como eh impressionante a maneira como ele captou a fascinacao americana por armas.

sigo aqui, esperando que algum dia um sujeito me aponte a arma apenas porque sou brasileiro. e nao, eles nao acham que somos macaquinhos de circo, eles nao acham anada. nao tem a menor ideia de quem somos, o que ateh acho pior.

terça-feira, 30 de dezembro de 2003

aqui, em South Carolina, North Charleston, nao ha nada para se fazer, caso vc nao tenha carro. e ha pouquissimo caso vc o tenha. assim, minhas distracoes se resumimem a ficar dentro de casa, lendo e escutando musica.

retirei dois paragrafos de um dos livros que estou lendo. achei interessante. nao irei destrincha-los. acho que sao auto-explicativos.

"coleridge observa que todos os homens nascem aristotelicos ou platonicos. os ultimos sentem que as classes, as ordens e os generos sao realidade; os primeiros que sao generalizacoes; para estes a linguagem nao passa de um aproximativo jogo de simbolos; para aqueles eh o mapa do universo. o platonico sabe que o universo eh de certo modo um cosmos, uma ordem; essa ordem, para o aristotelico pode ser um erro ou uma ficcao de nosso conhecimento parcial. atraves das latitudes e das epocas, os dois antagonistas trocam de dialeto e de nome: um eh parmenides, platao, spinoza, kant, francis bradley; o outro, heraclito, aristoteles, locke, hume, william james"

borges, o rouxinol de keats, outras inquisicoes.

"wells, inacreditavelmente, nao eh nazista. inacreditavelmente porque quase todos os meus conteporaneos o sao, por mais que o neguem ou ignorem. desde 1925, nao ha publicista que nao opinie que o fato inevitavel e trivial de ter nascido em um determinado pais e de pertencer a tal raca ( ou a tal mescla de racas) nao seja um privilegio singular e um talisma suficiente. vindicacoes da democracia, que se julgam muito diferentes de goebbels, instam seus leitores no mesmo dialeto do inimigo, a escutar o palpitar de um coracao que recolhe os intimos mandados do sangue e da terra. lembro-me de certas discussoes indecifraveis, durante a guerra civil espanhola. uns declaravam-se republicanos; outros nacionalista; outros marxistas; todos, com um lexico de gauleiter; falavam em raca e povo. ate os homens da foice e do martelo revelavam-se fascistas... tambem recordo com certo estupor uma assembleia convocada em repudio ao anti-semitismo. ha varias razoes para que eu nao seja um anti-semita; a principal eh esta: a diferenca entre judeus e nao-judeus parece-me, em geral, insignificante, `as vezes ilusoria, ou imperceptivel. ninguem, naquele dia, quis compartilhar minha opiniao; todos juraram que um judeu-alemao difere enormemente de um alemao. em vao lembrei-lhes que nao outroa coisa diz adolf hitler; em vao insinuei que uma assembleia contra o racismo nao deveria tolerar a doutrina de uma raca eleita; em vao citei a sabia declaracao de mark twain: "eu nao me pergunto de que raca eh um homem; basta que seja um ser humano ninguem pode ser nada pior" (the man that corrupted hadley burg, p. 204)."

Borges, dois livros, outras inquisicoes.
o que colocarei aqui embaixo, foi produzido em papel, a punho, por uma necessidade absurda de fazer tatil e de transformar em realidade a minha memoria. provavelmente parecera bobo (e sem nenhum acento). mas era urgente. e nas emergencias, relevamos um pouco a qualidade dos escritos.
como percebivel, estou sem acentos, por causa dos teclados americanos. como perceptivel, estou em terras confederadas, no sul da america do norte. nada, ou quase nada - porque temos sao paulo e nova iguacu - eh pior. enfim.

algo como uma resenha.

ontem, ao ler o quarto conto de "dublinenses", senti pela primeira vez a fisgada do genio que da ali, atras das costelas, entre a terceira e a segunda.

os primeiros eram de uma brandura que deixavam os olhos correrem e a memoria incolume. apesar de de ja faiscarem com lampejos das tintas dos grandes autores.

(talvez, devesse ter dado maior atencao `a orelha do livro que denuncia que joyce apenas cronicou, sem muita necessidade de exemplificar um inicio, meio, fim)

o primeiro, por exemplo. "as irmas" narra a morte e o funeral de uma paroco catolico do bairro. o conto so demonstra sua razao nas utlimas paginas quando as irmas (freiras e amigas do morto) conversam sobre o falecido. no inicio, declaram todas a admiracao, todo o respeito que possuiam, e como o padre era importante. com o tempo, a conversa descamba para a crueldade, citando morbidamente a fase final da vida do padre, com seus tiques e trejeitos. como se dissesse que na superficie todos mantemos uma capa de animosidade, entretanto ao aprofundarmo-nos dentro de cada alma, o que encontramos nao e nada bonito de se ver.

o segundo conto tambem tem no seu fim o seu porqu^e. tres garotos em idade escolar programam-se para gazetear por um dia. um deles falta e os outros dois andam a esmo por dublin ate que encontram um personagem para la de esquisito. o sujeito e a graca de toda a historia. assim como "as irmas", este sujeito apresenta-se bifacial, porem com visoes muito mais antagonicas e conservadoras que no conto anterior.

o terceiro e' uma pequenina historias ja bastante conhecida. uma garoto, para impressionar uma menina, promete um presente. porem, para consegui-lo, ele necessita do dinheiro do pai que, obviamente, implica o maximo possivel e o impede de atingir sua meta original. a fraqueza deste cointo pode ser exemplificadas pelas belissimas ultimas frases que nao a salvam do lugar-comum: "fitando a escuridao, eu me vi como uma criatura tangida e ludibriada por quimeras. meus olhos queimavam de angustia e odio".

ja o quarto mostra uma menina de dezenove anos dividida entre a sua chance de felicidade (fugir com o namorado marinheiro que aparentemente gosta dela para a argentina) e a obrigacao (ficar em dublin para cumprir uma promessa de cuidar do pai velho e doente que bate nela). apesar de sua extrema infelicidade na irlanda, evelyn - o titulo do conto - se sente culpada por abandonar o pai. apesar deste a maltratar, ela consegue, com um esforco anormal, recordar-se de boas lembrancas, de cenas felizes entre os dois. opta, em detrimento do namorado, ficar e cuidar do pai. a culpa vence a felicidade, ou altruismo vence o individualismo. depende do otimismo de cada leitor.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2003

Porta

Uma fina porta de madeira nos separa. Não toquei a campainha nem tocarei; mesmo assim, ela sabe que eu estou aqui estancado. O máximo que me permito é massagear a maçaneta, ou alisar o comprimento da porta ou sentir o cheiro do verniz. Ela – acredito – faz semelhante.

Se me perguntarem como cheguei aqui, é improvável a certeza. Estou sem norte há três dias, posso jurar sobre bíblias. Desde exatamente quando ela me disse que não poderia vir comigo. O porquê não importa, se foi algo fora das nossas órbitas, algo que é impronunciável, ou que não respeita vontades ou desejos, o que isso vale a pena? A certeza é única e presente e tátil como essa porta aqui.

Desde então ela distanciou-se e em apenas alguns fragmentos de segundos que estivesse ao seu lado, fui grosseiro e egoísta. Não necessariamente por pretensão, apenas porque achava que era o certo ser como fui e agora acho que não era. Ela abriu a porta por instantes, para me ver, para que eu apoiasse sua cabeça e ela chorasse até secar suas águas e eu decidi ir ali na esquina, rapidinho, só vou comprar dois maços de cigarros e volto. Encontrei a porta fechada e eu estou aqui, do lado de fora e só.

Se fosse apenas isso, sei o certo que ela com o tempo entenderia que pequenas situações são passageiras e todo o qualquer que temos certeza um do outro é melhor, para não repetir o maior. Parece que consegui vê-la de relance, num momento de alta concentração, mas ela não mais quer saber que eu existo nesse exato instante. Quer dormir e acordar com uma lembrança.

Toda vez que sua imaginação trai seu raciocínio e fornece minha imagem para ocupar o tempo que temos para gastar até acabar nosso prazo de validade, ela desaba e não pára de desabar até que eu finja que já não existo há décadas e tudo o que ela sonhou nesse ínfimo espaço de tempo anterior faz parte de um lamaçal profundo que não deve ser revirado. Não agora.

Agora estou sentado no chão, jurava (poderia) que ela iria abrir a porta. A surpresa foi quando ela passou um papel por baixo da porta com delicadas três palavras escritas em sua letra infantil: “Espera por mim”.

sábado, 13 de dezembro de 2003

(Espaço em branco)

e - agora - você - me - diz

conversa comigo
eu calo sozinho
para escutar a tristeza tocar lá no fundo
e ecoar.
ou sorrio e rio
para limpar as vermelhas dos seus olhos.

nada sei sobre três meses
com a face do dado na vertical
nada a saber porque não há.

mesmo com a luz apagada
mesmo desligado
sinto falta
e incapaz de dizer qualquer coisa.

volto, eu juro,
com minhas pernas, rosto, boca
intáctil.
volto, eu juro
volto para e por.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2003

Cálice

O lugar não era um qualquer. Se o comparássemos com a nossa realidade, de maneira longe da que aprendemos em antropologia, atestaríamos, sem muita dó, que era atrasado. Entretanto, não sou partidário de tais resoluções finais; principalmente porque podemos sentir que muitas vezes nós, os “evoluídos”, buscamos nesses povos bárbaros as imagens que faltam na nossa pasteurização. E chego até a invejá-los quando produzem artistas –provavelmente nem recebem essa divina alcunha – sem respeito por regras e classicismos; enraizando-se ora numa linguagem, numa estética, e no instante seguinte numa oposta, que renega, que desdiz completamente a anterior, sem para isso ter nenhum peso, nem imaginar que deveria se culpar, por nossos padrões.

Esse era o lugar; povo de pés nos chãos, punhos fortes, colares pelo corpo, regras rígidas. O diário deles é desnecessário detalhar. Basta sugerir que grande parte de suas preocupações era obter alimento: caça, pesca e um pouco de plantio. Dentre estes não havia nenhum domador de encantos sobre-humanos. Mesmo assim, de noites em noites (apenas pela sugestão da coincidência, com luas novas no céu), reuniam-se na oca central e a maior para tomar uma beberagem de ingredientes desconhecidos por qualquer um, apenas o mais velho e o segundo mais velho a conheciam, e esperavam que os antepassados se comunicassem com eles. Exatamente igual ao clichê desse tipo de história.

Como a grande maioria das sociedades desconhecidas, era sexista e gerontocrata. Nessa reunião, apenas homens (nunca crianças, nunca garotos) podiam se sentar em roda, ficar em silêncio à espera da espécie de cantil e do espírito subseqüente. Nunca se soube de alguém que não fizesse contato. Em poucas horas, todos saltitavam desordenadamente, urros desconexos vazavam e as sombras e silhuetas eram visíveis até nas mais nubladas noites.

As mulheres, sabidamente mais sensatas, ficavam todas juntas, se divertindo com histórias umas das outras, com segredos dos maridos, e detalhes dos filhos. Os pequenos, até quando se sentissem pequenos, juntavam-se às mães; depois exigiam conviver com os adultos.

Então, montavam a cerimônia de passagem para a vida adulta. Hipócrita e ilusionista como a grande maioria das que conhecemos; mas também inofensiva para todo o grupo. “E essencial”, diziam os de cabelos mais grisalhos. Consistia – simplistamente – em oferecer os primeiros goles para os novatos. Enquanto não se alterassem, ninguém mais tomava a infusão.

E foi assim durante anos, milênios – nunca possível confirmar. O cotidiano não passava o tempo; histórias se repetiam por todo o sempre, como nomes e números sorteados aleatoriamente. Às vezes chovia, outras se ensolarava. Havia dias quentes e outros mornos. Filhos primaveravam, veraneavam e outonavam. Todos com o mesmo desenho de nariz, distância de um olho ao outro, cor da palma da mão.

Contudo – e o que faz a roda da fortuna girar são as adversativas, aquelas previsíveis que povoam qualquer narrativa, pois senão bastaria tirar fotos dos mesmos pontos cardinais no exato e igual instante durante toda a existência – houve uma oportunidade em que as previsões se enganaram.

Nada o qualificava de maneira diferente dos demais. Nem sua genealogia, nem seu proto-comportamento, nem suas argüições, muito menos suas respostas. Entre todos os que os nativos suspeitavam ter o mesmo tempo de vida, ele apenas figurava. Nem de perto era o mais forte, ou o que se destacava na caça. Asseguro que se não fosse por esse pequeno lapso de comportamento, nunca nem saberíamos quem ele era.

Todos os seus colegas resolveram – como era costume – ingressar juntos na oca matriz. Conforme o tradicional, levaram seus pedidos antes do início de uma das sessões e esperaram cerca de um mês, mesmo que ninguém contasse o tempo, até a próxima lua nova se revelar no céu, para que os adultos aprovassem seus nomes. Já houve raros nomes rechaçados por motivos nunca revelados, para logo depois (duas, quatro, vinte luas?) serem aceitos. Todos da aldeia ou são ou serão adultos, exceções não há.

No tal dia, fila formada antecipando-se à entrada da reunião, tudo perfeitamente dentro do planificado, nenhum nome com ressalva, adentram. A oca, igual a qualquer outra, apenas com dimensões superlativas, não merece descrições detalhadas. Todos os quatro garotos sentam-se na roda, onde os mais recentes situam-se. Aquele que está no grupo há mais tempo, levanta-se apoiado no cajado enrugado de madeira e traz o cálice e o oferece para os meninos. A voz embargada explica que pode demorar alguns minutos, não há motivo para receio, qualquer gota já é o suficiente.

De mão em mão passa a taça como um cachimbo até chegar nas dele. Há menos de um dedo do líquido que seria transparente se não fosse tão verde; ele levanta o sobrolho, o ancião sorri como uma estátua plantada ali com esse intuito, sua mão o encoraja e ele vira e se esbalda. Todos os presentes animam-se e conversam entre si, em poucos instantes, diferentemente do que ele acreditava, já tomavam também a infusão.

Não demora nada e um dos garotos se levanta e começa a dançar ao som de uma música ausente. Os mais velhos se congratulam e os sorrisos imperam. Não demora quase nada e mais outro repete quase as mesmas atitudes; os rostos rasgados e antigos felicitam cada vez mais. O terceiro levanta-se assim que o outro pula pela primeira vez e vai atrás de todos.

Ele, o nosso protagonista, sente-se exótico. Exatamente porque não tem nenhuma vontade de pular, não percebe nada dentro dele diferente; não sentira nenhum gosto além de água com matos amassados, e fica angustiado porque escutou nenhum ancestral pedindo que também levantasse e se comportasse anormalmente. E nesse tempo que ele se analisou, todos os olhos, num misto de interrogações e imposições, voltaram-se para ele e até que ele teve um impulso de se levantar; o que o impediu foi uma necessidade de ser real, de se ater à verdade e de fugir do engano. Assim, permaneceu sentado. O que talvez tenha sido o seu maior erro.

Um dos mais antigos, esquecido que também infringira uma das básicas regras desses eventos ao se embebedar antes que todos se manifestassem, levantou-se e o pressionou com palavras contra a parede que apoiava suas costas. Ele respondeu que seus sentimentos eram os mesmos, não cambiaram nem em gramas; uma voz que ele não identificou (tentavam sobrepor-se umas às outras), mas que o apaziguou por segundos, afirmou que essa era a vontade dos ancestrais. E outra disse que fora errado aceitar o menino, ele ainda não estava preparado, outro pedia que ele fosse exilado, outro que não saísse dali antes de contatar-se. As vozes eram todas e ao mesmo tempo.

Nessa noite, os ancestrais não apareceram para mais que os três recém homens, e ninguém se apercebeu no momento. Pela voz do consenso e do centro distante dos radicais, deixaram-no permanecer na aldeia desde que não confidenciasse exatamente o que acontecia no interior daquela palhoça (como se todas não soubessem). O intuito era fazer com que ele se auto-exilasse, por tamanha vergonha proporcionada aos demais companheiros. Assim que ele preparado estivesse para escutar os espíritos dos ancestrais, novamente deveria pedir audiência e outra vez o julgariam, exatamente como um garoto que era o que ele era.

Contudo, ele não mais se interessou em transformar-se em adulto. Nunca precisou dar um motivo para isso. Pela primeira vez havia um pária, um habitante do submundo; aquele que todos são aconselhados a evitar. Ele não resolveu sair logo de início, porque pensara que as discriminações eram momentâneas. O que, depois de outras milhares de luas de todos os gostos e sabores, percebeu ser eterno. Para todos os aldeões, ele simplesmente não existia, nunca existiu e nunca se soube dele. Pior que um morto que temos saudade, ou um exilado que pode remeter a lembranças e incitar a uma espécie de mártir, ele fora apagado, como fazemos com borrachas e erros nos cadernos infantis.

Nas reuniões seguintes, o que era impensado há algumas semanas atrás, começa a acontecer com freqüência. Alguns moderados não mais conseguem se conectar com os espíritos dos antigos. Apesar de diversas afirmações de que a receita continuava a mesma, não mais fazia sentido. No início, apenas se excluíam num canto e observavam toda a loucura que se apoderava dos demais; com o passar, decidiram não mais freqüentar as reuniões, pois eram ineficientes.

Nosso protagonista não presenciou as primeiras disputas entre territórios. Tinha juntado malas e coragem para um outro lugar para viver e nunca mais foi visto por aqueles rincões. Os primeiros desentendimentos logo se avolumaram e em poucas luas, a vila estava mapeada ao meio e depois em cinco pedaços. Cada um com o intuito de ser maior e melhor.

Não se conhece o final dessa história. Apenas que tal civilização, como a conhecíamos, desapareceu sem deixar muitos vestígios. Um ou outro pedaço de memória carcomida pelo tempo.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2003

vícios

o mais curioso sobre a insegurança
é que ela vicia.

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Amarram-me os olhos
com vendas cegas
dentro de um avião blackout
abrem a portiola e

Depositam-me mãos
ambas em minhas costas
- o vento zunindo lá fora -
e, só, empurram.

Isolo-me sozinho
no meio de coisa alguma
inconsciente sobre minha rota
com uma certeza apenas

Restam-me incontados
poucos instântaneos
congelados e derretendo
com o solo aumentando de tamanho.

terça-feira, 2 de dezembro de 2003

O homem que escolheu escrever tudo para todos.

Não, não é importante apresentá-los. O que vale saber é que ele – quem quer que seja – se propôs a um destino absurdo, irreal. Talvez incentivado por um ou outro filósofo ainda na adolescência (entre dois chopes, provavelmente), ou numa leitura descuidada de algum autor mais ou menos relevante. Resignou-se em casa e repetiu para si mesmo durante dias para ver se acreditava – coisa complicada: deveria escrever algo que fosse tudo para todos. Exatamente isso, sem exagero ou ataques falsos de modéstia. Ignorou que vivemos fragmentados ora em ruas, ruelas, ora em avenidas e até mesmo em rodovias, e gritou a plenos pulmões de fronte colada num espelho que iria escrever essa mensagem.

Não, não deveria ser nada religioso, pois considerava a religião apenas um dos aspectos de sua narração. Começou a enumerar critérios para sua missão e podemos copiá-los aqui. Ele anota: “devo ser interpretado pelo leigo e pelo cristo. Pelo que perdoa e pelo que fala. Pelo velho e pelo mendigo. Devo corresponder a verdade para a mulher e para aquele ali que enxergo dessa sacada. Para o transeunte e o paciente. Devo ser indispensável para o crente e para o pobre, devo ser a voz para o conhecido e para a pedra no caminho, devo...”.

Não, ele não se iludia em atingir todas essas propostas. Ele tinha a certeza; mais dura que pedras de gelo do norte do Canadá. Para o leitor mais acostumado com as ditas realidades cotidianas, que até agora acha que esse sujeito é louco (só e apenas), podemos confidenciar, já que não mudará o desenrolar de coisa alguma, que o sujeito dessa história não produzia nada para ninguém. Rolava de um lado para outro na cama com esse teorema afixado, que o espetava atrás dos olhos e dos ouvidos de cinco em cinco segundos, como se fosse um pequeno alfinete.

Não havia um pingo de escrota pretensão por trás dessa absurda idéia. Ele pensava em submergir tão profundamente dentro de si mesmo, como num transe, como um mergulhador de campos de petróleo, onde nenhum outro espírito jamais pisou e apenas descrever em altas e boas letras o que ele via e sentia. Queria fundir-se com todas as verdades e se transformar na única, isolada, solitária. O porquê de ser ele, e não outrem, não me pergunte, não faço a mínima, assim como você. Talvez, como citado parágrafos atrás, por (más) influências. Mas, quem escuta e não se empolga a fazer algo que não quer fazer, apenas porque naquela hora parece que é o sentido absoluto?

Não aparecerá ninguém para responder, tenho certeza. Fora alguns idiossincráticos, ou apegados em dogmas, os que não se incluem como pessoas físicas e mutantes. E, no caso específico dele, nada o impedia de se alvitrar o absurdo. Sentiu como numa obrigação, queria porque era esse o seu porto final. Recusaria todas as facilidades, queria rasgar a carne e deixar transbordar o sangue vermelho e viscoso, enxergar a única novidade, ou aquilo que abarcaria todas as outras, anunciadas como novas pela indústria publicitária que nos envolve desde o mais íntimo umbigo.

Não pense que ele desistiu logo no início. Pelo contrário, se fosse essa a minha intenção, poderia descrever o seu respirar depois de cada retorno à superfície. Entretanto, eles não diferiam muitos uns dos outros. Colecionou uma galeria de resultados inoperantes e de teses absurdas e nati-mortas. Litros de soluções atiradas literalmente ao léu. No início, e então poderemos presenciar seu improvável único erro crasso de cálculos, tendeu a escrever um grande romance. Setecentas páginas, esse era o número que circundava sua cabeça como um astro menor em torno de sua estrela de predileção. “Lembrai dos clássicos”, repetia sozinho.

Não passou de poucas palavras – como era dispensável dizer. De maneira mais que óbvia, ao reler seus rabiscos mal datilografados – pois era péssimo com máquinas – enxergou suas diferenças e defeitos que pulavam como milho de pipoca. Ele desenvolveu uma técnica, uma razão, para poder comparar e saber a eficácia de seus produtos. Fazia perguntas aleatórias para o papel e procurava respostas diretas, que não envolvesse nenhuma linguagem figurada. Nada. Não conseguiu nem uma quinta parte das respostas de maneira satisfatória. Foi então que ele adentrou o portão da literatura.

Não que ele também não tencionasse a isso: desde sempre a desejou quão um sedento do deserto a um copo, um único jarro de água doce. No entanto, para abarcar a todos os per ambulantes, como era esse seu deus torto e capenga, subestimou os corações de grande parte dos leitores. Percebeu nesse milésimo instante – já devia ter próximo dos quarenta anos – que se ele escrevesse tudo para todos, não haveria uma só alma penada que não entendesse, pois seria mais transparente que o ar do campo. Mesmo aqueles desacostumados em tratar com as letras, ou aqueles que não tiveram essa opção e (na opinião de alguns) privilégio.

Não, ele não retornou à loucura de escrever milhares de páginas. Resignou-se a uma pequena novela. “Cento e poucas páginas”, podia ecoar em sua casa de paredes brancas e desnudas. Se informo agora sobre seu habitat, o faço para aqueles que ainda não crêem numa existência longe da ideal. Retratava seu desespero frente ao inevitável, à sua total incapacidade de escrever uma pequena história (talvez com “h” maiúsculo) que não sofresse de esquizofrenia.

Não havia a menor possibilidade de escrever tal narrativa na qual embarcassem gamas das mais complexas e contrapontos das mais absurdas distâncias em muitas páginas. E cento e poucas páginas se transformaram num réquiem incessante; mesmo se ele se concentrasse além do normal. E percebeu que início meio e fim também não seriam suficientes – mesmo implorando para uma musa inspiradora qualquer. E ele resolveu sossegar, pois já era noite e estava cansado.

Não pense você, senhor leitor (mesmo que eu duvide que o haja), que eu fui literal; pelo contrário, fui literário. Ele, nosso protagonista, já está velho aqui, ao final da segunda página. Posso afirmar para cada um de vocês que a vida dele não está condensada aqui, está por inteiro. Como tantos outros personagens reais oriundos das imaginações de outros autores (estes sim, com relevância para que seja indispensável que o leiam), este não viveu muito além desta página.

Não há nenhum problema em adiantar o final dessa vida. Porque sabemos, uns desejosos, uns desprezando, outros mortos de medo, que sempre atingimos a mesma meta, uma hora ou outra. E foi exatamente então, já com setenta e alguns anos, que ele se perdeu e se achou no mundo da poesia. Pela primeira vez em sua curta vida tinha um assunto que seria comum, para todos, seria a verdade para todos.

“Não, não seria justo para aqueles pequenos”, e retornou ao marco inicial; com certeza por um julgamento pessoal e intransferível. Tinha tudo e agora não tem nada. Bastava que elucidasse, ele, que vivera tanto dentro de si, que tinha todos os mecanismos para se autodescobrir, o que era o final da vida, o que passa na frente de suas lentes oculares no ínfimo entre o tudo e o nada. Mas não, não, tem-se que fazer um juízo de valor; foi contrário a uma dica que dizia não ser possível ao criador ter moral sobre sua própria obra.

Não seguiu adiante o episódio da poesia. Por motivos diversos que podem ser resumidos, sem querer por isso, abarcar o real pretexto; ele ficou com receio de lembrar do episódio das crianças, tão a contra-ponto de sua vida que visivelmente findava-se.

Não tentou outras formas de literatura, apesar de freqüentar todas conhecidas até o presente momento muito bem. Decidiu cuspir palavras no papel higiênico que ficava em cima da mesa de madeira de lei na sua cabeceira. Assim, como acontecera no início dos tempos, pensou em neologizar, na maneira alemã; mas seu tempo escoava e cobrava-lhe impostos severos, e então preferiu exigir menos de si. Optou por palavras longas, depois palavras de significado obscuros, de cores estranhas, de gostos adocicados e chegou a apenas a duas e duvidou:

Não e sim. Já era o último dia para a sua morte e ele sabia, e todos sabiam e todos sabem agora. Ele tinha que decidir entre as duas mais importantes, àquelas que guiaram sua vivência, como um jóquei faz com um alazão. Um lado ou outro, sem muro para separar, antagonismos explícitos e embaçados quão um boxe de banheiro depois de uma ducha fervendo. Os limites se entrelaçavam exatamente e ele segurava a caneta logo acima do papel para que pudesse escrever o seu último suspiro, a que todos desejam, ao definitivo, ao supremo, e nada. Silêncio, branco, nenhuma palavra foi dita, escrita, ou mesmo copiada. O papel pareceu intocado como sempre foi e sempre será. O homem que se propôs a escrever tudo para todos, decidiu esperar a escolher.
num estalo silêncioso, descobri que talvez o prazo de validade seja a única coisa que dê sentido para todo o resto. porque, por estragarmo-nos, relevamos aquilo que não é realmente importante. e procurando, estaremos, algo com mais profundidade, e que queira dizer mais e melhor.

claro, subjetivismos à parte.

assim, escrevi esse troço (pseudo)neo-concreto num papel, porque não tinha pc debaixo das digitais:

Prazo de validade

o prazo de validade
do homem - do amén - do também
da união - da decisão - da comunhão
da amizade - da idade - da cidade
da vida - da lida - da querida
da dor
do amor
do sabor
da textura
da finura
da pura
da cura
da jura
Se tivéssemos uma bula
seria fácil
- x -

a carne nasce, avermelha-se, apodrece e se joga fora.
o fim releva
nublina o meio
a certeza da não eternidade
dá um sentido
mas e o eterno instante? se repete
complicando os cálculos e as deduções
a eternidade não tem prazo
porém validade

sábado, 29 de novembro de 2003

O menino, o homem.

Podia-se criar uma introdução mirabolante descrevendo climas e condições, podia-se detalhar a biografia das protagonistas, suas pretensões, linhagens genéticas e hereditárias; o fato é que Márcia e Sara viajavam nas suas férias rumo ao nordeste. É de bom tom dizer que se conheceram no trabalho, moravam em São Paulo e pertenciam ao gênero descoladas impulsivas aventureiras. Em novembro passado decidiram encarar a estrada pelo litoral brasileiro até o Ceará, parando em praias que chamassem a atenção, sem nenhum critério além da vontade pessoal instantânea. Hospedariam-se onde conseguissem e se alimentariam do que fosse possível. Queriam que esse período fosse inesquecível, mas nem nos melhores (ou piores, depende de quem o lê) devaneios poderiam supor o que aconteceu.

Sem muitos mais rípios – estes, porém, de caráter indispensável para o entendimento de todo o contexto – é melhor transportar nossas protagonistas para a cena onde toda a ação passa. Poderia tentar descrever a estrada com dezenas de impressionantes pores-do-sol, ou praias memoráveis de areias com variadas cores indo do branco cristal até o marrom cinzento, ou figuras típicas da beira de estrada, como andarilhos, donos de bares, ou frentistas, mas creio que as palavras perderiam em quase todas as classes para uma simples imagem, caso a tivesse. As descrições se apequenam e se perdem em resumos explicativos dispensáveis. Peço para o leitor, caso o haja, que imagine tais cenas da mais pertinente beleza e talvez consiga alcançá-las pelo caminho delas. Tentarei me ater aos fatos principais da narrativa.

Márcia e Sara pararam numa cidade ao norte do Espírito Santo, ou ao sul da Bahia, ninguém ali pôde informá-las com precisão, e elas não estavam realmente preocupadas nisso. Queriam apenas situar-se numa longitude para calcular suas previsões e a volta, já que tinham que estar no concreto e na fumaça e em ambientes fechados num mês. Rapidamente Márcia, que era a mais simpática, conseguiu quarto dentro de uma casa de pescadores para elas passarem a noite e decidiram dar uma volta pela cidade, mesmo que aparentemente não houvesse nada empolgante para as duas. Pararam num bar sem muros e de pés no calcário onde se sentia o cheiro característico da maresia indo e voltando de acordo com a lógica dos ventos. Poucas pessoas compunham a cena – na maioria pescadores em grupos ou com suas mulheres. Era, por assim dizer, um ambiente pouco familiar. Elas sentaram-se num extenso banco de madeira que combinava com a mesa onde seus cotovelos descansaram. Uma senhora gorda se aproximou e Sara pediu cerveja, no que Márcia sugeriu tomar algo mais forte, já que elas estavam de férias não precisavam se controlar; sugestão essa que foi seguramente aceita por Sara que solicitou então duas caipirinhas. A senhora gorda se afastou e foi apenas nesse momento que Márcia e Sara enxergaram os seus arredores. Márcia viu a praia, a pouca vegetação rasteira em cima dos pequenos montes laterais, as ondas abafadas pela ausência de luz, escutou as espumas se esvaecendo e voltando, depois olhou para as outras mesas e encontrou Sara fixamente parada numa específica, onde um garoto, um homem, provavelmente da idade delas (algo próximo pode-se sugerir), moreno, com o rosto coberto de uma pelugem grossa, negra e esporádica, solitariamente sentava. Márcia cutucou Sara no momento que chegava as caipirinhas, mas Sara nem se moveu; tinha se impressionado com aquele menino, com aquele homem sozinho acompanhado de uma garrafa de caninha e um copo americano.

Márcia já rememorava em voz perfeitamente audível algumas das passagens que ambas tinham presenciado, pois vocês sabem, a alegria existe em grande parte porque é compartilhada. Assim sente-se orgulho do feito que provavelmente você não se supunha capaz. Ou, na presença de estranhos, ou daqueles que não estiveram presentes no seu feito, é necessário provocar um pouco de inveja para que você se sinta confiante e uma pitada superior aos outros. O curioso é que Sara não prestava nenhuma atenção em Márcia. Seus olhos, ouvidos, nariz, pele, língua tinha dono naquele momento e é simplíssimo descobrir quem é. Com os olhos tracejados de linhas vermelhas e silenciosa como quase sempre, Sara se levantou surpreendendo Márcia e quem mais estivesse ali com as duas – se houvesse – e caminhou suavemente na direção do menino, do homem. Márcia parou a frase no meio de uma palavra cortada pela garganta e esperou o fim daquele ato impulsivo da amiga. Sara parou em frente ao garoto, ao homem, e o cumprimentou; ele levantou a cabeça quieto, Sara sorriu e perguntou se podia sentar, ele autorizou, já com a cabeça baixa. Ela montou no banco como se o fizesse numa égua corpulenta e apoiou ambos os braços sobre a mesa segurando o queixo, nitidamente silenciosa, com óbvia comunicação. O rapaz, o homem, era extremamente bonito, ela não conseguia parar de pensar nisso e começou a fazer notas mentais para poder lembrar em outro dia: tem os olhos negros, a pele curtida do sol, o cabelo desgrenhados que combinava em cor com os olhos, as roupas já esfarrapadas e um corpo musculoso. O rapaz, o homem, parecia que não se importava muito com a aparência, e talvez tenha sido isso que alimentou a vontade de Sara de estar ali. “Talvez” porque nunca o saberemos, provavelmente nem a própria saiba o motivo exato dela ter tomado aquela atitude; é sabido a total ineficiência da decodificação de atitudes impensáveis.

Sara reparou em suas mãos e tentou criar em imagens qual seria o trabalho dele para poder possuir tamanhos calos e nessa hora fez essa pergunta de maneira direta, antes mesmo de sugerir seu nome. Com sua resposta curta (“Pescador”), ela se recompôs e esticou a mão direita para apertar a dele e só agora se apresentou. O toque com a mão dele foi tão rápido quanto as outras respostas de Jonas – este era o seu nome – porém, para Sara, bem, para Sara, acredito que nem é necessário descrever o que Sara sentiu ao segurar sua mão. Se for desejável, podemos sugerir que ela sentiu um vento ligeiro e gelado passar por suas entranhas mais profundas que a fez arrepiar. Jonas virava a cachaça como um menino ao beber água, como um homem de anos acostumado com a rotina de águas ardentes. Sem nenhuma explicação – e não serei eu ou você que conseguirá encontrar alguma, mesmo porque há a probabilidade concreta desta não existir de maneira como estamos acostumados – Jonas simplesmente falou. Estavam os dois há milênios parados, Sara sem perceber o tempo, Jonas nitidamente incomodado com aquela mulher ali em sua frente, e Jonas começa a falar. Primeiro diz que não gosta do lugar onde estavam. Não conhecia ninguém ali, mas preferia este bar ao outro porque assim poderia ficar sozinho. Exatamente o que ele queria, não ver nenhuma cara – palavras dele – conhecida. Sara pôde agora olhar fixamente dentro dos glóbulos oculares quase mergulhando neles e foi perceptível quando ela deu uma suspirada profunda e ficou praticamente em transe com o menino, com o homem a sua frente.

“Ta vendo isso aqui”, disse Jonas ao apontar para uma cicatriz profunda e recente na bochecha direita, “foi da última vez que encontrei com o Manel e os outros”. Sara não conteve sua imaginação e foi parar na cena que Jonas descrevia. Avistou o menino, o homem com os punhos erguidos e distribuindo socos por entre homens quando é atingido por uma facada traiçoeira no rosto. O que é válido ressaltar é que Jonas ainda não começara sua descrição. O menino, o homem não chegou a parar de falar, entretanto, como bem sabemos, a velocidade do que queremos enxergar para aquilo que realmente é, difere e muito. Assim Jonas falava: “Manel começou a me chamar de florzinha, de fresco e eu disse ‘Manel pára com isso ou eu’, e ele perguntou: ‘Ou você o que?’, e foi então que eu peguei a faca na mão...” – Sara não se agüentava, metade explodia, metade morria a medida que a narração se incrementava – “e apontei para ele assim”. Jonas empunhava o americano com um dedo de branquinha dentro e olhou para o horizonte e em seguida aquietou-se. Não falava com Sara, falava com o espaço vazio, falava com o que estivesse na sua frente. Ele voltou-se diretamente para Sara que já duvidava de sua própria existência terrena e sussurrou num tom próximo do inaudível: “Eles dizem que eu sou flozô porque eu não gosto das coisas que eles gostam, porque eu sou diferente” e nessa hora Sara rodopiou o rosto procurando comparações e anotou os outros pescadores, gordos, barulhentos, nojentos. Sentiu proporcionalmente uma ojeriza por todos e uma quentura sem tamanho por Jonas que subiu debaixo e atrás do estômago até o peito e a garganta e não conteve o sorriso para o menino, para o homem. Era nítido – na falta de palavra melhor – que ele não era daquele tempo físico, bastava sentir sua aura por frações e compará-la. Sara teve a mais absoluta das certezas que já tivera em todos os seus vinte e cinco anos de existência que Jonas era a criatura mais bela que encontrara, nada poderia se aproximar dele. Criteriosa como ela era, e para não fazer nenhuma injustiça consigo mesma, procurou, em vão, alguma outra forma que lhe proporcionasse tamanho prazer. Jonas era tudo o que ela sentia com todos os seus sentidos. Jonas, apesar de não parecer, continuava a falar: “E foi então que eu me rasguei”, e quebrou o americano em cima da mesa. O sangue borbulhava e Sara levantou-se para socorrê-lo. Jonas imóvel estava, imóvel continuou por alguns instantes, enquanto ela pegou um pano, de não sei onde, e tentou estancar o líquido vermelho. Ao seu lado, Jonas sentiu o seio esquerdo de Sara tocar-lhe as costas e não conseguiu – apesar das insistentes tentativas – ficar impassível. Agarrou todo o corpo de Sara e fê-la sentar em seu colo, calando-a com sua boca (no caso dela ter a intenção de reclamar, algo que sabemos, nem passava perto dela).

Márcia dormiu sozinha na cabana. Nem é necessário contar que Sara acompanharia o menino, o homem até onde quer que ele a levasse. Jonas era extremamente nervoso, apesar da vasta quantidade de fêmeas que já tivera, e resvalava na grosseria dentre quatro paredes. Sara, em determinado momento, enquanto estava por cima, parou todo o movimento do companheiro, abaixou-se e cochichou, entremeados por carícias, uma única palavra que fez toda a diferença para Jonas: “Calma”. Não que ela preferisse uma ou outra tática; por isso mesmo, certamente – por não ter nenhuma preferência – ela queria que Jonas fosse o pescador e também fosse um lorde, ela queria que ele se adaptasse a qualquer variação do jogo.

Não se sabe ao certo se esse detalhe tenha acontecido exatamente na primeira noite em que passaram juntos. Eu apostaria que não, já que as indicações não apresentam um menino, um homem que desse algum tipo de confiança maior para sua mulher logo ao conhecê-la. O certo é que Sara ficou um tempo acima do esperado neste vilarejo e nós bem sabemos disso.

Um dia, uma noite, uma manhã, quiçá a mesma, Jonas estava ainda nu e sentado na beira da cama que dividiam e, novamente sem nenhuma explicação, se virou para Sara e abriu-lhe mais um segrego. Confidenciou, de costas para Sara, que ela era diferente de todas as outras. Já tinha conhecido muitas, todas as do lugar – sem nenhum traço de exagero aqui – elas sempre preferiam Jonas aos maridos e namorados, e eles não suspeitavam de nada. Porém, “elas aparecem, deitam na cama, depois que acabam, se levantam e vão embora”, como ele mesmo disse. Jonas tapou o próprio rosto e por um segundo ou dois, Sara poderia jurar que ele chorava. Depois não teve tanta certeza, Jonas voltou com raiva, levantou uma mão para Sara e a estancou no ar. Sara não se mexera. Jonas paralisou-se, congelado pela coragem que transbordava de sua mulher. Ele se levantou da cama e saiu batendo a porta.

Então, numa conversa que tiveram Sara e Márcia, aquela se lembrou quem era e o que fazia ali. Ficou um pouco constrangida, por estar tanto tempo presa num vilarejo, desperdiçando (foi a expressão que ela utilizou) suas únicas férias no ano. Nessa mesma tarde, deixaram todo o dinheiro equivalente ao quarto em cima de uma prosaica mesa de cabeceira e mais um pouco e não foi mais possível encontrar as forasteiras no vilarejo. Até uma nuvem de poeira apareceu por ocasião da saída apressada delas.

Agora acredito que deveria narrar o resto da viagem, sua subida, a passagem por todos os estados do Nordeste; no entanto se tivesse que contar o que passava por Sara, deveria parar de teclar e deixar o papel em branco. Foi perceptível até para o mais desconhecido sua falta de luz após a saída do vilarejo. Uma das cenas que mais se repetiram era dela apoiada com o braço para o lado de fora do carro, de óculos escuros e tomando lufadas e lufadas de ar no rosto.

Até o porto final, Márcia não perguntou nada para Sara; numa praia lotada, com o sol perpendicular à terra, com o silêncio pesando entre as duas, sugeriu fugazmente voltarem para o vilarejo, assim, como quem pergunta se aceita mais um pouco de cerveja. Sara tentou falar e gaguejou e desistiu e abraçou Márcia. Esta, para falar a verdade, também preferia aquela pequena praia. Por razões diversas – e nem tanto – ela não achava que seria uma grande concessão voltar para o pequeno povoado de pescadores, completamente isolado do mundo e desconhecido de sua existência.

Na volta, Sara já não era a mesma Sara que viera para Fortaleza. Empolgava-se com o menor vestígio de explosão, tentava diminuir o percurso e o tempo. Avistaram (para encurtar toda a parte inútil da história}as casas paralelas umas às outras feitas de pau-a-pique, o terreno arenoso barrento e a cabana onde Sara passou a maioria de seu tempo livre. Não, não pense o leitor que Sara estava – na ausência de palavra mais conclusiva – perdida por Jonas, que até eu acredito que estava; mas não seria do feitio dela, tão liberal, tão independente, voltar por causa de uma paixão. Pelo contrário. Quereria distanciar-se no máximo possível do sujeito para não construir nenhum tipo de laço e manter a vivência exatamente como não-programado. O que a devolveu foi – e posso assegurar – um sentimento de culpa. Acredito que a culpa ainda está entranhada na frente nos pulmões, atrás do esterno, da maioria das mulheres e de alguns homens. Mesmo que se vendam como agnósticos, ou até ateus, são dois mil anos de diversas razões para povoar as menos neuróticas mentes e fazê-las penitentes.

Ela tentou empurrar a porta depois de ter batido duas ou três vezes em sua madeira carcomida pela maresia, porém algo impedia de abri-la. Depois de quinze, vinte minutos e olhar pela janela embaçada, optou por outra tática. Dirigiram por toda a pequenina cidade até o bar onde todo o problema (ou solução) começara, e ele também não estava. Márcia alegou cansaço e pediu para que adiassem essa busca para um pouco mais de noite, Sara assentiu, porém não segurou nem sua cabeça que escapuliu e a levou para andar por entre as pequenas ruelas.

E nada. Parecia que todo o esforço escoava pelos bueiros abertos e entupidos da viela. O céu cinzento pré-anunciava o inevitável e ela sentiu uma sombra de mesma cor tomar parte de sua alma. Resolveu isolar-se na praia; sentou na areia amarrou as pernas com os próprios braços e enfiou o rosto entre os joelhos. Assim permaneceu por dois séculos.

Já bem escuro, desistiu de dormir na praia e iria para a cabana. O que a impediu não deve ser surpresa para ninguém, nem era a minha intenção provocar qualquer tipo de reação desse calibre. Pelo contrário, quem acreditar em algo tão absurdo e concreto como o destino, já estava esperando que tal situação acontecesse e até me rogaria algo próximo de uma praga caso tal sentimento fosse frustrado, mesmo que o rumo dos acontecimentos esteja para muito longe da minha vontade. Espectadores não acreditam no caráter imprevisível de narrativas, sempre precisam da segurança do final esperado para não se decepcionarem.

O que talvez seja novidade (mas não tanta, asseguro) foi que Sara quase tropeçou no menino, no homem. Pode parecer exagero, e de fato o é; Jonas estava desmaiado com a cabeça enfiada no barro, perto de uma poça, sujo e roto de maneira que ela quase não o reconheceu. Empurrou seu corpo até emborcá-lo de barriga para cima e mapeou mentalmente o que lhe chamou a atenção. O cabelo fora cortado de maneira desordenada, até o coro cabeludo, com manchas de sangue pisado e seco; o rosto possuía hematomas de diferentes tamanhos, cores e formatos; o incisivo e o canino superior esquerdo, e todos os molares e pré-molares desapareceram; havia uma enorme cicatriz que transpassava o olho direito. Sara o abraçou e não se conteve; balançou chorosa seu corpo e o dele num compasso de música que só ela escutava, assim como mães desesperadas fazem com seus filhos indefesos.

“Fui eu que fiz, fui eu que fiz”, ele se mirava num vidro manchado que deve ter sido um espelho há algumas décadas atrás, no dia seguinte. Sara com olheiras que quase cobriam todo o rosto, bocejou aproximando-se dele de joelhos um “por que? Por que você fez isso?”, no que ele ficou alguns instantes quieto, depois explicou que assim, as mulheres o abandonariam porque ele seria mais um homem igual aos outros e novamente Sara colocou a cabeça de Jonas em seu peito e o ninava, com carinhos esporádicos pela cabeça. “Agora eu pareço com eles, agora eu sou que nem eles, agora elas não vão voltar”.

(In) felizmente Sara não podia ficar muito tempo dessa vez. Logo o mês de novembro findaria e o trabalho urge. Nesse período, porém, Jonas estabilizou-se em casa, enclausurando-se como se fosse um condenado à perpétua. Sara passou grande parte de sua estadia ali, junto com ele, mas comunicou-lhe que teria que ir embora. Contataria-o assim que pudesse, antes mesmo de voltar a ser apenas mais uma paulistana. Jonas não demonstrou nenhum traço de animosidade nem de relevância sobre as palavras que vieram flanando até atingi-lo como uma bigorna. Respondeu apenas que ela era diferente, o que fê-la chorar copiosamente por horas abraçada a ele.

A despedida foi rápida, quase indolor, principalmente por parte do menino, do homem. Ele ficou imóvel quando ela a beijou. Jonas olhava para ela friamente e calculou todas as suas ações naquela tarde vermelha. Sara apenas desmanchou-se no carro. Não queria demonstrar nada para Jonas. Tinha a intenção de parecer superior a tudo o que ela presenciou na carne a na alma. Foi inútil, porém.

De volta a capital, Sara ligou de maneira empolgada para o único estabelecimento perto da casa de Jonas. Atendeu a velha gorda que aparecera no início de todo esse relato. Sara, obviamente, perguntou por Jonas e a gorda respondeu, assim, rispidamente, prática, direta e sem nenhum tipo de preleção que ele tinha morrido. Sara deu um grito (que parecia só existir em filmes com péssimas atrizes) e desligou em seguida. Do lado da gorda, o telefone tocou quatro minutos depois com Sara novamente, já com a voz embargada a inquirir por detalhes. A gorda explicou que o menino, o homem voltara a freqüentar o bar e brigava diariamente. Num dia sumiu e o encontraram com a garganta rasgada. Ela não tem certeza se ele morreu ou foi morto. Sara já não escutava nada, o fone caíra de sua mão e só não bateu no chão porque ficou preso em seu ombro.

Sem mais informação, porque tudo o que devia ser contado já o foi, basta-me narrar que Sara não voltou mais ao vilarejo, como era de se esperar de qualquer pessoa. Não modificou sua vida de maneira a surpreender as pessoas; só achava que aquele menino, aquele homem era o mais bonito que tinha visto na vida. E provavelmente nunca mais ia se deparar com algo tão vivo e verdadeiro pelo resto de sua existência.

sábado, 22 de novembro de 2003

olho em minha volta e só vislumbro uma mar calmo e plácido e azul onde os companheiros de meus pés são peixes coloridos e pacíficos e a única coisa que penso é que gostaria de estar numa festa de rock, escutando os impropérios de mister franck black, como os personagens de winterbottom que presenciaram o show de sid vicious e cia. e mudaram suas vidas com pulos ritmados. Acho que quero estar numa festa de rock agora e talvez não queira daqui a dois minutos como não queria, certamente, há algumas décadas atrás. talvez só queira mudar um pouco os ares, sair desse calmo e correto de dentro das expectativas, da projeção do homem de bermudas brancas passeando com o seu cão labrador pelos bosques do flamengo num domingo ensolarado. só quero estar numa festa de rock para poder respirar um pouco o ar de novidade - mesmo que as novidades estejam revestidas numa capa de vinte e poucos anos até - só quero para sentir a energia gritar pelos poros até não poder mais. Só quero para me sentir vivo, como carne e sangue, como algo que não se demonstra previsível, só para depois ter saudade da normalidade e do meu cotidiano comum e extremamente chato e enfadonho. só quero para enxergar a podridão e sentir o cheiro do sujo e chafurdar como num home sweet 'lone.

queria saber se um dia iria parar de me preocupar e me citar nessas linhas. queria saber se um dia vou me encontrar aqui e não outrem. queria saber se eu existo ou se é apenas a projeção de um mundo que sempre me chama de volta para sua vivência.

outro dia acabo com isso. o mundo comum toca a campainha.

sexta-feira, 14 de novembro de 2003

triálogos

- E não é que o Rafael voltou com a Elisa?

Dois amigos que dividem apartamento sentados na areia da praia, um segurando os joelhos, outro observando o passeio de meninas cada vez mais novas, conversam. O da direita, Téo, anda ríspido ultimamente. Não agüenta mais a vida que o da esquerda, Gera, leva. Este acorda todos os dias e abandona o corpo na frente da tevê. Só se permite levantar quando é hora da faculdade, ou para fazer algo pouco produtivo. Téo trabalha desde moleque, nunca conseguiu parar, “eu me tornaria um inútil”, ele pensa. Gera diz que se ralar, assim, desse jeito, só quando acabar a faculdade.

- O Rafael não tem jeito.

Téo acorda cedo e sempre dá de cara com as cuecas de Gera pela sala. Um dia, achou uma meia no lustre. Gera se alimenta de fast-food diariamente, o outro é vegetariano. Téo se levanta uma hora antes do necessário para chegar no trabalho, toma um banho rápido, mas frio porque “faz bem”, se arruma com aprumo, roupas de marca, camisas de botão, calças de prega e vai para a empresa. Gera demora horas no banho fervente, afirma que é a melhor hora para ficar sozinho consigo mesmo, pega roupas aleatórias, amassadas, as coloca sobre o corpo e sai para qualquer que seja o programa.

- E não adianta contar para ele que a Elisa não gosta dele.

Gera tem uma namorada que praticamente mora com os dois. Mônica é o nome dela. Téo é sozinho. Anda com várias meninas, mas nunca ficou com uma por muito tempo. Téo implica com Mônica porque ela encobre as “qualidades” de Gera. Quando ele deixou de pagar a conta de luz por dois meses, e a cortaram, Mônica disse que não tinha problema, que luz de velas era mais romântico. Téo ficou semanas sem falar com ela. Gera demorou ainda uma quinzena para pedir para religar.

- Lembra da última vez. A Elisa brigou com o Rafael e voltou com o ex-namorado. O Rafael ficou na merda completa. Depois de um mês, eu acho, ela brigou com esse ex-namorado e voltou com o Rafael.

Os dois foram morar juntos porque, na época, eram os melhores amigos. Vinham de uma cidade no interior, começavam na faculdade e as famílias se propuseram a bancar um apartamento para ambos. Assim que aportaram na capital, Téo foi em shoppings com sua pequena história debaixo do braço e conseguiu, depois de bastante andança, trabalho de balconista. Gera nunca se importou com isso. Diz que o pai se sente satisfeito em bancar seus estudos e acha isso o suficiente.

- Eu lembro que o Rafael ficou mal para cacete. Essa mulher também é foda. Só gosta de sacanear com o Careca. Ela usa ele.

Gera faz administração, Téo publicidade. Téo gosta de praia, Gera da vida noturna. Téo fez natação, judô, basquete. Gera entrou para o jiu-jitsu porque todo mundo fazia, mas nunca treinou direito. Os dois saíam juntos todas às vezes. Era Téo que segurava a onda de Gera nas brigas que este arranjava. A irmã de Gera foi a primeira namorada de Téo, fumaram o primeiro baseado juntos, ambos freqüentam o cinema, gostam de quadrinhos e rock. Foi de Téo a idéia de irem à praia.

- Pois é. A Elisa não presta.

Téo pensa seriamente em procurar outra casa. Só que sente um certo vínculo com Gera, acha que se ele sair de lá, o amigo não conseguirá sobreviver muito tempo no apartamento. Téo já meteu o dedo na cara de Gera inúmeras vezes, mas Gera sempre pergunta que é o Téo para lhe dar lição de moral. Téo acha que Gera está desperdiçando um talento, ele acha que o amigo é criativo - os dois brincam de fazer roteiros para clipes imaginários - poderia estar se arranjando dentro de alguma empresa, ganhando dinheiro. Gera nunca parou para pensar sobre Téo. Para falar a verdade, Gera raramente reflete sobre assuntos sérios, somente quando alguém o pergunta diretamente.

- E nem adianta falar com o Rafael.
- Nem adianta.

quinta-feira, 13 de novembro de 2003

Gargalhada

O homem se sentiu estranho quando não riu durante toda a encenação. Depois, na rua, quando sua mulher lhe perguntou se havia gostado da peça, ele não teve coragem de dizer que a única coisa que passava em sua cabeça durante a peça era estar o mais distante dali que pudesse, ou que aquele suplício acabasse o mais rápido possível. Se sentia numa tortura oriental onde cada segundo é revestido de todo o cuidado para ser inesquecivelmente doloroso. No dia seguinte, no trabalho, a situação foi ainda mais embaraçosa. Ao apanhar um café para tomar, encontrou um daqueles colegas piadistas que se sentem engraçados na saída do banheiro. Miguel tomava seu café e continuou virando o copo mesmo vazio para acompanhar o sujeito. Repentinamente, o piadista parou de falar e esperou que explodisse a gargalhada do outro. Miguel rasgara o pequeno copo na tentativa de prestar atenção, contudo não conseguiu achar a graça daquela história absurda e grotesca. Sorriu a contragosto, mas o sujeito percebera a falsidade estampada no seu rosto. O falastrão ainda repetiu o final com outra entonação, para ver se conseguia arrancar dessa vez, mesmo que a força, algum tipo sincero. Nada. O meio sorriso não se abalara, não se movera nem um centímetro. O sujeito deu as costas e saiu quieto e perturbado.

A confirmação, como em qualquer outra experiência ou situação, veio com o terceiro incidente. Em casa, na mesa do jantar, o filho contava como tinha sido o dia e todos ao redor da mesa, acompanhavam-no. Menos Miguel que olhava burocraticamente para o garoto de quatorze anos. Quando ele terminou de falar, a mãe e irmã riram com vontade. Miguel deu apenas mais uma garfada em seu purê. O menino, ansioso por algum tipo de aprovação por parte do pai, inquiriu diretamente se havia algum problema com ele, o filho. Miguel mastigava e enquanto os dentes esmagavam o pedaço de frango que estava na boca pôde ter um pensamento rápido sobre se havia alguma coisa errada com ele. Claro que tinha ficado mais que constrangido quando não conseguiu rir verdadeiramente na presença do gaiato no trabalho. E também tinha achado estranho não rir na peça com a mulher. Mas não tinha feito nenhuma ligação entre tais fatos até aquele momento. Parecia que estava cotidiano – como deve ser, argumentava consigo mesmo. Começou a vasculhar rapidamente por toda a memória se havia ocorrido algum tipo de incidente que o fizera mudar de humor nas últimas semanas. Porém, o frango já tinha se desmanchado completamente na boca e teve que responder para o filho que tinha adorado sua história e não, não tinha problema nenhum com ele.

No bar de todas as quintas, seus amigos gargalhavam de qualquer coisa na mesma intensidade que Miguel afundava sozinho nos seus pensamentos. Tentava lembrar da última vez que rira e a lembrança não vinha. Voltou muito tempo atrás e conseguiu enxergar que ria mesmo em conversas bobas com a mulher, na época de namorados. Recordou que sorriu até chorar no dia que seu filho nasceu; pode observar que gargalhava nessa mesma reunião que estava, há anos atrás, quando esta começou. Entretanto ultimamente, tinha um pedaço enorme de sua memória contaminada com uma tinta azul-cinzenta. O pensamento de que ele era um amargurado com a vida passou como um elefante pela sua cabeça. Tratou de se convencer de que gostava de sua vida da maneira como ela era, e obteve resultados positivos. Sabia que sua vida não era brilhante, mas nunca teve a pretensão de ter uma vida mirabolante e de dar inveja nos amigos. E o seu caso, repetia para si, não era de falta de aventuras, mas de ausência de risos, em todos os seus formatos. Nessa etapa do pensamento foi interrompido por um amigo que estava no seu lado perguntando quem era a dona de seus pensamentos para ele poder ignorar dessa maneira seus camaradas.

Recusou a carona de volta naquele dia e pegou um ônibus com o argumento de que precisava passar na locadora. Sentou-se num banco sozinho, mas logo uma senhora gorda ocupou todo o lugar que sobrara e mais um pouco. Fez um esforço enorme e logo conseguiu voltar para as suas recordações. Estava empenhado em organizar uma lista com alguns títulos de filmes que o fizeram rir com muita vontade quando vistos pela primeira vez. Os primeiros que vieram foram as paródias pastelões. Apertem os cintos o piloto sumiu, Top Secret. Depois não houve nenhum mais. Foi para o outro lado do Atlântico e lembrou que riu de algumas cenas de Monthy Pyton e o cálice sagrado. Porém, achou A vida de Brian chato. O mesmo aconteceu com Monicelli, achara Os companheiros, engraçado, mas Brancaleone apenas passava de ser entediante. Pensou em Woody Allen. Sempre provocava, pelo menos, pequenas mudanças nas configurações de sua boca. Nunca dera uma gargalhada, mas nessas circunstâncias, já era uma vantagem.

A fita rebobinava e Miguel concluiu que Crimes e Pecados não tem o mesmo impacto ao ser revisto. Então entendeu que o filme ao ser assistido mais de uma vez não traz a mesma surpresa. E quanto mais repete as mesmas cenas, com os mesmos enredos, as mesmas falas, tudo se torna previsível e chato. Sua mulher entra no quarto exatamente nessa parte do seu raciocínio e pergunta o que ele faz ali. Ele levanta a capa do vhs e sai do quarto antes que ela possa lhe perguntar alguma coisa.

Não agüentava acordar todos os dias no mesmo horário e dar os mesmos bons-dias que dera ontem e anteontem. Ou estar há anos criando os mesmos relatórios no seu trabalho sem que ninguém reparasse. Ter que repetir as mesmas frases que ouvira do pai para o filho como uma canal direto, sem nenhuma modificação no timbre da voz e sem ter a menor idéia de que isso é o correto. O pior, disse para si mesmo, é que se tivesse a coragem de remexer o marasmo que imperava no seu cotidiano, atingiria pessoas que não pediram nem queriam estar em tal situação. Viu-se assim nitidamente amarrado em cima de uma cadeira, com as mãos às costas, a boca amordaçada e os olhos vendados e pela primeira vez sentiu um gosto amargo subir de dentro de suas entranhas à garganta até a boca e teve uma ânsia de vômito. Cuspiu na pia do banheiro um líquido viscoso esbranquiçado e doente.

A partir daquele dia, desistiu de procurar qualquer tipo de motivação para se sentir feliz. Resolveu se enclausurar dentro de si até o dia que tal tormento acabasse, de qualquer forma imprevista. Havia antevisto o infinito com torturas diárias. A cada pergunta típica da idade do filho, cada vez que ligasse o computador no trabalho ou apagasse a luz no quarto para dormir, descobriria que mais um pedaço dele estaria podre e inutilizável. Já não conseguia usar a razão para desvendar uma trilha para fora desse labirinto. A única resposta que a cabeça lhe dava era fugir, sumir, desaparecer, se transformar em lembranças cada vez mais distantes para aqueles que tiveram algum tipo de contato com ele. Mas se sentia covarde demais para tomar tamanho impulso. Observava suas asas e não as considerava grandes o suficiente para poder voar o percurso que se propunha, muito menos carregar outros pesos. Em nenhum momento considerou que as pessoas envolvidas pudessem, também, estar insatisfeitas com o barro que os cercavam. Assim, Miguel manteve suas tarefas sem aparentar nenhuma presença ou iluminação.

Aquele dia pareceria comum. E o era, e não mudará pelo que vai ser contado. Ninguém sentiu a diferença, nem mesmo a outra parte dos envolvidos no caso. Apenas achou algo estranho, comentou com a mulher em casa, e em poucas semanas já havia esquecido e a substituído por outra lembrança ainda mais fugaz. Naquele dia, Miguel chegou às oito horas e treze minutos no trabalho, adiantado como ocorrera em todas as oportunidades do mês corrente. Seu chefe se aproximou e tocou carinhosamente em seu ombro chamando-o para sua sala, pois tinham que conversar. Miguel, exatamente como um robô faria, se levantou e seguiu passo a passo o chefe até o aquário. Lá dentro o chefe apontou a cadeira que Miguel estava autorizado a sentar e ele se sentiu dormente, escutava um zumbido no ouvido que deixava a voz do chefe num volume baixíssimo, e enxergava tudo em volta do interlocutor embaçado, como se, dessa forma, pudesse enxergar algum tipo de aura. O chefe falava monocordicamente e Miguel só conseguiu captar algumas frases salpicadas aqui e ali. Escutava “empresa vendida”, “grupo japonês”, “downsizing”, “funções desnecessárias”, “capacitações técnicas” e só conseguiu conter uma gargalhada depois dela ter escapado. A conversa cresceu em peso e densidade, o chefe falava agora mais claro e mais pausado e continuava “falta de motivação”, “qualidade técnica”, “gostamos de você, mas” e Miguel riu novamente em voz alta e tapou a boca com a mão logo em seguida. O chefe parou de discursar e perguntou se ele estava bem, Miguel respondeu que sim, que estava, e então continuou. Miguel sentiu um soluço aportar dentro do seu peito e não pôde conter vários solavancos do corpo. A cada golfada sentia expelir algo inominável e impossível de ser codificado que desintoxicava seu corpo e em certo momento, já ignorando completamente o que o chefe falava, apenas por se sentir bem, bem demais, gargalhou com todos os dentes aparecendo, mostrando o palato mole e o duro, a garganta vermelha e quase todo a laringe. Segurava a barriga, pois tinha a impressão que iria explodir, as bochechas estavam com câimbras e os olhos lacrimejavam. Quando voltou a si, o chefe estava ao lado gritando seu nome e alguns transeuntes parados do lado de fora da sala observando a cômica cena. O chefe, então, reperguntou se ele estava bem, no que Miguel não respondeu. Apenas sorriu sinceramente do fundo do seu coração.

terça-feira, 28 de outubro de 2003

No sábado passado havia dormido na casa de minha irmã. Por azar, deveria trabalhar bem cedo no dia, assim colocara o despertador para tocar antes das oito da manhã. Acordei antes do horário previsto, apesar de termos bebido no dia anterior e dormido essencialmente tarde. Saltei da cama quando ainda não era sete e trinta. Antes mesmo de ir ao banheiro, sentei cheio de remelas em frente ao computador para entrar na internet. O que aconteceu, entretanto, eu não previra: o pc não funcionou.

Ainda um pouco molhado do banho que tomei na casa de minha irmã, colocando os fones nos ouvidos e a mochila nas costas, saí em direção a primeira banca de jornal que estivesse aberta. Contudo ela não tinha mais o diário que procurava. Me apressei para a segunda, depois de quase três quadras de vazio e angústia, quase correndo na rua. No meio de uma espécie de auto-estrada, encontrei o último exemplar. Caminhava na calçada e tinha para a minha inquietação: os carros que passavam rasantes ao meu lado bem próximos a mim, o horário para não me atrasar no emprego, a música que preenchia os meus ouvidos, a meta de pegar o transporte no lugar e hora certas e a tentativa, quase heróica, de ler a matéria que me preocupava com as letras balançando. A situação melhorou um pouco assim que consegui me sentar no banco do ônibus. Pude abrir o caderno e ter a comprovação de que meu conto não tinha sido eleito nada.

Era o quinto concurso que participava e, pela quinta vez consecutiva a minha apreensão e expectativa se repetiam. Não que ache que deveria ter sido eleito, todas as vezes que leio os textos selecionados vejo que eram imensamente melhores que os meus. Me desagrada, porém, imaginar que talvez se eu colocasse tudo aquilo que passa pela minha cabeça dentro dos meus textos, se conseguisse realmente me expressar, narrar todos os meus pensamentos, poderiam, assim, concorrer de igual para igual com os outros. Como disse em outros tempos, o meu caso é ser um escritor apenas pelos cacoetes, começando pelo branco. É sentar-se aqui, de frente para o computador e nenhuma das mirabolantes idéias que tive vem a minha mente. Ou, quando vem, não acho que sejam nada demais, ou pior, ao serem colocadas no papel virtual perdem completamente aquela força que achei que tinha.

No entanto, para minha sorte, desisti de me desesperar, escrevo apenas como prazer. Me sinto mais tranqüilo a partir do momento que descobri poder acreditar simplesmente, sem nenhum objeto de crença. Como se o simples ato de crer me tornasse mais tranqüilo, mesmo com a ausência absoluta do que acreditar. Como numa caminhada cega, como uma religião irracional, como numa fé desmotivada. Assim escrevo para me divertir. Sem nenhuma pretensão a coisa alguma. Borges dizia que o maior erro do artista é querer ser gênio. Pois então, como ele, me conscientizarei a ser somente eu, nada além desse “eu” ordinário e comum que se confundiria com qualquer pessoa. Nada mais de pressão para escrever com estilo, ou algo realmente importante. Até seria justificável ter esse tipo de ambição (ou pretensão); vários escritores dizem que seus desejos são de escreverem um livro que seja tudo para todos. Não tenho mais essa angústia, tirei essa forca do meu pescoço. Vou continuar a rabiscar essas coisas aqui e, talvez, um dia possa escrever uma pequena historinha sobre um sujeito que se transformou numa barata, ou sobre uma invasão de ratos numa cidade provinciana ou, quem sabe, narrar a saga de uma família solitária com hábitos exóticos. Histórias comuns, como se pode perceber.

Tenho certeza que no espaço físico que separa o pensamento, a formulação, o lugar onde se escuta o clique, onde se vislumbra a lâmpada se acendendo, do sentar na cadeira, de frente para o monitor, batucando nas teclas, coçando a cabeça, esfregando os olhos, se perde grande parte da produção literária do mundo. Se um dia pudesse mergulhar nesse poço para resgatar apenas as minhas idéias – juro que não roubaria a de ninguém – e as utilizasse aqui, conseguiria um resultado mais, como direi?, glorificante.

Ontem de noite por exemplo. Subi num coletivo e o motorista anunciou que havia mudado o itinerário por causa de um tiroteio que estava acontecendo na área que deveria ir. Desci e esperei o próximo que provavelmente não tivesse conhecimento da história e me levasse até o meu destino. Não demorou nada e veio um logo atrás. A coincidência – e aqui nasce a idéia – foi que ao me sentar, calmo, observando, através da janela molhada e embaçada ao mesmo tempo, um Rio de Janeiro escuro, vazio, chovido, o meu telefone tocou com a minha irmã na linha. Depois de todas as amenidades comuns de irmãos que não se encontram há algumas semanas, ela pediu para que eu tomasse cuidado, pois “a cidade está muito perigosa”. Poderia ser apenas uma preocupação familiar, tão tradicional na frase da mãe que diz para o filho não voltar tarde, ou quando pede para a irmã ligar quando chegar, onde quer que for, pois assim vivemos na cidade partida e sitiada. Porém ambas as informações se ligaram na minha cabeça na hora. E se um destino superior – não acredito nesse tipo de coisa, mas que ele existe, ele existe – tivesse tentando me passar uma espécie de mensagem para que eu desistisse de trafegar naquele dia, naquela via, daquele jeito? Claro que as teorias mirabolantes são prima-irmãs das paranóias, e resolvi continuar no meu trajeto até o final. Por sorte, ou porque assim tinha que ser, nada aconteceu comigo (fora ter molhado completamente o meu pé numa poça de água suja no meio da rua assim que desci). Com a minha chegada inocente e isento a casa que queria, resolvi usar a história apenas como pretexto para inventar um final mais empolgante, por assim dizer. Então lembrei que todas as histórias já foram contadas e que não deveria perder o meu tempo, nem fazer um eventual “você” ler essas baboseiras que na internerd tem aos montes, muito melhores que as minhas.

Agora aconteceu de novo. Quando escrevia o parágrafo anterior, esse que você acabou de ler, tive uma idéia. Não era brilhante, mas tinha achado bastante interessante, e agora ela não existe mais. Perdeu-se, foi para o beleléu.

Digressiono. Como podem ter percebido, escrevi a pequena historinha aqui. Sei que não mudará a vida de ninguém, mas com certeza transformará a minha em algo mais tranqüilo.

Iria continuar a escrever o parágrafo anterior e dizer que já vivo completamente independente da opinião de outras pessoas. Bastaria a mim somente escrever. Mas a afirmação não seria de toda verdadeira. O que passa pela minha cabeça, por exemplo, é que se desisto completamente de ser escritor – ou algo do gênero – as possibilidades que se figuram na minha frente diminuem drasticamente indo próximas a zero. Ou, sendo mais claro, não tenho idéia do que ser quando “crescer”. Mas como disse lá em cima, isso não é mais meu problema. Não sei de quem é, mas vou deixar para o futuro (se é que ele existe) decidir por mim.

epílogo

Tudo o que foi escrito até agora demonstra claramente a confusão que passa na cabeça de um garoto de vinte e poucos anos que ao terminar uma faculdade percebe-se completamente perdido, sem nenhuma pretensão de trabalhar naquilo que ele (pseudo) aprendeu. E nesse ínterim de desespero, não escreve nada. Fica numa espécie de greve dele mesmo. Não se forçará a colocar nada no papel. Depois de dezenas de dias, de semanas, um mês, volta a colocar qualquer coisa, apenas para não enferrujar, tentar se convencer. As esperanças diminuem proporcionalmente ao tempo que se esvai. Ele continua a acreditar em “nada”, nesse nada que não tem nome, que não tem forma, que não tem gosto. Exatamente o que faz a falta de perspectiva diminuir no hall de preocupações – sendo substituídas por outras mais táteis, mais prováveis, mais iminentes. Ele segue, porque é inevitável. Decidiu que se cair, cairá lutando. Acha, nessas últimas semanas, que não há como mudar o próprio futuro, mesmo que tente muito, tudo está praticamente feito. Porém, sabe do valor da escolha. Porém, entretanto, mas “Se deus não existe, tudo é permitido”. Deve-se abastecer o destino com possibilidades, e se essas não forem escolhidas, optar pela próxima. Cair lutando. Repete como um mantra. Para poder se convencer.
Seu Livro?

No intervalo do primeiro ato para o segundo a vi pela primeira vez. Poderia tentar descrevê-la, mas qualquer palavra que utilizasse seria de menor expressividade que o necessário. Ela é alta, cabelos dourados escorridos que passam pelos ombros ignorando-os até a metade das costas. Eu tomava um café apoiado no balcão e me era impossível não estar com os olhos grudados nela. Me sentia diminuto porque não havia a possibilidade de, de alguma forma, me aproximar. Não sei se a expressão exata é essa, mas sentia algo parecido com a culpa.

Tenho uma namorada, como nunca tivera nunca. Estou com ela há mais de seis meses – fora nosso aniversário no dia anterior – e ela me deu uma carta dizendo-se muito surpreendida e feliz por estarmos juntos. Falava de nossas semelhanças, citava nossas brincadeiras e terminava com uma citação poética. Chorei discretamente abraçado no seu pescoço por alguns instantes maravilhosos. Não tenho dúvidas que gosto dela. Não tenho dúvidas que ela combina comigo, que ela me entende, que é linda, que adoro ficar ao seu lado. Entretanto, depois desse tempo inédito para mim, a empolgação, como é de se esperar, declinou-se.

Na volta para o segundo ato, mudei de lugar na platéia indiscriminadamente e percebi que, por uma questão de coincidência, sorte ou sei lá que nome pode-se dar para isso, a loura televisiva estava na minha frente, um pouco à esquerda. Até ai, não há nenhum problema nem nenhuma solução, estávamos insossos como havíamos de estar. Então ela olhou para trás. Na primeira vez para nenhum lugar, como que mapeando o ambiente, na segunda próximo a mim, na terceira para mim. Tinha dez, quinze minutos de espetáculo e ela virou três vezes para trás. Perdi completamente o fio da meada d’ “O Avarento”.

O problema era particularmente maior porque a loura me proporcionava exatamente aquilo que minha namorada não possuía: a perfeição estética. Ao olhar para ela eu a desejava mais que, talvez, outra mulher ao alcance. No intervalo me perdi observando nuances do seu corpo e imaginando sua voz, sua quentura, a textura da sua pele... A cintura fina, o detalhe da pele da barriga queimada de praia que aparece quando ela se mexe, o cabelo meio preso, meio caído, os olhos extremamente claros, o quadril generoso, o sorriso largo mostrando todos os dentes brancos, meu deus, o sorriso largo...

Tenho que dizer: vivo praticamente com a minha namorada – moramos um perto do outro e consigo ir na casa dela a pé quando quero. Os pais dela são ótimos. Ela gosta das mesmas coisas que eu. Estar junto dela é certeza de me sentir confortável, bem. Me sinto criando um relacionamento estável, exatamente como deve existir entre pessoas adultas e maduras. No entanto, algo não me deixa esquecer que tenho apenas vinte e dois anos. Tudo bem, não quero entrar na história do “desperdício de vida” tão cantada aos quatro ventos. Parece uma ladainha dizer que há benefícios em ambos tipos de relacionamentos, tanto na solterice convicta quanto na união duradoura. Falar com esse mesmo discurso, já tendo escutado diversas vezes amigos reclamarem da vida por isso, e contra-argumentar da irresponsabilidade dos atos, seria como me contradizer e ter um comportamento pouco, digamos, prático (apesar de que a praticidade nessas horas é das piores coisas que podemos fazer).

Pela completa falta de experiência em relacionamentos longos e estáveis, acredito que este tenha uma certa vantagem sobre mim por causa do seu caráter inédito (que também é um outro tipo de fetiche). Todavia, o que eu quero, se é que posso colocar nesses termos, é que ela, a que esteja comigo, me proporcione prazer tanto com meus olhos abertos quanto fechados, apenas isso. Não, também não quero cair no clichê da mulher perfeita, não é isso. Seria uma bobeira que acredito ter deixado para trás há tempos (mesmo que ainda tenha recaídas constantes). Muito menos confirmar a tese da constante insatisfação com a posse, o próximo e o desejo pelo distante, o do vizinho. Acho até que, de todas as teorias essa é a mais válida no meu caso, pela comprovação prática e estatística. Entretanto, dessa vez não. O que eu quero é simplesmente uma união da loura do teatro com a minha namorada.

Depois da terceira olhadela, ignorei por completo o espetáculo e apenas mirava os fios claros tão pertos do toque da minha mão. Ela demorou, mas olhou novamente para trás, dessa vez rapidamente. Um frio na barriga me tomou de assalto junto com os olhos dela. Foi então que num ímpeto, numa loucura minha, me aproximei dela que nem um cão desgarrado, catei seu rosto, o aproximei do meu e violentamente beijei-a sobre as cadeiras do teatro. Não, não isso foi apenas a minha imaginação agindo.

Esperei uma próxima virada de cabeça, mesmo que não suspeitasse da atitude que eu deveria tomar, porém ela não retornou. No início senti-me angustiado, pensei que tinha perdido uma oportunidade única, que tudo era culpa minha por não ter tomado atitude nenhuma, num espaço altamente propício para flertes e afins, como se pode perceber, mas logo a minha atenção retornou para a peça e a loura se transformou num belo preenchimento de tela.

O sentimento de culpa, o qual aludi no início do texto, não deixara nem um pequeno traço de vestígio. Parecia que ele só tinha passado para demonstrar que ainda existe, aqui dentro em algum lugar, nada mais. Mesmo assim, quando as luzes se acenderam levantei-me rapidamente para não me deixar cair em tentação outra vez. Todavia, ela se virou ainda com mais pressa que eu para trás e me fez uma interrogação. Ao menor rumor da sua voz quieta, meio rouca, quase me arrepiei. Com um livro na mão ela me perguntou se o dito cujo era meu. Primeiro não sabia o que responder, depois de alguns centésimos, consegui concatenar algumas fagulhas de sinapses e pude negar com a cabeça. Ela olhou para outro lado a procura de alguma coisa ou alguém e eu consegui fugir do teatro um pouco embaraçado.

quinta-feira, 25 de setembro de 2003

boteco

Cena 1

Boteco mal iluminado e sujo, com pequeno espaço interno, um mesa de ferro espalhada pelo saguão. Seu Ulisses passa um pano em cima do tampo do balcão. Ele está com a camisa azul aberta, como faz todos os dias. Passa por ele Dona Marta, sua mulher, uma morena robusta, porém de baixa estatura, com um lenço no cabelo, segurando uma bandeja de ovos coloridos cozidos. Ela abre a gaveta do balcão e coloca a bandeja no interior. Seus Ulisses dá um suspiro ao olhar para o bar.

Que foi Ulisses?

Nada mulher.

Que foi, homem? Tu ta assim há dias. Me conta o que aconteceu.

Isso.

Isso o que, homem de deus?

Ah, mulher, todo dia é isso. O nosso boteco ta às moscas. Não vem viva’alma aqui.

Entra seu Adenecir vagarosamente. Pele curtida, cabeça chata, muita estrada pela vida.

Tem o seu Adenecir. Ele vem aqui todo dia.

Seu Adenecir levanta o dedo e produz um murmúrio baixo, quase impossível de entender. Seu Ulisses enche um copinho pequeno de velho barreiro e o empurra na direção de seu Adenecir. Não dá maior atenção para ele.

Mas com o seu Adenecir não dá para pagar as contas. Não pára de chegar conta. Todo dia é uma coisa diferente que tem que pagar. É luz, é água, é imposto da prefeitura, é conta da Ambev, assim não dá.

Dona Marta sai do ambiente, vai para a minúscula cozinha. Seu Adenecir continua na frente de Ulisses, os dois não se comunicam. Dona Marta volta com uma colher de pau na mão.

Faz comida hoje?

Seu Ulisses não responde.

Faz comida hoje, me responde, homem de deus?

Para quem, Marta? Para que você quer fazer comida? Para jogar fora depois?

Marta volta para dentro da cozinha.


Cena 2

É noite, Seu Ulisses fecha a porta do estabelecimento. Ele bate repetidas vezes com a chave na mão e fica olhando para a porta arriada com um semblante triste. Depois de alguns instantes, ele sai do lugar. Ao lado da porta fechada, há uma placa de madeira ordinária, pintada a mão que diz: “Passo o ponto” e com o telefone embaixo.


Cena 3

Seu Ulisses carrega o freezer da loja com algumas caixas que o entregador deixou na porta. Vai até a cozinha, Dona Marta está lá lavando louça.

É a última vez que eu compro essa quantidade de cerveja. Fiz já um pedido com a metade das caixas. Tava demorando duas semanas para acabar com o estoque. Ficava tudo entulhado aqui atrás.

(...)

Ulisses, O Seu Manél veio falar contigo?

Não ele nunca mais veio depois daquele dia.

Quanto foi mesmo que ele disse que ia pagar?

Quarenta mil.

Oh, Ulisses, com quarenta mil na mão, hein... dá pra fazer uma festa...

E depois a gente vai viver de que, Marta?

Impera um silêncio. Seu Ulisses volta para o balcão. Seu Adenecir já está no seu cantinho com o copo na mão.



Cena 4

Seu Ulisses almoça sozinho na mesa de ferro no meio do salão.

Marta, tem pimenta?

Pimenta acabou.

Tem farinha, então?

Vou levar.

Demora alguns segundos e Dona Marta leva o pote de farinha. Assim que ela sai, entra no boteco três sujeitos completamente diferentes da freguesia habitual. Dois são altos, um magro e outro mais musculoso. Este tem um cabelo grande e usa óculos. O terceiro era menor e tinha uma certa calva.

Opa, tudo bem?, diz o de óculos.

Hum, resmunga Seu Ulisses com a boca cheia de feijão com farinha.

O senhor vende skol? Garrafa?

Harrã, sim, harrã.

Pra quanto ta?, pergunta o magro.

Dois e vinte.

Dois e vinte?, o menor se espanta.

É aqui mesmo que vamos ficar, o senhor tem uma mesa?

Seu Ulisses se levanta de imediato, carregando o prato nas mãos.

Não, que isso, tio? Almoça ai tranqüilo que a gente espera. Não tem pressa.

Não, sentem ai, eu ia mesmo lá para dentro.

Seu Ulisses larga o prato razoavelmente cheio na pia da cozinha e volta secando a mão na calça e limpando a boca na camisa. Abre o freezer, pega uma garrafa e a coloca em cima da mesa dos rapazes.

Traz mais uma?, pergunta o mais alto e magro para os outros. Com a confirmação de cabeça de todos, ele repete o pedido para seu Ulisses

Seu Ulisses se vira rapidamente para pegar mais uma cerveja e coloca na mesa. Dona Marta aparece na entrada da cozinha.


Cena 5

Seu Ulisses está observando os rapazes bebendo e conversando em altos tons no boteco. De repente, passa um sujeito de cabelo liso jogado na cara, os três de dentro do bar gritam para fora ao mesmo tempo.

Oh Verme!

O de cabelos lisos olha para dentro do bar e reconhece os amigos. Caminha para dentro e cumprimenta cada um.

Ta indo aonde?

To indo comer uma parada.

Pô, to com mó fome, também. Será que aqui não rola também uma comida?

Não sei, pergunta ai para o tio.

Ai, meu tio, tem alguma coisa para tirar o gosto?

Tem sim.

O que é que o senhor tem?

O que é vocês querem?

Tem aipim frito?

Aipim?

É aipim, macaxeira, mandioca...

Ah, mandioca frita, tem sim.

Ta bom aipim frito?, o cabeludo pergunta para a mesa, todos concordam, em seguida ele pede para Seu Ulisses: Me vê uma porção bem caprichada, então.

Seu Ulisses olha para Dona Marta que estava parada ao seu lado, ela entra na cozinha.

Não tem mandioca não.

Então vai comprar, mulher, ora onde é que se viu? Vai na tenda do Dílio e pega umas três. Aproveita e pega também carne seca e cebola.

Cebola a gente tem.

Então vai logo, não se demore mais.



Cena 6

Seu Ulisses coloca mais uma cerveja para os rapazes. Embaixo da mesa falta apenas duas garrafa para fechar a caixa.

Oh tio, o aipim demora para sair ainda?

Ta saindo.

A gente pediu o troço há um século.

Porra, que cara exagerado, ironiza o calvo.

Ta saindo, ta saindo.

Seu Ulisses entra na cozinha, Dona Marta está no fogão fritando. Ao seu lado, há uma bandeja com alguns aipins já prontos. Ela pega com a escumadeira e os colocam na bandeja.

Vou levar. Frita também a carne seca.

Dona Marta pega as tirinhas que já havia cortado da carne seca e as joga na mesma frigideira.

Seu Ulisses entrega o prato para os rapazes. Eles não falam nada, atacam o prato.

To fritando também uma carne seca para vocês. Vocês querem.

Pô, perfeito.

Peraí, quanto é o aipim?

O aipim?

É.

Três reais.

E a carne seca?

A carne seca é... cinco reais.

Ta, tudo bem. Pode trazer.



Cena 7

Já está de noite. Há um e meio engradado de cerveja cheios. Os garotos estão todos muito bêbados.

Vamo’embora. Vamo perder a festa de hoje.

Ta, pede a saideira e a conta.

Ai, tio, dá pra trazer a última e a conta pra gente?

Seu Ulisses sai no balcão pega a cerveja no freezer, a entrega para os sujeitos e volta para o balcão para fazer a conta.

Porra, gostei daqui. Vamo voltar amanhã?

Também gostei. A cerveja tem um preço honesto e a comida é boa.

Seu Ulisses leva a conta para eles. O mais alto e magro pega, a coloca sobre a mesa e puxa a própria carteira. Todos em seguida fazem o mesmo, sem nenhuma reclamação. Em pouco tempo, o dinheiro está sobre a mesa.

Aqui tio. Vamo voltar amanhã.

Ta.

Vamo trazer uma galera. A gente vai encher isso aqui.

Ta. Ta, pode trazer.

Até amanhã, tchau senhora

Dona Marta balança a mão de volta. Seu Ulisses pega o engradado e o coloca na cozinha. Ele está visivelmente empolgado.

Vou ligar pro Russo pra trazer cerveja.

Por que, Ulisses?

Porque os garotos acabaram com a minha toda. Tenho mais quatro caixas e meia e só. Se eles vierem mesmo amanhã, como é que eu faço? E se vierem com esse povo todo que eles tão falando que vão trazer?



Cena 8

O dia está claro. Seu Ulisses desliga o telefone em cima do balcão, ele está com um guardanapo numa mão e uma caneta na outra. Caminha para a cozinha onde está Dona Marta.

Pedi dez caixas. Acho que vai dar.

Quem deve ser esses meninos?

Num sei, Marta.

Será que eles moram por aqui? Eles poderiam morar por aqui, né? Se eles morarem por aqui seria melhor.



Cena 9

Na hora do almoço, chega a entrega de cerveja. Seu Ulisses ajuda os homens a descarregar. Um dos homens dá um tapinha nas costas de Seu Ulisses.

Ai, Seu Ulisses, fazendo pedido extra. Vai ter festa?

Não, não.

Que isso, Seu Ulisses? Nem me convida para as suas festas.

Não vai ter festa nenhuma não, Russo.

O homem sai depois que Seu Ulisses assina a nota de entrega. Seu Ulisses fica na porta do boteco com a mão na cintura olhando para ambos os lados. Fica uns quinze minutos assim depois volta para dentro do balcão.

Se esses moleques não aparecerem, eu to no prejuízo de mil real.

Mil real?

Seu Ulisses não responde. Coloca mais uma pinga para Seu Adenecir.



Cena 10

Seu Ulisses fecha a loja de noite. Dona Marta está ao lado dele. Os dois começam a caminhar para a casa.

E agora, Ulisses?

Seu Ulisses não responde. Ele anda cabisbaixo, mexendo na chave para distrair.

E agora, o que a gente vai fazer, Ulisses?

Eu não sei, Marta, eu não tenho a menor idéia. Me deixa quieto no meu canto, ta?

Os dois continuam a caminhar sem pronunciarem nenhuma palavra.



Cena 11

Seu Ulisses passa um pano sobre o balcão, na manhã seguinte. Seu Adenecir toma sua pinga no mesmo lugar de sempre. Seu Ulisses se senta no banco que ele tem dentro do balcão e num ímpeto se dirige para a mulher, dentro da cozinha.

Vou ligar para o Manél.

Dona Marta sai secando as mãos num pano de louça e apenas o observa. Não tece nenhum comentário. Seu Ulisses pega o telefone e disca alguns números.

Manél?... É Ulisses... Isso, isso, da “Flor do Bairro”... Isso... Como vai, também?... To ligando, Manél, para saber se tu ainda vem aqui ou não... Não sabe?... Não?... Vem amanhã?... Já... Não pode ser... Ta... Semana que vem, então... Ta, ta marcado, então... Um abraço.

Por que você mandou ele vir só na semana que vem?

Porque a gente tem que resolver todo o negócio nesse meio tempo.

Que negócio é esse que a gente tem que resolver?

O negócio todo, ora.

Mas ele vem aqui só para dizer se quer comprar ou não. O que é que a gente tem que resolver?

Oh, oh, Marta, não se mete nas minhas coisas não. Deixa que com o Manél eu me entendo.

Você tem cada uma...

Dona Marta volta para a cozinha, Seu Ulisses fica no balcão com o caderninho de contabilidade aberto escrevendo nele.



Cena 11

O céu está escurecendo, o céu está azulado, com alguns tons de laranja. Seu Ulisses está na porta do boteco olhando para fora. A rua é pouquíssimo movimentada. Principalmente nessa época do ano, dezembro, janeiro. Subitamente aparece na rua, três sujeitos completamente desconhecidos, vestidos de puta, da pior qualidade. Porém, o que mais chama a atenção é que eles caminham como homens. Todos têm feições masculinas e não fazem nenhum esforço para disfarça-las. Seu Ulisses, meio rindo, meio se defendendo, volta para atrás do seu balcão. Demora poucos minutos, entra um sujeito enorme com uma fralda no meio das pernas. Junto a ele, vem um cara com roupa de exército.

O senhor pode me ver uma cerveja.

Seu Ulisses sai de trás do balcão e pega a cerveja e coloca em cima da única mesa.

A gente pode ficar bebendo aqui na porta?

Claro.

O senhor tem copo de plástico, para não quebrar nenhum copo do senhor.

Tudo bem.

Seu Ulisses voltou para detrás do balcão e olhou para fora e viu várias pessoas vestidas de maneira incomum. Umas mulheres de maiô com orelhas e rabos de gatos, coelhos, cachorros. Um garoto pequeno de trança de jamaicanas, um outro com uma batina de padre, uma mulher de freira, outra de mulher-maravilha, um sujeito com camisa do chapolim, outra de enfermeira, um médico, um dentro de uma caixa enorme, um vestido com roupa de esqueleto, outra de she-ra, outro vestido de caçador, um de tenista, outra de nadadora, uma de mergulhadora. Todos entravam na birosca de Seu Ulisses e pediam uma cerveja para comprar. Seu Ulisses já não conseguia atender a todos.

Marta, vem cá, vem cá, Marta, preciso que você me ajude aqui. Me dá uma mão aqui. Liga para o Oséas e pede para ele vir para cá. Vê se ele pode trazer mais cerveja, vê se dá também.

A rua está lotada de pessoas. Não são dezenas nem centenas, a multidão aparenta ter próximo de mil pessoas. Muitas delas entrando e pedindo uma cerveja ou algo mais forte.

Tu tem caipirinha?

Dá pra fazer rabo de galo?

Aqui tio, to pagando três cervejas.

Me arranja uma gelada, por favor.

Seu Ulisses em determinado momento, por mais incrível que pareça, fica sozinho com Dona Marta.

Marta, vou tirar a placa lá de fora.

Seu Ulisses sai do boteco, quando Oséas está chegando com o seu chevete bege. O dono do bar pega a placa do lado de fora e guarda debaixo do balcão.

terça-feira, 2 de setembro de 2003

Os defensores dos bairros proibidos

Gostaria que esse texto se transformasse, no futuro, em um primeiro capítulo dum grande livro em que contarei todas as minhas memórias em detalhes. Neste escrito, entretanto, não narrarei nenhuma das minhas façanhas, nenhuma das minhas missões civilizadoras, nada que eu tenha feito. Tentarei somente introduzir o conceito que me guia, aquele me torna um ser que existe para ajudar o próximo.

Se você está me lendo, já posso afirmar sem muita margem para erros, que somos seres especiais, únicos. É uma questão de estatística. Não tenho os números de cabeça, mas entre em um sítio de um instituto de pesquisa qualquer para saber quantos entre os habitantes desse país sabem ler e escrever. O número fica ainda menor quando peneiramos para aqueles que tem o hábito de ler livros ordinários. E, quer você queira ou não, tornamo-nos a elite quando compramos livros como o meu que, com certeza, não estará no hall dos mais vendidos. Por isso, acostume-se, você é um dos poucos.

Para comprovar a tese de que estamos no cume da montanha, posso afirmar sem nem ao menos lhe conhecer que, bem provavelmente, você fez alguma faculdade, ou está em curso agora. Eu, por exemplo, fiz engenharia. Poderia ter feito medicina, direito, administração, economia, nada iria mudar muito a minha formação. Você estudou num colégio particular – eu passei quinze anos num de freiras – ou nesses públicos que tem provas semelhantes a vestibulares. Ou seja, possui um bem que a grande maioria daqueles que tem a sua nacionalidade não tem: educação. Não tenho a menor idéia do que você fez com a sua, mas eu usei a minha para servir aos meus semelhantes.

Para fazer aquilo que faço hoje em dia, não precisei de nenhum grande trauma para mudar a minha vida. Isso só existe em filmes e nos piores manuais de psicologia. Apenas observei meus arredores e decidi que do jeito que estava, não dava mais. Não houve um estopim, algo fatídico, somente um amontoado de situações que tornaram toda a convivência impossível.

Tenho esposa, duas filhas, uma casa espaçosa e confortável perto da praia, um carro, minha mulher anda com outro, uma casa na serra e outra num balneário. Lutei muito para conseguir isso tudo. Trabalho desde os dezesseis anos na firma de construção que meu pai deixou para mim. Tripliquei o seu tamanho sem nunca ter entrado num “esquema” dessas (ditas) autoridades públicas. Ganho licitações apenas com o meu suor e esforço. Pago todos os meus impostos em dia e nunca, nunca na minha vida, subornei qualquer fiscal.

Porém essas mesmas autoridades públicas resolveram ignorar cidadãos de bem, como eu ou você. Aqueles porque nosso país sobrevive, agonizantemente, devo admitir, mas sobrevive. O descaso para conosco já é endêmico e nos últimos anos tem piorado cada vez mais. Há umas duas décadas, mais ou menos, a situação ficou insustentável. Conheço dezenas, não é um ou outro, mas dezenas de amigos, trabalhadores como eu, que empregam, por suas vezes, centenas de homens nas suas empresas, e que vivem numa total situação de esquizofrenia e mania de perseguição. Tudo por causa dessa escalada da violência.

Tentei evitar a citação direta desse termo porque parece que já está muito batido e perdeu todo o seu real peso. Por isso, alegarei que estamos vivendo em algo que chamo de “barco do medo”. Tentamos navegar nosso caminho em paz, porém somos sempre interceptados por piratas que enlevam nossos bens e aterrorizam nossas famílias. Isolamo-nos, então. E, como os responsáveis pela nossa segurança não tomam nenhum tipo de atitude, achei por bem que eu, cidadão em dia com as minhas obrigações e habitante do cume dessa nossa sociedade, deveria tentar da melhor forma, resolver esse problema.

Acreditava piamente antes de começar esse ofício que não conseguiria resolver em cem por cento dos casos essas atrocidades que nos rodeiam. A minha intenção nem era essa exatamente. Queria criar algum tipo de resistência em nosso gueto, uma espécie de redoma de proteção contra esse invasor que toma as nossas moradias e impede de fazermos aquilo que queremos na hora desejada. Todavia, os resultados vêm se mostrando mais prósperos que o esperado.

Vivemos isolados do mundo não por vontade, mas por necessidade. Vivemos numa espécie de roleta-russa onde, mais cedo ou tarde, seremos os sorteados. Vivemos rodeados por essa doença, por esse câncer que come a nossa sociedade e agora chegou ao núcleo, ao centro, à parte mais nobre. Ficarmos de braços cruzados seria como assinar um atestado de óbito de toda a civilização da maneira como nós a conhecemos. Tudo a nossa volta se transformaria numa guerrilha, de maneira ainda mais aberta do que hoje. Queria, com o que eu faço, mostrar que nós não estamos sozinhos, desprotegidos, que não será fácil para eles virem aqui e tirar de uma vez só tudo o que nós tivemos tanto trabalho para construir. E acho que estamos conseguindo.

No início era só eu. Pode parecer estranho que eu tenha tomado à frente da execução da parte braçal desse projeto. Porém, não queria contar com mais ninguém naquele momento. Acreditava que quanto menos pessoas soubessem do que acontecia, menor era a possibilidade de termos problemas. Por isso, nem para a minha mulher contei. Devo admitir, também, que o contato com o perigo era algo que me fascinava e foi ponto decisivo nessa atitude de atuar sozinho. Hoje, somos uma rede, pequena tenho certeza, de doze pessoas, sendo dez homens e duas mulheres que funciona eficientemente, de maneira constante e sem periodicidade. Todos pertencem às melhores famílias, com tradições, todos como eu e você, habitantes do topo.

Porém, mesmo respeitando o nosso código de sigilo, era inevitável que, com o tempo, soubessem das nossas atividades. O que mais me impressionou, entretanto, nesses anos de ações, foi exatamente a conivência da polícia para com nosso grupo. Nunca houve nenhuma investigação na nossa vizinhança, apesar de alguns pobres coitados que sempre berram pelos direitos dos inimigos. Esperneiam como se nós não tivéssemos defendendo os direitos deles também. Os casos são arquivados, ou simplesmente esquecidos. Nenhum dos nossos foi importunado nas suas missões e – o melhor – mantemos um relacionamento altamente produtivo com eles. O que, aliás, mostra que existe ainda o bom senso dentro daquela corporação.

Até o governador tem se aproveitado de nossos trabalhos. Vocês devem ter percebido que é constante a presença dele nos meios de comunicação para afirmar que nos nossos bairros, o índice de criminalidade é tão baixo quanto em países desenvolvidos. Obviamente nunca contou o real motivo disso e o relaciona a uma suspeita eficiência da polícia. Ótimo para nós.

Outro fator de interesse é o insignificante número de reclamações por desaparecimento, ou coisa parecida, nos órgãos competentes. Eles simplesmente somem e ninguém dá falta. O que nos leva a crer que o nosso trabalho é aceito e era necessário para a grande maioria dos nossos vizinhos e conta com o baixíssimo número de insatisfeitos. Porém, qual serviço que agrada a todos?

Hoje já criamos uma certa respeitabilidade. Os nossos bairros não sofrem tanto quanto antigamente, é perceptível. Há ainda casos isolados e imprevisíveis que fogem de nossa alçada, como os loucos de dentro da nossa própria vizinhança que praticam atos delinqüentes. Mas estamos estudando formas de resolver esses problemas também.

Mantemos, assim, operações de rotina e é cada vez mais raro termos que agir prontamente. Tentamos conservar o que é nosso para que nossos filhos e netos consigam desfrutar de toda a maravilha dos nossos bairros tranqüilamente, exatamente como era antigamente.

Eles estão aprendendo que devem viver bem longe daqui, nas suas casas, que se vierem para cá, não terão a moleza que existia antes. Hoje em dia, eles já sabem que há uma instituição muito mais organizada que eles e que existe apenas para proteger os nossos iguais. O recado está dado.