sexta-feira, 28 de maio de 2004

O mundo tem salvação:

"Após um doce respiro com "Stories from the City, Stories from the Sea", o excelente disco anterior (de 2000), em que flertava bastante com o pop -ao mesmo tempo com candura e com sensualidade-, ela volta com "Uh Huh Her", disco que ganha lançamento internacional (não no Brasil) na próxima segunda."

"ela", no caso é somente Miss Polly Jean Harvey.

matéria completa no endereço:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2805200409.htm
Sugar Water, da dupla japa-americana Cibo Matto

Só isso já bastaria para o francês Michel Gondry aparecer nas antologias dos maiores (como chamá-lo? produtor de audio-visual?) artistas de nosso tempo.

O clipe da dupla japonesa radicada em Nova Iorque é, simplesmente, um dos melhores que vi na minha curta existência (eu iria arriscar colocar o melhor, mas eu posso me arrepender disso no futuro. Mas, peralá, para que serve os riscos senão se arrepender depois?), não, é o melhor até hoje feito, na minha humilde opinião.

A idéia, simplista é de execução nem tão simples assim. Ele grava - com duas câmeras, parece - o duo em situações cotidianas, e apresenta, em metades da tela uma com o ritmo normal, início, meio e fim, e a outra exatamente ao contrário. Até aí, tudo normal, dirão alguns. Já vi clipes parecidos como o do Coldplay, por exemplo; O incrível é que elas quase dialogam, e executam quase as mesmas ações nas duas ordens. Ou seja, enquanto uma acorda, a outra faz o mesmo, fingem tomar banho ao mesmo tempo, e assim vai. Até aqui parece um clipe muito bom, o que o coloca na posição de primeiro lugar é que, em certo momento, a menina que está na ordem inversa, cruza com a que está na ordem comum e elas trocam de lado. Explicando, quem estava ao contrário, agora está certo, e vice-versa. Óbvio. Então, percebemos que o clipe inteiro é completamente simétrico, que o ápice, onde elas trocam de lado, ocorre na exata metade das duas narrativas que são paralelas e as mesmas.

É um ótimo prato para teorias - muitas com caráter conspiratório - mas hoje eu não estou com saco. Ele, o clipe, serve apenas como recurso estético e por isso já é o melhor e ponto final.

ps. Tinha visto esse clipe há muito tempo atrás num especial da mtv, no AMP, e não tinha entendido quase nada, mas já sabia que era um clipe fora da normalidade. hoje, o revi numa coletânea denominada "The work of Michel Gondry", em casa, no meu computador, sendo projetado na minha parede. Eu adoro a internet e a tecnologia.

quinta-feira, 27 de maio de 2004

Massive Attack

O show do dito-cujo fez com que as minhas perceções sensorias se modificassem, sem que, para isso, fosse necessário qualquer tipo de enebriante. A primeira lembrança que me vem na cabeça é de unhas vermelhas que pertenciam a uma mão feminina que acariciava as costas de outra menina. Isso foi assim que abriram as cortinas. O vermelho era tão intenso que ofuscava qualquer outra coisa ao redor. Lembro que antes, logo antes, alguns centésimos antes, fiquei impressionado com os cinco pedestais de microfone que estava no palco. Estava apreensivo porque haviam me dito que no show anterior deles aqui no Brasil, algumas de suas músicas tinham sido interpretadas por outra pessoa que não o cantor do cd (ou pelo menos uma voz que fosse correspondente). E se vc é uma das pessoas que já ouviram uma música sequer do Massive Attack, vc sabe que Unfinished Simpathy (o hit), cantada por um homem branco não rola (aliás, essa foi a penúltima música do bis e o show já estava completamente ganho. Todo mundo pulava ao menor som do baixo, e nessa, com a voz absurdamente forte de uma negona à Shara Nelson, foi covardia).

Aliás, sobre essa primeira apresentação do M.A. em terras brasileiras, vc pode pesquisar, as críticas foram monocórdicas. A banda de Bristol teve a infelicidade de tocar logo após de uma das apresentações históricas do Kraftwerk. Ou seja, todo mundo estava cansado, com a expectativa altíssima e sem muita paciência. Lúcio Ribeiro escreveu que nem se o Beatles ressucitassem e tocassem após a banda alemã teria tido algum tipo de resultado mais animador.

Agora, antes do show principal, escalaram um dupla de djs que tinham como único intuito aquecer o povo até que o M.A. entrasse palco adentro. (pausa para dizer que toca agora no computador Future Proof, a última música do bis, público em polvorosa, pulando ao som do grave que ensurdece no final.) Os dois, honestamente, fizeram um set espelhado nos medalhões que viriam a tocar depois. Não que utilizassem as próprias músicas deles, mas o clima era o mesmo. Bem legal.

O início do show foi chocho, para usar um figura ou um vício de linguagem. Morno pacas. tocaram as mais calmas do Blue Lines e Mezzanine (todo o show foi calcado nesses dois álbuns, mais "populares"), e outras de Protection e A 100th window. E estava tão vazio que havia duas pessoas na minhas frente, sendo que eu não tinha feito nenhum esforço para estar onde estava. Apenas andei calmamente até lá e em nenhum momento recebi um cotovelaço ou me empurraram.

Teardrop, música mais conhecida do Mezzanine, foi a responsável por levantar o povo. Interpretada por um loirinha do estilo "frágil", com voz doce, cabelo curto e rosto extremamente delicado, seu visual chamou bastante a atenção, mas não pode competir com a música que é sensacional. Daí para frente, foi só coisa boa.

Acredito que o problema inicial foi ocasionado pelo som que estava baixo. Reparei em dois momentos a lourinha e o baixista - um negão meio barrigudo que tocou absurdos - pedindo para aumentar o volume do baixo.

O outro figura que dividia o microfone com "3D" e "Daddy G" (a formação atual do M.A.) seria um típico pai-preto velho modernex, se ele morasse no Brasil e se isso fosse possível. Com dread-locks, um prendendor de cabelo para a franja e a barba branca grande, cantou alguns dos clássicos como "Man next door" do quarto álbum da banda. Mas o melhor era a sua dancinha, acompanhando o ritmo. Beirava o ridículo, mas era engraçado.

Eles nem tentaram tocar as músicas que Sinead O'Connor gravou no a 100th window. Não acho que seria fácil achar uma voz que lembrasse a da irlandesa. Decisão sábia, inclusive. Preferiram não descaracterizar a música e, talvez, não precisassem delas. O show foi de bater palmas a cada música, grave, bem tocado, alto. As vozes pareciam tanto com o cd que me perguntei em alguns momentos se não era play-back. Mas isso tudo, do meio para o final, deixemos claro.

E a melhor música, cantada pela Shara Nelson cover, foi, sem sombra de dúvida, Safe From Harm. A mulher duelando com 3D, dançante, animada, baixo poderoso.

O show me lembrou algo que nunca conheci: uma daquelas bandas de soul / funk da década de 70, com vários sujeitos nos sopros, uns três crooners e muita música que mexe, sacode. Essa definição foi dada ao show do Roni Size no último free jazz, por um amigo meu DJ, mas acho que é melhor aplicada nesse caso. Guitarras suingadas, baixo pesado, vários vocalistas. Essa é a nossa black music atual. Claro, a parte boa dela.

segunda-feira, 24 de maio de 2004

(email enviado a uma amiga)

poisé,

minha mãe dizia sempre para não programar nada no futuro porque a vida tinha tantos solavancos e tantas repetinas mudanças que seria perda de tempo ficar planificando o porvir.

como te disse fui pra Brasília. E foi 90% bom e 10% ruim; o que é uma boa média em qualquer avaliação. É bom ficar com ela, mesmo que para isso, de vez em quando, tenha que incrementar minha paciência. Mas, para que é que estamos aqui, vivos? não é para sermos mais pacientes?

O problema não teve a ver com Brasília. Mas com o clichê da violência do Rio. E podemos dizer que ela me pegou. Ainda no aeroporto de Brasília minha irmã me ligou dizendo que um de meus primos (talvez o que eu tinha mais contato - o que não quer dizer quase nada, já que eu não conheço metade deles e os que eu converso, não encontro há mais de dois anos, no barato) fora assassinado. Isso, balas, tiros, essas coisas.

Parece impressionante, mas é algo diferente. Esse meu primo era um porra-louca (para reviver uma expressão já passada) e arrumava confusão (por causas éticas, como sempre ouvi dele, mesmo que não usasse essa palavra nunca) em cada bar que freqüentava. E olha que ele gostava mesmo de beber. então, não é surpreendente, ou coisa do gênero. apenas triste. muito mesmo.

esse é o terceiro sujeito de minha família (houve um tio e um primo) que morre da mesma maneira. Todos tinham um comportamento fora da normalidade encarada pela classe-média. Logo, estariam mais aptos a morrer por causas violentas. Certo?

nem sei mais o que dizer.

sobre a viagem para o sul, é exatamente tudo o que eu quero fazer agora. (antes vou dar uma passadinha ali, em são paulo para ver o Massive Attack)

bjs

r.

sexta-feira, 14 de maio de 2004

No País das Últimas Coisas

É o título de um dos primeiros livros de Paul Auster, o escritor por trás e por dentro da Trilogia de Nova Iorque, e detetive nas horas vagas. Li-o porque o achei na tal ferinha da Cinelândia (aferir abaixo) por um real (R$ 1,00). Isso. Como o livro é fininho, e é o Mr. Auster que escreve, acaba-se em poucas horas.

É bem mais fraquinho e modesto que sua obra mais conhecida, e até do que o O.K. "Livro das Ilusões", seu último. Porém, seu mérito vem do fato dele narrar a saga de uma menina dentro de uma cidade pós-apocalíptica (algo como Nova Iorque da década de 80) e começamos a ficar com inveja dela, por vivemor na atualidade no Rio de Janeiro. Apesar dele tentar dar um traço sinistro para o que conta, as histórias são para lá de leve, ao compararmos com os noticiários dos jornais mais tranqüilos no Brasil. E então, mais uma vez, ficamos preocupados.

Exemplos disso, motivos de surpresa para mim e sobre o qual queria refletir um pouco mais escrevendo, foram os relatos sobre um assunto que eu pensei - na minha total inocência e com doses cavalares de preconceito - não pertencerem ao meu circulo social. Desde que aportei aqui novamente, ouvi umas quatro vezes histórias de violência doméstica. Pais que bateram nas filhas, namorados que espancaram suas respectivas, sujeitos que se sentiram traídos por suas sujeitas e sentaram-lhe a mão.

Durante toda a minha curta existência, antes de ir para lá arriba, nunca ouvira tamanhos impropérios. Suspeitava que todos a minha volta eram seres razoavelmente civilizados que dispensavam a violência no trato das coisas domésticas. Qual foi a minha surpresa quando descobri que não, esse fato não respeita qualquer convenção social - para usar uma expressão batida - ou endereço mais ou menos caro.

E, o pior para mim, em todos os casos, os motivos alegados foram sempre o mesmo: ciúme.

Peralá, onde é que nós estamos? Como foi chegar a esse ponto e as mulheres ainda não fizeram nada? Como é que andamos na companhia dessas pessoas que exercem esse tipo de violência, e não fazemos nada?

Fiquei me perguntando se era possível tamanha insegurança do homem perante a tal indepedência da mulher. E se isso, em algum momento da história da humanidade, era motivo para usar da força. Como se, querendo voltar atrás, onde era o senhor do relacionamento e razão de existir de sua companheira, o homem quisesse usar um recurso, digitemos, "arcaico".

Procurei uma lógica. Seria algo assim, esquematicamente: a mulher fica independente; o homem fica inseguro; homem revive o passado das cavernas (com o argumento, para ele mesmo, que, sendo mais forte, pode dominar no único aspecto que, ainda, é superior à mulher); logo: tacape, tapas, socos...

Não dá. Não é possível. Não consigo transmitir a minha surpresa com isso. E a ironia não está ajudando. Por isso é melhor parar. Devo estar (ou ser) um chato. Falando sobre esses assuntos que não interessam a ninguém e que é sempre melhor empurrar para debaixo do tapete. Voltemos a nossa normalidade e finjamos que nada disso aconteceu.

quarta-feira, 12 de maio de 2004

NYT.

Estava tudo pronto para escrever sobre a feirinha de livros que circunda o Rio - agora, exatamente está na Cinelândia -, mas qual foi a minha surpresa com essa história do Lula alcoólatra. E eu nem suspeitava.

: )

Para quem estava em Marte, aconselho uma visita na Folha de sábado para se atualizar. E depois venha acompanhando, pela Folha e pelo Globo até o estágio atual, quando expulsaram o jornalista americano do Brasil.

Tudo parece uma piada absurda. Daquelas que rimos de tão inacreditável, tão surreal. Dá vontade de escrever um roteiro sobre tal atitude, mas parece que ninguém acreditaria. Entra no hall de coisas impensáveis, assim como a galinha atirada na prefeita de São Paulo (e no subseqüente estiloso comentário do Ministro da Justiça afirmando que tal atitude só pode ser comparada a "tacar um veado em um homem"), e no hematoma que apareceu no rosto de Bush depois de ter se "engasgado" com um pretzel. Sei.

Dessas coisas que fazem ter vergonha de continuar a viver entre humanos. Parece melhor ir para dentro do mato.

Mas não cortemos os pulsos. Por enquanto, ao menos.

O melhor conselho é realmente encarar tudo como piada, como se eles estivessem chamando o Lula de pinguço para sacaneá-lo, e nós expulsámos o americano para demonstrar como somos poderosos e ficamos ofendidos com o acontecido. Tá vendo, tio Sam? A gente bate o pé e faz beicinho.

Valha-me deus. Onde é que vamos parar?

segunda-feira, 10 de maio de 2004

Pixies

CPF

Por onde começar?, é a minha única pergunta. Por Curitiba, uma cidade extremamente organizada, a ponto de vc pensar que não está no Brasil? Pelo ônibus da ida, onde metade dos ocupantes era de loucos – como eu – que viajava com o único objetivo de ver os shows do CPF? Pela Pedreira Paulo Leminski, um dos lugares mais bacanas para se fazer show a céu aberto que eu conheço, que me lembrou até aquele lugar onde foi gravado o Under a Red Sky do U2? Pelas grades que tentaram separar o público no primeiro dia, numa espécie de lado A e lado B (sem nenhuma lógica, pude comprovar)? Ou pelos shows? Ah, meu amigo, os shows, ah, O SHOW. Façamos, então, sem ordem. Por notas, saca?

Ônibus da ida.
Até imaginei que isso pudesse acontecer, mas não levei fé até descer a rampa da Novo Rio. Mais da metade dos passageiros do ônibus que me levou para Curitiba, era de fãs de rock que queriam ir ao CPF. Aliás, um fenômeno que se repetiu. Em qualquer lugar que andássemos por Curitiba, conseguíamos avistar um grupo de pessoas estranhas, com cabelos descoloridos, roupas igualmente estranhas, correntes prendendo suas carteiras, piercings no nariz, sobrancelha e mais detalhes que identificam essa (puta-que-pariu, odeio essas expressões) tribo.

Os restaurantes todos foram pegos de surpresa e suas desculpas pela demora no atendimento sempre eram as mesmas (“não estávamos esperando...”). O motorista de táxi que me levou ao hotel ficou surpreso quando disse que muita gente viria para ver um show de uma banda que tinha acabado há mais de uma década. Imagine o que ele pensou: “cambada de desocupado, fazem nada da vida e ainda vem para cá para um show qualquer”. Talvez essa a grande diferença, não era um show qualquer.

Shows.
Por motivos óbvios, não falarei sobre o show dos Pixies agora. Mas dos coadjuvantes.

Não me perguntem todas as bandas que tocaram no CPF que só saberei apontar cinco:
1) Sonic Jr. > uma mistura de eletrônica com mangue-beat, groove e, de vez em quando, até guitarras. Bem legal;
2) Mombojó > que na melhor definição que li, toca um “pós-mangue-beat”, também acima da média;
3) Frank Jorge + Flu + Wander Wildner > talvez o segundo melhor show do CPF. Por serem do Sul, estavam com a platéia na mão e souberam muito bem se aproveitar disso. Empolgado e empolgante até a medula;
4) Hells on Whells > completamente desconhecida por mim, da Suécia que tem umas músicas beeeem legais. Guitarras altas, destorcidas, baixista feminina, backing vocal doce, vocalista e guitarrista elétrico, me ganhou.
5) Teenage Funclub > eu sei, a banda é bonitinha, tem músicas fofas, é para embalar um amor, mas... muito parado. Parece que não é rock, parece que em todas as músicas vc deve acender seu isqueiro e ficar balançando a mão. Para vc ter uma noção, o momento mais eletrizante, conto na próxima nota:

Lado A, Lado B.
Quando entrei na pedreira, nem reparei, mas havia uma grade imensa, de um lado a outro do ambiente, que separava a platéia em duas. O motivo, não me perguntem, o argumento, pelo menos, é horrível. Quem comprou na primeira leva, ficava na parte “a”, mais próxima ao palco, quem comprou depois, na parte “b”. Por quê? Não sei. E, mesmo essa divisão era atrapalhada: comprei dois ingressos na Internet, e um era “a” e o outro “b”. Quem saberá explicar?

Pois bem, ficamos no lado “b”, todos atrás da grade, observando todos os felizes “a” na nossa frente e uma imensidão vazia, porque estava vazio lá na frente. Até o show do Sonic Jr., o antepenúltimo do dia, ninguém prestou muita atenção no palco, e por isso, essa divisão ficou intacta. Quando começou o Hells, as pessoas começaram a empurrar a grade e ela caiu uma vez. Vieram dois, somente dois, seguranças e assim o público primo-pobre respeitou o sujeito. Os suecos acabaram e começou o Teenage. Grande parte do público se empolga (eu não. Mas não era ruim, somente parado demais). Alguns, em vários pontos diferentes, começam a empurrar o alambrado até que um, longe de mim, consegue derrubá-lo novamente. Os seguranças vão na direção dele e contém a passagem do público. Porém, com a aglomeração desses em apenas um dos espaço, os outros buracos aparecem, e os mais apressados – e mártires – foram na frente e derrubaram outra parte, e mais outra e os seguranças correndo atrás deles, e mais outra cai, e porrada na nuca e daqui a pouco não tinha mais grade. Calmamente, passei por cima dos ferros e pude cumprimentar um dos seguranças que estava parado, atônito, sem saber o que fazer. Então, o show já era outro.

No segundo dia, não repetiram essa burrice.

Organização
Mas tirando esse detalhe acima, o CPF repetiu o exemplo de sua cidade: a organização foi praticamente irretocável. Deve ter havido quinze milhões de pepinos que em nenhum momento eu sonhei em saber. Tudo perfeito, no tempo, dentro do estabelecido. Começando pela escolha – e por ter conseguido a mudança – da Pedreira, que é sensacional. Grande e bonita, com espaço para armar várias tendas que dividiam o público nos intervalos e nas atrações menores. Há tempos – talvez nunca – que eu não via um evento dessa proporção e não tendo nada que eu possa realmente falar mal. Bem legal, mesmo.

A cidade de Curitiba, falando nisso, é tão certinha, que me acostumei a dizer (em outras palavras, fui repetitivo) que um dos pontos turísticos era o tubo dos ônibus, ou o “bi-articulado”, ou o penta-articulado, sei lá, tinha tantos ônibus com várias articulações que eu nem sei por onde começar. Se vc quiser conhecer os pontos turísticos da cidade – são vários, como pude perceber – basta pegar um ônibus que circunavega toda a região. Se quiser fazer by yourself, se consegue rapidamente o mapa da cidade detalhado.

Enfim, esses curitibanos são bons no que fazem.

Estrangeiros
Não é exagero dizer que mais da metade das pessoas que estavam nos shows eram de gente de fora de Curitiba. Era até engraçado andar pelas ruas a esmo, sempre encontrávamos alguém com as bordas das calças sujas de lama do dia anterior – e com outros detalhes que o caracterizavam como fã de rock.

No domingo, almoçamos num restaurante alemão, numa região (que eu não sei o nome, claro, mas) que me lembrou – de longe – uma Lapa, só que limpa e organizada, se é que isso é ainda possível. Tinha uns casarões antigos, com antiquários, galerias de arte, pequenos teatros, restaurantes típicos, essas coisas. Paramos no dito cujo só porque nos pareceu legal, divertido, diferente. E, descobrimos que quase todas as pessoas do CPF pensaram na mesma coisa. Encontramos com vários conhecidos e pudemos reconhecer todo mundo lá dentro, quase.

PIXIES

Pois é. Me sinto um privilegiado agora. Ignorei o quão caro foi viajar, o quão estou sem dinheiro, talvez nem conseguindo ir aos outros shows que ocorrerão aqui e em São Paulo, eu vi Frank Black Francis (a.k.a. Charles Thompson), Kim Deal, Joey Santiago e David Lovering. Juntos, no mesmo palco, cantando músicas que pareciam sair de um cd, tamanha era a semelhança entre as versões ao vivo e de estúdio, só que a que assistíamos era com muito mais peso e vontade. Até os gritos de Mr. Black são iguais aos do cd.

Foram 80 minutos de transe, em que me peguei por diversos momentos, sorrindo que nem um bobo, que nem um retardado mental. Todas as músicas estavam lá. Todas. De Here comes your man, para a seguinte Where is my mind? O público inteiro cantando em seqüência, em coro. O público pulando, retrocedendo, gritando...

Fiquei durante o último dia pensando num adjetivo para o show e não consegui algo que se aproximasse. Foi inesquecível, mas só isso é pouco. Foi mais que impressionante, mais que intocável, inabalável, indizível, inspirado, único, atordoante, chapante, louco, suave, fofo, imprevisível, impulsivo. Foi sensacional. Incrível.

Lembro de Frank Black cantando (no bis) Debaaaaser, e Kim, atrás, fazendo o backing, calmo, tranqüilo. De repente, Santiago explode. Quase como uma síntese.

Todos eles conversaram entre si, pareciam estar se divertindo. Frank foi logo na segunda música conversar com sua baixista e eu pude imaginar o diálogo: “E não é que vc tinha razão?”.

Foi mágico.

"wave of mutilation / wave of mutilation / wa-a-ave"



quinta-feira, 6 de maio de 2004

O do meu lado.

Um amigo meu me ligou perguntando se eu teria vontade de ir ao Chivas Jazz Festival que ocorre agora, porque ele trabalha numa empresa que patrocina o evento e sobrou um ingresso grátis. A minha única pergunta foi: onde fica a Marina da Glória?

O meu amigo só disse que talvez o maior problema fosse agüentar o cara que estaria comigo. Eu disse que com o showzinho de graça, não havia nenhum problema para aturar até esses tipos de mala.

Marcamos um horário e cheguei pontualmente, sorte porque a primeira apresentação, de um coroa chamado Bud Shank, só se atrasou uns dez minutos, o tempo de dar um mijada. Mas, o show ficou por conta do outro sujeito que compunha a mesa comigo. Ao sentar, ele já estava lá, e pude perceber que o uísque fazia efeito. Seus olhos estavam vermelhos e distantes e ele não conseguia ficar parado na minúscula cadeira. Logo reclamou disso: “É um absurdo ter essa cadeira nesse tipo de festival”, eu só pude sorrir e concordar com ele. Realmente a cadeira não era das mais confortáveis, mas, como eu estava com um sentimento de intruso, não tinha a intenção de falar mal de nada.

Começa a apresentação do quarteto, todos os sujeitos parecendo virtuoses (principalmente para mim, um leigo nessa arte, só conhecendo um pouquinho de nada de John Coltrane, Charlie Parker, Miles Davis, etc.), o Bud, um velho de setenta e sete anos, barrigudo, barba grande, óculos que caíam e o sujeito do meu lado comenta como para ele mesmo, ignorando a minha já pouco notada presença: “tinha que ser branco, repara, repara como ele não tem suingue”. Parei de olhar para o palco e o encarei meio intrigado, tentando descobrir quem ele era ou o que ele fazia ali, sujeito gordo, rosto cheio de marcas, pescoço roliço, pele rósea de álcool, mão agarrada ao copo de plástico cheio do líquido cor de cobre. O incrível era que, apesar de parecer um dinossauro de tão pesado, ele não parava de balançar a perna no ritmo da bateria e o corpo dava seguidas síncopes com as mudanças do ritmo, tão característica do jazz.

Fim de mais uma música, ele se levanta e grita para o sujeito que vende uísque para se aproximar. Todo mundo num raio de vinte metros se vira na minha direção, eu querendo entrar debaixo da mesa, e repara no sujeito que, obviamente, ignorou completamente a todos.

Logo em seguida, entra por uma fresta da tenda um pequeno morcego e começa a dar vôos rasantes que atrapalham um pouco a concentração de toda a platéia. O meu companheiro fica indignado rapidamente, começa a socar a mesa e sussurra, num tom quase inaudível: “vou tacar esse copo nesse bicho”, e se levanta de supetão numa posição de lançador de baseball, mas pára. Por sorte, ou azar sei lá, o animalzinho se afastara de onde estávamos e logo depois saiu, fazendo com que ele também desistisse.

Isso foi exatamente no momento em que Bud anuncia que tocará uma música em homenagem ao Brasil, de um velho amigo e ídolo dele, Antônio Carlos Jobim. Começa a música e percebo que é uma bem underground de Tom. E nessa versão fica ainda mais irreconhecível. Porém a cena mais dantesca é de Bud tentando sambar, ou pelo menos balançar o corpo nesse ritmo menos duro. O cara ao meu lado quase se desespera, bate no rosto, vocifera baixinho, o chama de ridículo, de gringo idiota e vira o uísque num gole só.

Termina a música e o saxofonista chama João Donato, dizendo que tinha trabalhando com o brasileiro na década de 60, e que tinha sido uma de suas melhores experiências. A cena surreal fica por conta do homem ao meu lado que se vira para o lado e cospe uma gosma no chão, no meio das cadeiras e mesas, na frente de um casal de senhores já bem coroas. João Donato dá um beijo em Shank e começam a fazer algo com muito mais balanço, é perceptível. O do meu lado estala dedos acompanhando-os até que passa outro carro de uísque e ele o chama, mesmo no meio da música. Eu ainda estava na minha primeira dose, completamente aguada, sem nenhum gelo de sobra, e ele já tinha derrubado umas quatro.

Tocam só uma música juntos e João sai do palco meio cambaleante, dançando com o pianista original da banda, Bill Mays. O do meu lado comenta alto, como se quisesse compartilhar seu pensamento com os demais, “É veado, tem que ser. Pederasta”, e todo mundo na minha frente se volta franzindo a testa e com expressões nada amigáveis. Ele continua superior, impassível a repreensões.

Mais outras poucas músicas e logo acaba o show de Bud Shank. Antes mesmo do bis, ele sai da mesa apressado, não sem antes cuspir novamente a gosma branca no chão, dessa vez perto da mesa da frente.

A próxima atração era uma banda que, dizia o folheto, tocava hard bop e cujo líder, o baterista Lous Hayes, havia tocado com vários medalhões, entre eles, Coltrane. Realmente o começo – sem o meu companheiro – foi arrasador, os caras da Cannonball Addelery Legacy Band, a banda que o acompanha, são mais “pesados” que o quarteto de Shank, dá para perceber de cara. Talvez daí que venha o “hard” do estilo.

Com um trompetista (Jeremy Pelt) de camisa para dentro da calça, meio arrumadinho, todo engomado, em contraposição ao saxofonista-alto (Vincent Herring) com o estilo bem mais largado, eu cometi o sacrilégio de lembrar de Dizzie Gillespie e Charlie Parker. Os dois duelavam, mas também tinham uma afinidade impressionante.

Nisso volta o sujeito com outro copo na mão. Esbarrou em todas as mesas antes de chegar na nossa, sempre murmurando algo que lembrava um pedido de desculpa para os que ele incomodava, senta em sua cadeira e pude perceber a lapela de sua camisa suja com a mesma gosma que estava no chão. Ele parecia não reparar nisso porque seus olhos acompanhavam a banda de Hayes com muito mais vontade que a anterior. “Isso sim é jazz, tem que ser negão. Não dá, branco não dá”.

Passava de música para música e nos intervalos, ele gritava: “toca hard bop, eu vim aqui para ouvir hard bop”, e eu querendo sumir. Em um momento, um casal veio cumprimentar a mesa que estava em nossa frente e ele não titubeou, arremessou um copo vazio nos sujeitos. Quando eles se voltaram para tirar algum tipo de satisfação, o sujeito os encara, “que foi, sai da frente, eu to aqui para ver o show também, sai da frente”. O casal ainda tentou argumentar, mas a mulher pediu para deixar, já que o meu companheiro estava nitidamente fora-de-si.

Na quarta música do grupo de Haynes, o cara que dividia a mesa comigo começa a se desinteressar pela música e começa a olhar para os lados. Vê uma mulher bonita, loura, um pouco mais nova que ele, e a chama, “Ei, ei, você, você... é. Você quer um uísque?”, a mulher não responde, ele insiste, ela o ignora, o marido volta do banheiro e ele desiste. Outra, a de trás, a que tinha presenciado o primeiro vômito dele, repara em todo o movimento dele, no que ele se vira e encara ela de frente. “Você é a mulher mais linda daqui”, diz ele. Eu já tinha me afastado o que eu podia dele, mas mesmo assim fiquei constrangido. A mulher boquiabriu-se e o marido apareceu para perguntar se havia algum tipo de problema ali. Ele não se deu por satisfeito e disse que aquela mulher era a mais linda do lugar, o marido parecia um pouco menos paciente e perguntou qual era o problema dele, se ele não se importava de virar para frente e cuidar de assistir ao show.

Ele ainda deu umas olhadelas para os lados, mas logo desistiu, percebendo que o ambiente esvaziara, e não havia mulheres próximas a nós as quais ele poderia se dirigir. Então, ele começou a puxar papo comigo. “Você ta gostando?”, “to. Bem, eu não entendo muito, mas é bem animado. Essa banda agora...”, e ele me interrompeu e começou a falar muito alto, não mais comigo, mas com todo mundo a nossa volta, “Esses caras são uns merdas. Vem aqui no Rio e pensam que podem tocar alguma coisa. Eu é que toco, seus putos, eu toco pa’caralho. Vocês têm que ver eu tocando. Eu toco pa’caralho. E sabe o que eu toco? Hein, sabem o que eu toco? Eu toco punheta” e desandou a rir. “Eu vou levantar aqui, vou abrir a minha braguilha e vou tocar uma para vocês”. O marido da senhora logo atrás da gente se emputeceu e pediu rispidamente para que ele sentasse, para que todo mundo visse o show. “Ah, então vocês não querem ver eu tocando? Pagam uma grana para vir aqui e não querem me ver tocando? Eu vou é embora”. “Isso, vai mesmo”, respondeu o sujeito aqui atrás. Ele, o meu companheiro, ainda reclamou alguma coisa, mas saiu, antes do show terminar novamente, esbarrando em todas as mesas e cadeiras que podia e, dessa vez, sem tentar se desculpar.

Para o final, a banda de Haynes não apresentou outra surpresa, mas, na verdade, eu já não estava muito interessado neles. Estava achando aquilo tudo tão surreal que se eu contasse para alguém, ninguém iria acreditar. Fiquei tão bolado que saí, logo depois dele. Também antes do show acabar.

quarta-feira, 5 de maio de 2004

Cidade

Uma ida ao centro da cidade nunca é impune. Mesmo que vc queira ficar só alguns instantes, ou se tem a pretensão de se enfiar naquele mundo chamado Saara, o meu caso hoje.

Não sei porquê, mas estava com uma saudade dessas muvucas. Lá em Nova Iorque, fui em Chinatown e a todo momento me lembrei daqui. Aliás, esse foi um dos motivos que mais gostei de NI. Saber que lá também tem uma vida no submundo. Que lá há sujeira debaixo do tapete. Talvez seja um fenômeno registrado em todos os grandes centros urbanos. Por enquanto, com a minha baixa qualificação no assunto, só posso me contentar na especulação.

O mercado da Chinatown brasileira - sim, porque há infinitamente mais chineses e adjacências que árabes e arredores - pareceu-me muito maior que a sua parente americana. Lá, eu, como todo bom turista precavido, só fui nas ruas principais, sem experimentar nenhum beco, tão tradicionalmente new yorker. Tinha lido que "pick pockets" era uma das modalidades que os pivetes gringos mais se orgulhavam e eu não queria facilitar tanto para eles. Já eram suficientes a minha cara de turista e a máquina fotográfica enrolada na minha mão.

Voltando para o produto nacional. Escutei em sua rádio comunitária que o Saara é o maior mercado a céu aberto do mundo. Não sei não, deve haver algo maior na sua matriz exportadora, na própria China. Entretanto, descobri que é praticamente impossível passear por todas as ruas, reparar em todos os detalhes, entrar em um décimo das lojas (esse se vc for homem). É maior que qualquer shopping que eu conheça. Bota aí o Barra Shopping, ou, sei lá, o Rio Sul. O Saara é maior. E mais barato.

: )

Outro detalhe apreendido da rádio é que todos os jingles, slogans e anúncios são cópias descaradas de algum outro mais conhecido. Tem plágio do "quer pagar quanto", do "não tem preço" e de vários outros. Assim como os produtos originalíssimos do Paraguai e de Taiwan, suas propagandas pedem emprestado algumas idéias de outrem, sem nem mesmo lhe comunicarem.

Eu acho isso ótimo. Tenho certeza que a economia gira melhor assim, sem a presença do Estado, que só aparece para coibir, quando aparece, do que se eles não fizessem nada ou respeitassem todas as regras. Tenho certeza que estariam empacados, engessados, sem saída. Assim, como uma paródia, existem produtos de todas as qualidades e marcas naquela região.

E, talking about repression: outro aspecto que me fez "sentir em casa" lá no "estrangeiro", foi presenciar, e receber inteiramente de graça, um empurrão de um policial nova-iorquino quando este corria atrás de uma banquinha de camelô na principal rua de Chinatown. Fiquei parado, pensando que não era só aqui que a polícia fazia merda; olha, que bom, posso falar mal deles também. Por essas e por outras, Nova Iorque me proporcionou a certeza de que eu poderia morar lá, sem me sentir longe de casa

Porém, qual foi a minha surpresa ao adentrar, já depois do Saara, a rua do Ouvidor, pedaço da Mega Saraiva e esbarrar, quase que casualmente, em quatro brutamontes vestidos com algo que me lembrou muito o uniforme de football americano e com cacetetes e insígnias típicas de nossa polícia. Nós, pareceu-me, ficamos com inveja dos brothers de cima, e resolvemos incrementar. Não é novidade para ninguém as guerrilhas que acontecem com razoável freqüência, ali, perto da Carioca, mas ver os sujeitos assim, deu até um certo medo. Só para terminar esse papo, um dado estatístico de meu amigo Abel: em toda a década de setenta, houve, no máximo, umas setenta matérias nos jornais que circulavam, falando sobre as porradarias camelôs x Estado. No ano passado, foram mais de 300.

E depois disso tudo, pego o ônibus para casa e, ao passar pela Cinelândia, um garoto bem esmirrado adentra pela porta da frente e passa rápido que nem um rato por debaixo da roleta, no que a trocadora grita para o motorista (Marcos) pedindo algum tipo de providência. O menino, esquelético, levanta a camisa para mostrar a barriga magricela e começa o seu discurso para explicar que precisava de dinheiro para o almoço e para dar de comer a sua avó e seus irmãos pequenos que estavam na praça. Mais do mesmo, como podemos perceber. Poucas pessoas se sensibilizam e entregam algumas moedas e ele com aquela cara de sofrimento de realidade ou fingida. Antes que o carro saia da Cinelândia, o garoto pede para saltar, porque tinha que ficar ali, senão iria se perder da avó. O motorista, talvez incentivado pelo pedido da trocadora, arranca com o carro antes que ele possa se aproximar da porta traseira. Mas, antes de atravessar o sinal, várias pessoas começam a pedir que o ônibus pare e assim o moleque possa saltar. O garoto tinha uma voz estranha, não era uma voz pequena compatível com o seu corpo, era algo mais forte, algo com sotaque, não, não era algo só com sotaque, era uma voz que não combinava com aquela cena, que não cabia dentro daquele espirro de gente. O motorista, com o pensamento de aplicar algum tipo de lição, prossegue após a abertura do sinal e se aproxima do Aterro, e quase a totalidade das pessoas gritam para o chofer que ele pare e abra a porta, e o menino diz que vai se perder da mãe (da mãe?, pensei na hora), que não poderá encontrá-la mais, e toda a confusão montada com a trocadora falando baixo para Marcos que deixe o menino livre até que o coletivo pára logo no Passeio. O menino, desesperado pula antes mesmo que o ônibus fique imóvel, enquanto um sujeito em torno dos quarenta sugere que ele espere parar. Todos os passageiros comentam algo logo após sobre a cena e em cinco minutos, todos já haviam esquecido e estavam preparados para outra anormalidade.

Podemos assim perceber que o Brasileiro (se é que haja essa figura meio mestiça) é um sujeito camarada. Mas completamente anestesiado com sua realidade. Posso me incluir dentro desse grupete. Esse tour pela cidade me mostrou que eu não desaprendi a ser carioca.

terça-feira, 4 de maio de 2004

Bicicleta

esse negócio de aprender a andar de bicicleta depois de velho tem das suas. Nem quero dizer o mais do mesmo, como entender como funciona o trânsito numa cidade como o Rio. Mas algo mais, como direi?, poético.

hoje, depois de pedalar e empurrar o camelo ruas adentro de Botafogo e Flamengo, passar alguns vexames, bater com a roda e o pedal nos muros e tocos que impedem o estacionamento, sujar a panturrilha de graxa, machucar o pé e etc etc etc, cheguei a uma área do Rio que eu não conhecia. E no Flamengo, onde já morei. É a praia, onde, descobri, há uma espécie de ciclovia, só que mais larga, própria para pessoas como eu, que sabem tanto andar de bicicleta quanto pilotar um avião super-sônico. O lugar é sensacional, lindo de dar torcicolo nos bicicleteiros. E eu, sem poder me mexer muito, com medo de perder o equilíbrio. Andei de um lado a outro, seguro de mim, e sem atropelar ninguém, ou causar algum tipo de acidente, o meu maior medo. Parei nos dois extremos dessa praia artificial (se não lembram, é aterrada) e fiquei ali alguns segundos só para observar o ambiente. Uns detalhes que me fizeram mais feliz. É só disso que eu preciso. Ainda voltei para a casa pela ciclovia de Botafogo - sem problemas maiores também - e vi toda a enseada se desdobrando e se curvando, através da estrada. Os barquinhos parados, o Pão- de-açúcar, a água calma. Deu orgulho de ter aprendido a bicicletar. E deu orgulho da minha decisão de ter voltado.

Claro que ao voltar para casa, a bicicleta já fazia um barulho estranho. Não me perguntem o problema, mas eu apostaria que é a marcha.
Amadeus

O título talvez seja o nome menos conhecido de Wolfgang Mozart, mas nem por isso menos representativo. O filme de Milos Forman (que revi ontem) tem essa maior qualidade: mostrar os bastidores da vida de um gênio.

Mas deixemos a história se repetir para lá. O pensamento de que o cara para ser fora-de-série deve ser um impulsivo, já passou por aqui há tempos. Vários outros comprovaram o contrário: que através do trabalho também se chega à perfeição. Eu não quero falar sobre isso.

A minha idéia fica presa num único detalhe do filme. Quem não o viu, que me desculpe, porque é examente no final. Salieri vai ajudar Mozart a escrever seu próprio réquiem e naquele momento ele consegue entender - não absorver, mas de ter noção - como funcionava o processador musical do mais conhecido autor de Salzburg. Ele se torna uma espécie de cúmplice. Tinha chegado ali porque existiu grande parte de sua vida sabendo que nunca seria o melhor, porque tinha um fora-de-série ao seu lado, invejando aquela situação de viver através e pela música, independente de qualquer outro aspecto. Tentando fazer de tudo para acabar, ou pelo menos abafar, a carreira do austríaco. E chega no seu último suspiro e se torna uma espécie de assessório indispensável.

A partir dali ele não quer mais que Mozart morra, ele quer se transformar em seu amigo, confidente, muleta, o que for possível ou necessário. Mas não dá mais.

Salieri diz que ficou 32 anos remoendo a morte do companheiro. Sentindo uma culpa de ter matado um homem que vai ser lembrado para todo sempre como um dos mais importantes do mundo, independente do ramo de conhecimento. A inveja depreciativa e destrutiva se transformou numa mágoa, culpa. Todos sentimenos nada saudáveis.

domingo, 2 de maio de 2004

Um adendo:

Eu acho que sou uma pessoa de introduções. Algo que, tenho certeza, dificultaria minha vida no rol dos jornalistas, os "diretos". Mas, relendo tudo o que eu tinha escrito aí embaixo, percebi o quanto falcatrua fui, principalmente se tratando de uma pseudo-resenha de um livro de resenhas, ou pelo menos de teses sobre literatura. Não escrevo quase nada de concreto, apenas passeio por cima de um tema, como se flutuasse acima de tudo, superficial pacas. Uso as palavras chavões que caracterizam a análise de uma, ãh, obra-de-arte e me dou como satisfeito. Talvez seja isso mesmo que (eu) queira dizer: nada sobre nada. Só como exemplo, pensei em começar a escrever sobre o livro, já que o terminei, e estou aqui, introduzindo um assunto que não sai do lugar sozinho.

Ao adendo, pois.

Eu queria só acrescentar, agora, findo o livro, que o melhor dele fica para o final. O tal Ricardo Piglia escreve dois textinhos curtos e os intitula de "teses sobre o conto" e "novas teses sobre o conto". Utiliza uns tais de Hemingway, Kafka e Borges como exemplos, a todo momento. A primeira tese é exemplar: um conto sempre conta duas histórias (uma nítida, e uma secreta). E a segunda, complementar: a história secreta é a chave da forma do conto e de suas variantes.

A idéia de Piglia é que o conto por ser tão breve, se resumir a poucos aspectos de um ação ou de um acontecimento, foca no âmago da trama, sempre desfechando como surpresa, pois só ao final ele apresentaria a segunda história, a secreta, que é tanto escondida.

Ele diz que o conto clássico tem um ótimo exemplo com Poe, e é fácil visualizar o que ele quer dizer com "duas histórias" dessa forma. O leitor crê no que o autor escreve como se fosse a única realidade possível, mas então, se surpreende quando descobre a verdade, encoberta, mas que sempre existiu.

Piglia escreve que o conto moderno - de Joyce no Dublinenses, seu exemplo - muitas vezes apresenta essa segunda história, sem uma surpresa ao final, e de maneira ainda mais entranhada, quase desaparecida. Mas ela está ali ainda.

O que mais me chamou a atenção foi, obviamente, uma obviedade que eu nunca tinha posicionado meus olhos. Segundo Piglia, o que faz a diferença entre os autores é somente a forma de encarar essas mesmas duas histórias implícitas e de como contá-las.

Logo de cara, ele cita uma anedota escrita por Tchekhov ("Um homem em Montecarlo vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, suicida-se") e sugere as maneiras como aqueles lá de cima (Kafka, Borges etc) escreveriam essa(s) mesma(s) história(s) (Ganhar muito dinheiro e logo depois suicidar-se). É interessantíssimo perceber a desconstrução, quase como em uma homenagem aos autores, desses estilos. Percebemos que depois da grande invenção, da criação, é possível fazer uma cópia, sem muita dificuldade.

De todas as formas, assustadores. O livro e essa idéia.
Argentinos

Acho que a melhor hora para falar sobre um livro é quando ainda estamos no meio dele, empolgados, desejosos de saber o final - mesmo que a tal obra seja de ensaios teóricos. Aliás, esse é uma das vantagens do livro sobre qualquer outra forma de obra de arte (tenho arrepios de digitar mais esses lugares-comuns).

Essa introdução é para dizer que recebi de aniversário de minhanamorada um libreto meio crítica literária, meio ensaio autobiográfico, ou como o escritor mesmo diz, uma maneira diferente de escrever sobre sua vida, falando sobre os livros que ele leu, de um sujeito chamado Ricardo Piglia. Argentino. Assim como Dom Jorge Luis, o Borges, e Señor Júlio Cortázar.

Inclusive, por essa "coincidência" nacional, quase cometo uma heresia (brasileira) e começo esse textículo elogiando os senhores aqui do lado. Mas, tenho em minha defesa a idéia de que não sou um brasileiro típico. Sou tão apaixonado por futebol que torço pelo fluminense. E os meus conhecimentos acerca de samba se resumem a escutar Chico Buarque, Paulinho da Viola, Cartola e olhe lá.

E, para aliviar um pouco minha culpa de ser fã de argentinos, posso contra-argumentar que existe uma lenda - que em breve, se todo o planejamento sair do papel, poderei comprovar - que Buenos Aires, só essa cidade, tem mais livrarias que o Brasil inteiro. (Nada de assustar considerando que temos a metade de salas de cinema que o México, por exemplo)

Contudo, voltemos para o Ricardo, motivo dessa minha intromissão. O livro é leve, apesar do tema pseudíssimo, de teoria literária, ou crítica. Pelo que deu para entender até agora, ele já fez isso outrora e agora só meteu um caô para pagar as contas de casa, sabe como é? não estamos nadando em dinheiro aqui na América Latina. Mesmo assim, mesmo parecendo por definição uma empulhação, o livro tem seus momentos. Piglia tem uma certa queda por uns autores que levantam meu sombrolho: Kafka (cita pouco), Joyce (nunca te li - tirando o menos joyciano, "Dublinenses"- sempre te respeitei) e Monsenhor J. L. Borges. Aliás, um dos ensaios é sobre o último conto de Borges (que nem sei se é apócrifo e, por isso mesmo, melhor ainda).

O que me interessou mais foi "conversar" com um sujeito que tem admiração pelos mesmos caras que eu e saber que, de vez em quando, não é que eu tenho a mesma percepção que ele tem? Para um desconfiado e inseguro como este que vos fala, funcionou como um acalento. Funcionou como um sinalizador para dizer: é por aí mesmo. Ou, alguém já trilhou esse caminho e voltou vivo. Coisa que de vez em quando eu duvido de mim mesmo.

Depois desse "Formas Breves", só tenho uma vontade: ler Adolfo Bioy Casares.