sexta-feira, 30 de setembro de 2005

Série personagens fictícios

capítulo 9: o viúvo

Acompanhando o féretro, Seu Bento está hipnotizado. Não como acontece quando se visita essas charlatonas, mas completamente envolvido com a cena. Era a sua mulher que estava sendo depositada naquela cova. Era tão profundo, como é que... Não fazia sentido pensar nisso. Não era possível... Não, era uma loucura imaginar nisso...

Tinham vivido juntos muitos anos. Bento nem mais lembrava, mas Dona Margarida, essa com certeza se lembraria de quantos. Eram muitos. O seu filho mais velho tem quase 50 anos. Agora, só, sozinho como nunca foi, o que faria? Como se comportar? E as pequeninas coisas? Lembrou-se do lanche da tarde. Todo dia, Margarida colocava a mesa, e tinha broa, um tipo de bolo, queijo. Como era gostoso aquele bolo de cenoura que ela sabia fazer... Quem colocaria a mesa agora? A filha o chamara para morarem juntos, ela tinha um quartinho vazio, mas não. Bento está velho demais para dar trabalho para a filha. E, além do mais, ele sabe se virar sozinho. Serviu o exército, sabe sobreviver. Foi no ano que conheceu Margarida. Ele tinha 18 anos. Tinha acabado de fazer aniversário... Então... Então... Foram 57 anos juntos. Nossa! Muito tempo. Muito tempo mesmo. E agora, ali, indo buraco abaixo... Quem é que vai passar o café fresquinho todas as manhãs?

Bento anda na rua sem se preocupar com a noite fechada. Sabe que é perigoso, mas, agora, nessa hora, não se preocupa muito. A casa está muito vazia, é um silêncio que fica zunindo no ouvido como uma mosca. Não adianta ligar a TV, o barulho não sai. E é até pior. De manhã, os programas de receitas que Margarida gostava. De tarde, a novela, de noite, mais novela. Desliga a televisão. Vai para a rua de novo.

Tenta fazer compras no supermercado. Isso é fácil, sempre acompanhava a mulher. Leva o carrinho para carregar as frutas, o leite e quem é que vai comer os biscoitos de mel e aveia? Devolve para a gôndola. Segue, tem que seguir.

Na rua, passeia, não anda. Não há pressa, por que chegar cedo em casa? Pessoas correm, hora do almoço, telefones celulares ao ouvido, conversas gritadas, nunca gostou desses aparelhos eletrônicos. A filha, Ilda, deu um computador para casa dos pais, mas ele ficou lá, parado. Só é ligado quando os netos vão visitá-los. Ou visitá-lo. Tem que se acostumar.

Na rua transversal, enxerga uma cena insólita. Um mendigo vende uma montoeira de livros. Há uma pilha que ele conhece bem: a Encyclopaedia Britannica. Sempre quis ter a Britannica. Mas a mulher falava: "Onde é que vamos colocar esses tijolos?". E ele, como não gostava de discussão, deixava para lá. Bento olha para o mendigo – maltrapilho, sem camisa, braço defeituoso, bafo de cana, olhos vermelhos – acha inacreditável que aquele sujeito tenha todos os 23 tomos que compõem a principal enciclopédia do mundo. Pega um na mão, abre, é a versão de 1945. Nada mal. Mas deve ser caríssima. Por curiosidade, nunca vai comprar, claro, vai colocar onde?, pergunta, "quanto é?". O mendigo responde: "50". Bento olha para os livros desacreditando: "está completa?", o outro confirma com a cabeça. Seu Bento pensa, será que é roubada?, mas em seguida percebe o quão absurda é tal afirmação. Quem conseguiria carregar 23 bíblias gigantes? Ou, pior: quem se interessaria em roubar livros comuns? Bento nem titubeou, sacou a carteira e: "Volto já com o carrinho vazio".

Primeiro ele empilhou os tomos na sala e ficou analisando as lombadas. Por onde começar? O que ler? Abriu a primeira parte, a que estava em cima e achou até engraçado: "W" de "weapons". As modernas máquinas de guerra da segunda guerra não são nada comparadas com as atuais armas de destruição em massa. Deixou de lado, pegou outro: "C" e ficou espantado. Encontrou "Corumbá": Rio caudaloso que corta Brasil e Paraguai. Também é uma cidade em Mato Grosso, no Brasil. Incrível. Há conhecimentos eternos. Nunca ficarão velhos. A História será a mesma. Ao rever o passado, ao olhar para trás, sempre se encontra as mesmas coisas. Os tanques da segunda grande guerra podem não mais serem poderosos, mas estão na História e não saíram - quiçá sairão - de lá. Dentro dA Enciclopédia eles encontram a eternidade.

Bento deitou-se no sofá, da maneira como sua mulher detestava, os pés sobre o encosto, se espreguiçou e ficou passando os olhos na Britannica. Era um inglês simples, até ele poderia entender. Sentiu, pela primeira vez desde muito tempo, um pedaço da felicidade. Estava tranqüilo, esboçou até um sorriso. Estava com a letra "N", Friedrich Nietzsche. Começou a ler a biografia do pensador alemão. Sua aproximação de Wagner, seu gosto inicial por Schopenhauer, os estudos dos gregos... E encontrou, escrito à caneta, uma pequena declaração: "Não procure o sentido, viva e deixe-o te encontrar". Bento largou o calhamaço sobre o peito e olhou para o teto branco. Como assim? Quem será que teria escrito isso? Para que, por quê? Eram tantas perguntas enfileiradas, tantas questões sem nenhuma resolução, que Bento se levantou. Aquilo era demasiadamente infreqüente para ele não se empolgar. Como é que ele poderia saber quem escreveu tais frases? Era só nisso que Bento pensava. Tinha que saber o porquê delas estarem ali, qual era o sentido real delas... Saiu à rua atrás do mendigo.

Nada. Era tarde, o mendigo provavelmente fora aproveitar a nota de 50 que ele tinha lhe dado. Ele não pode estar longe daqui, pensou Bento. Resolveu percorrer os botecos de péssima qualidade, aqueles que ele tinha evitado porque sua mulher não gostava. Agora não tinha mais motivo.

Como se pode imaginar, tal tarefa não é nada fácil. Bento andou pelas redondezas, entrou em galerias fétidas com sujeitos mal-encarados nas portas, em bares com corredores longuíssimos e balcões idem, e nada novamente. Bento meteu as mãos nos bolsos e voltou cabisbaixo para casa.

Uma noite em claro depois, Bento sai cedo à procura do mendigo. Fica esperando o sujeito no mesmo lugar que ele estava no dia anterior. Mas, será que ele viria? Procurou na memória e não se lembrou de tê-lo encontrado outra vez antes. Anda de um lado para o outro, e se ele não vier? Como é que fará para encontrar quem escreveu aquela frase misteriosa? E se deu conta que mesmo que o mendigo aparecesse ele poderia não servir para nada. Como ele saberia quem é que escreveu aquela frase? Se ele conhecesse o antigo dono já era um achado. Não poderia contar nem com a sorte dele saber... E nesse exato instante, o mendigo aponta na esquina, com uma camisa de botões, cabelo penteado, andar calmo e seguro. Não era ele, pensa Bento. Mas era. Ele estava, ele estava... Limpo... Sentiu-se um imbecil por pensar de tal forma, se censurou por demonstrar um preconceito, mas o sujeito realmente estava diferente. O mendigo, melhor, o homem se aproximou e reconheceu Bento. Abriu um sorriso sincero de simpatia e estendeu a mão. Bento logo a chacoalhou e em seguida falou: "Pode parecer loucura, e é, mas eu preciso de uma ajuda sua". O homem escutou Bento sem nunca desmontar o sorriso do rosto. Bento falava que, por mais absurdo que seja, mesmo não entendendo o motivo, tinha sentido a frase pulsar dentro dele. Era como se ela despertasse alguma fé escondida. Era estranho, nunca ocorrera nada assim. E, agora, depois que Margarida... Bem, agora que ele estava sozinho, sem ninguém, a Encyclopaedia e logo depois a frase, tudo o enchia de vontade de continuar. Novamente tinha algo para fazer além de acordar e esperar a noite para voltar a dormir. O homem o escutava sem alterar as feições e quando Bento acabou, um silêncio permaneceu no ar. Seu Bento ficou apreensivo, repetiu a questão para ter a certeza que o homem o entendera. O sujeito olhou para o céu e apontou para o alto: "ela mora ali". Seu Bento olhou para cima e ficou confuso: "Ela... Ela também morreu?". O homem abriu ainda mais o sorriso e não falou mais nada. Apenas desceu com o dedo apontado e mostrou a portaria do prédio em frente onde eles estavam. Bento começou a rir incontrolavelmente. "Aqui?", repetia e ria Seu Bento, "aqui? Ela mora aqui? Todo tempo ela morou aqui?”.

Bento agradeceu o homem, balançou novamente suas mãos com força – o homem sorria – e esperou alguém sair do prédio. Essa era a vantagem de ser um idoso. Raramente desconfiam de você. Não demorou e Bento estava caminhando nos corredores do condomínio. O homem ex-mendigo tinha lhe dito que o apartamento da mulher era no terceiro andar, de frente. Só quatro apartamentos por andar. Será fácil.

Saltou do elevador e as luzes se acenderam. Bento sentiu algo queimar dentro de si. Era uma ansiedade que não experimentava desde que era um moleque, desde a época que conhecera Margarida. Ela tinha sido o seu fim. O seu início e o seu meio também. Começaram e concluíram tantas coisas juntos. Construíram uma vida em comum. Sim, houve crises, como todo mundo, mas sempre entenderam que se eles se gostassem, e nunca duvidaram disso, deveriam contornar os problemas. As desavenças existem, mas se os dois cederem um pouco, podem fazer algo que agrade a ambos. E conversar. Isso. O segredo foi sempre conversar, jogar limpo, ser justo. Nunca esconder nada, nenhuma mágoa. Colocar para fora tudo o que incomodava. Era isso. Não deixaram que aquele pequeno amargo estrague o gosto do resto. Extirpar o câncer antes que se alastre.

A campainha, o coração batendo, o som ecoa. Escuta passos curtos, rápidos. Sorri sem saber o porquê. A porta abre vagarosamente e ele fica cego por um instante com tanta luz que vem da janela. Depois que consegue recobrar a visão, a visão: com quinze anos de idade, Margarida está em pé, do outro lado da porta.

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