terça-feira, 18 de março de 2014

Os nossos tempos sombrios, segundo Hannah Arendt

Não encontrei uma foto dos dois juntos.
O que pode dizer bastante do caráter
da relação que compartilharam
"Martin Heidegger faz oitenta anos" [em inglês aqui], texto que fecha a versão brasileira da coletânea "Homens em tempos sombrios", de Hannah Arendt [na tradução de Denise Bottmann], é tão impressionantemente incrível que está me deixando confusas as minhas ideias. Há várias partes que valiam horas de debates e conversas, momentos que jogam luz sobre aspectos pouco claros na obra de Heidegger, mas há um, em específico, que me chamou ainda mais atenção por abordar bastante bem o momento atual: a necessidade de um certo isolamento, um distanciamento do mundo, até para se pensar - ou viver - esse mesmo mundo.

Suspeito que esse seja um problema que acompanhou toda a história da humanidade, mas que no último século, com a velocidade dos acontecimentos, com o aumento da informação, com o hedonismo se transformando em regra, em obrigação, a questão se tornou central. Essa torrente também ocasionou uma série de efeitos colaterais que estamos acompanhando sem saber muito bem como agir para evitá-los. De um lado, há uma epidemia de depressão, que assola quase metade da população; do outro, uma igualmente grave epidemia de ansiedade. Como se dissesse que quem não consegue acompanhar o ritmo desse mundo cada vez mais rápido, cai num buraco; quem consegue, não aproveita nada, vai trocando de vontade como quem troca de fantasia.

O que Hannah Arendt propõe, seguindo Heidegger por uma série de motivos que não cabem comentar aqui, para evitar o problema do exagero, é a necessidade de um distanciamento do mundo, como ele é, para podermos pensá-lo. Para podermos enxergá-lo, melhor, para podermos experimentá-lo. Acrescento: para podermos vivê-lo. Não é uma proposta inovadora a de Arendt, claro. Sempre se disse que há uma necessidade de uma perspectiva para que tenhamos uma visão melhor do problema. Em nosso tempo, porém, o que era uma sugestão para um determinado grupo de pessoas, parece que se aplica a toda a humanidade. O problema parece cada vez mais urgente.

Nas palavras de Arendt:
Para se aproximar pelo pensar de uma coisa ou, antes, de um homem, eles devem se manter distantes da percepção imediata. O pensar, diz Heidegger, é "a aproximação do distante".
Em outro momento:
Na perspectiva da morada do pensar, o que de fato reina em torno dela, na "ordem habitual do cotidiano" e dos afazeres humanos, é a "retirada" ou "o esquecimento" do ser: a retirada daquilo que é o assunto do pensar, aquilo que, por sua natureza, se sustém no contato com o ausente. A superação dessa retirada sempre é paga por uma retirada do mundo dos afazeres humanos, mesmo que o pensar medite justamente esses afazeres em sua calma retirada.
Como dito, não há novidade neste front, mas ao ler essas informações sobre a perspectiva atual, ou, como diria Agamben, sendo contemporâneo desse texto, podemos ver como estamos sendo soterrados, diariamente, por uma quantidade absurda de informação, de seduções, de possibilidades e a cada escolha parece, depressiva ou ansiosamente, que estamos perdendo todas as demais. Em vez de valorizar as nossas decisões, as acabamos enterrando, em prol de infinitos caminhos que ficam ao largo, e que, a esta distância, sob esta perspectiva, parecem - mas só parecem - mais interessantes.

O que Arendt fala, ou eu a interpreto assim, é que devemos nos isolar um pouco, sair do mundo das sensações tão epidérmicas, e tentarmos mergulhar dentro de nós mesmos. Isso quer dizer: saber que há o momento de entrar no mundo, que não conseguimos escapar do dia-a-dia, mas que até para valorizar este mundo, precisamos nos distanciarmos. Em outras palavras: Temos que sair da máquina de moer carnes que é a vida cotidiana, sair da roda de camundongos de laboratório. Temos que parar para escutar nossa própria voz. Abafar o barulho do mundo lá fora e ouvir a voz que só nós podemos escutar e que nos fala a verdade sobre nós mesmos.

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