Nessa semana, diversas pessoas diferentes - entre amigos próximos, distantes, colegas e gente que eu leio nos jornais - falaram sobre o mesmo assunto: "True detective". É a nova superprodução em forma de minissérie da HBO que tem Matthew McConaughey como o tal detetive verdadeiro e Woody Harrelson como seu parceiro. Todos as falas tinham algo em comum: Rust Cohle, o personagem de McConaughey. E não é para menos. É um desses protagonistas que sugam todas as atenções como se fosse um buraco negro.
Atormentado pela perda da filha de 2 anos, Cohle se torna um homem antissocial e amargo. Cético. Introspectivo. Não é fácil descrevê-lo. É como se as qualidades não se adequassem a ele, necessariamente. Ele é cético, mas não apenas isso. É amargo, mas não somente. É um personagem grande, dúbio, que foge de padrões fáceis de classificação. Vive marginalizado da sociedade, morando numa casa sem móveis, tentando arrancar forças de seu trabalho para sobreviver, porque não foi feito para o suicídio, como se defende logo no primeiro episódio.
Um aspecto que é mais fácil captar em Cohle é sua dificuldade de aceitar a individualidade humana. Para ele, somos desimportantes, enquanto seres únicos. Seríamos apenas uma máquina biológica, que caminha mesmo contra a vontade em direção a um destino certo: a morte. O caminho trilhado pode variar um pouco, mas não muito. Não somos especiais, não somos diferentes de nada do que nos envolve.
Personagens como o de Cohle são famosos nas artes narrativas, principalmente no gênero policial, ainda mais o noir. São homens durões, que não conseguem lidar facilmente com as suas perdas do passado e mergulham num isolamento misterioso da sociedade. Viram solitários, quietos, vistos como sábios por não quererem se intrometer na vida de ninguém.
O que ele tem de diferente - e o que demonstra bem o nosso momento histórico - é um certo cacoete filosófico e ateu. É um homem que desistiu do homem, e que sugere que caminhemos em direção ao fim, de mãos dadas. Mas será que conseguimos viver realmente de maneira ateia? Quero dizer, e eu estou aqui me repetindo, será que é possível viver sem acreditar em nada?
Em uma determinada cena, Cohle e seu parceiro, o supertradicional homem do sul americano Martin Harris, vão a uma igreja itinerante. Enquanto ouvem o pastor, Cohle começa a também pregar para Harris, demonstrando como toda aquela encenação era falsa, não se atinha à realidade, científica, crua. Harris, pai de duas meninas, casado com uma mulher bonita, detetive sênior, tenta contrapor os argumentos de Cohle, mas não tem a erudição do parceiro. Ao fim, porém, dá uma cartada que fica sem resposta: para um pessimista completo, Cohle parecia se importar muito com a religião dos outros.
Os homens e mulheres - pobres, sem educação - que passavam a cestinha e depositavam dinheiro podem até estar comprando um pequeno sentido para as suas vidas - sentido que não se encaixa num mundo de pessoas que têm acesso a determinados conhecimentos - mas, ao fim, elas estavam, ali, agindo de acordo com os preceitos do próprio Cohle. Diminuindo suas próprias individualidades, vivendo em uma comunidade - como, aliás, Harris salienta - seguindo um caminho qualquer em direção ao fim comum.
Por que Cohle acredita que não acreditar em um Deus é melhor que acreditar? Porque hoje ser ateu, ser laico, ser secular, é visto como uma vantagem sobre quem segue uma religião em que um mundo é criado em seis dias para Ele descansar no sétimo. O provável - e o que eu acredito - é que apenas escolhemos no que acreditar. Não é verdadeiramente possível simplesmente não acreditar.
Os céticos geralmente argumentam usando a inteligência que os estudos lhe deram. O próprio Cohle faz isso, num exercício de superioridade. Pergunta de maneira esnobe qual seria o QI daqueles fiéis na igreja. Então há - e faço essa pergunta sem qualquer ironia - uma hierarquia entre quem é mais ou menos inteligente?
Como se acredita, os homens destituíram o Deus cristão, mas colocaram outros deuses em seu lugar - como é o caso da ciência, para ficar no exemplo mais comum. A mesma ciência que já cometeu, assim como as religiões, inúmeros absurdos, e que já justificou igualmente guerras. Não há deus sem pés de barro.
A decisão por ignorar a individualidade humana, escolhido por Cohle para lidar com a sua dor, carrega em si, provavelmente, o mal de seu problema. Não é possível que alguém negue que é diferente do seu igual - nem mesmo Cohle. Basta ele enxergar como vive de maneira radicalmente distante dos seus pares. Mesmo que ele queira se anular, o que ele consegue é só fazer com que fiquem mais óbvias as diferenças.
Talvez a saída esteja em aceitar que não somos iguais aos nossos iguais, mas também não somos diferentes. Somos os dois, ou aproveitando as vantagens que a nossa língua nos dá [quem disse que não dá para filosofar em português?], estamos, à medida que caminhamos rumo ao tal destino comum, os dois, ora um, ora outro, ora ambos, em determinados e diferentes graus. Somos individuais, únicos, mas também pertencemos a algo maior que nós, que nos torna parte de um todo - seja esse algo a humanidade, o reino animal, o planeta Terra, o universo. Optar por um dos caminhos é ignorar uma parcela considerável de nossa natureza.
Mas isso tudo que eu escrevi, claro, faz parte apenas da minha crença.
McConaughey está magro e quase irreconhecível na série |
Atormentado pela perda da filha de 2 anos, Cohle se torna um homem antissocial e amargo. Cético. Introspectivo. Não é fácil descrevê-lo. É como se as qualidades não se adequassem a ele, necessariamente. Ele é cético, mas não apenas isso. É amargo, mas não somente. É um personagem grande, dúbio, que foge de padrões fáceis de classificação. Vive marginalizado da sociedade, morando numa casa sem móveis, tentando arrancar forças de seu trabalho para sobreviver, porque não foi feito para o suicídio, como se defende logo no primeiro episódio.
Um aspecto que é mais fácil captar em Cohle é sua dificuldade de aceitar a individualidade humana. Para ele, somos desimportantes, enquanto seres únicos. Seríamos apenas uma máquina biológica, que caminha mesmo contra a vontade em direção a um destino certo: a morte. O caminho trilhado pode variar um pouco, mas não muito. Não somos especiais, não somos diferentes de nada do que nos envolve.
Personagens como o de Cohle são famosos nas artes narrativas, principalmente no gênero policial, ainda mais o noir. São homens durões, que não conseguem lidar facilmente com as suas perdas do passado e mergulham num isolamento misterioso da sociedade. Viram solitários, quietos, vistos como sábios por não quererem se intrometer na vida de ninguém.
Essa música de abertura do duo The handsome family é incrível
O que ele tem de diferente - e o que demonstra bem o nosso momento histórico - é um certo cacoete filosófico e ateu. É um homem que desistiu do homem, e que sugere que caminhemos em direção ao fim, de mãos dadas. Mas será que conseguimos viver realmente de maneira ateia? Quero dizer, e eu estou aqui me repetindo, será que é possível viver sem acreditar em nada?
Em uma determinada cena, Cohle e seu parceiro, o supertradicional homem do sul americano Martin Harris, vão a uma igreja itinerante. Enquanto ouvem o pastor, Cohle começa a também pregar para Harris, demonstrando como toda aquela encenação era falsa, não se atinha à realidade, científica, crua. Harris, pai de duas meninas, casado com uma mulher bonita, detetive sênior, tenta contrapor os argumentos de Cohle, mas não tem a erudição do parceiro. Ao fim, porém, dá uma cartada que fica sem resposta: para um pessimista completo, Cohle parecia se importar muito com a religião dos outros.
Os homens e mulheres - pobres, sem educação - que passavam a cestinha e depositavam dinheiro podem até estar comprando um pequeno sentido para as suas vidas - sentido que não se encaixa num mundo de pessoas que têm acesso a determinados conhecimentos - mas, ao fim, elas estavam, ali, agindo de acordo com os preceitos do próprio Cohle. Diminuindo suas próprias individualidades, vivendo em uma comunidade - como, aliás, Harris salienta - seguindo um caminho qualquer em direção ao fim comum.
Por que Cohle acredita que não acreditar em um Deus é melhor que acreditar? Porque hoje ser ateu, ser laico, ser secular, é visto como uma vantagem sobre quem segue uma religião em que um mundo é criado em seis dias para Ele descansar no sétimo. O provável - e o que eu acredito - é que apenas escolhemos no que acreditar. Não é verdadeiramente possível simplesmente não acreditar.
Os céticos geralmente argumentam usando a inteligência que os estudos lhe deram. O próprio Cohle faz isso, num exercício de superioridade. Pergunta de maneira esnobe qual seria o QI daqueles fiéis na igreja. Então há - e faço essa pergunta sem qualquer ironia - uma hierarquia entre quem é mais ou menos inteligente?
Como se acredita, os homens destituíram o Deus cristão, mas colocaram outros deuses em seu lugar - como é o caso da ciência, para ficar no exemplo mais comum. A mesma ciência que já cometeu, assim como as religiões, inúmeros absurdos, e que já justificou igualmente guerras. Não há deus sem pés de barro.
A decisão por ignorar a individualidade humana, escolhido por Cohle para lidar com a sua dor, carrega em si, provavelmente, o mal de seu problema. Não é possível que alguém negue que é diferente do seu igual - nem mesmo Cohle. Basta ele enxergar como vive de maneira radicalmente distante dos seus pares. Mesmo que ele queira se anular, o que ele consegue é só fazer com que fiquem mais óbvias as diferenças.
Talvez a saída esteja em aceitar que não somos iguais aos nossos iguais, mas também não somos diferentes. Somos os dois, ou aproveitando as vantagens que a nossa língua nos dá [quem disse que não dá para filosofar em português?], estamos, à medida que caminhamos rumo ao tal destino comum, os dois, ora um, ora outro, ora ambos, em determinados e diferentes graus. Somos individuais, únicos, mas também pertencemos a algo maior que nós, que nos torna parte de um todo - seja esse algo a humanidade, o reino animal, o planeta Terra, o universo. Optar por um dos caminhos é ignorar uma parcela considerável de nossa natureza.
Mas isso tudo que eu escrevi, claro, faz parte apenas da minha crença.
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