sexta-feira, 28 de março de 2014

O fim do senso comum

No livro "Entre o passado e o futuro", dona Hannah Arendt diz, lá no "A crise da educação", que a ausência do senso comum é uma das maiores provas da nossa crise atual - ou da época, fim da década de 1950. Isso fica fácil de enxergar quando vemos qualquer discussão sobre assuntos bipolares, como é o caso do golpe de 1964, para usar um exemplo exagerado, ou mesmo, para ficar no assunto educação, a liberdade ou segurança na hora de transmitir conteúdos para as crianças. Devemos falar o que e quando e como para os pequenos?

Como não há mais parâmetros óbvios, ficamos na dúvida em relação aos limites que podemos impor - em todos os aspectos. Será que devemos dar o máximo de liberdade para os cidadãos? Mas o máximo de liberdade não afeta ao outro, necessariamente? Se eu tenho, por exemplo, a liberdade de ouvir música alta até a hora que eu quiser, eu não atrapalho o meu camarada que gosta de dormir mais cedo? Qual é a solução - o limite - para isso? Qual é o sinal que se acende quando vou ultrapassar a fronteira da minha liberdade para a do outro?

Todas as vezes que eu vejo pessoas defendendo a "mão invisível do mercado", para falar mal do governo e defender o liberalismo extremo, eu penso no trânsito. Será que conseguiríamos sobreviver muito tempo sem o ente superior - no caso, representado pelos sinais de trânsito? Não é bastante óbvio que, neste exemplo, o ato de ignorar o Leviatã mais atrapalha que ajuda? E, se admitirmos que, neste caso,  precisamos de alguma regulação superior, de algum código de conduta, de algo que podemos determinar como o certo, o melhor para todos, como determinaríamos quais são os outros assuntos que precisamos de regulamentação e quais não?

Por outro lado... Se escolhermos sermos regulamentados a todo o momento, se tivermos todos os nossos passos legislados... isso resolveria os nossos problemas? Para começar, as pessoas são presas, no Brasil, a grosso modo, por meia dúzia de crimes. O restante da legislatura parece ser feita - o que já virou até cotidiano - para inglês, mesmo que nascido no Brasil, ver.

E não estou defendendo aplicar totalmente as leis: somos o quarto país que mais encarcera no mundo - mas não somos, nem de longe, o quarto mais seguro. Como se sabe, nossas prisões não ajudam na transformação dos homens e mulheres que lá entram - ao contrário. Além disso, você, você aí que está sentado na sua confortável cadeira / sofá, você conseguiria passar um dia sem quebrar alguma regra, alguma lei, algum tipo de regulamentação? Lembre-se que, no Rio, é passível de punição até quem portar mochila às costas nos elevadores. A verdade é que não temos noção do que é legal ou ilegal, no nosso cotidiano, e ficamos à mercê dos preconceitos dos homens que são a ponta do aparato jurídico: os poliça.

Além disso, mesmo que soubéssemos todos os nossos direitos e nossos deveres, todos, sem tirar nem pôr, isso seria o suficiente? Porque abundam na história casos em que os regimes de exceção, de terror, foram apoiados, ou melhor dizendo, se basearam em uma legislação vigente, ou que se construiu para dar-lhe suporte. Se quiserem um exemplo, podemos dar o regime militar - que foi apoiado por uma boa parte da sociedade, e principalmente da elite - instaurado em 1964.

Devemos ainda nos lembrar que há casos em que há um arcabouço teórico onde os donos do poder buscam auxílio para respaldar suas atitudes. Ou se cria algo para dar o apoio. Ou muda-se a interpretação - caso clássico de Nietzsche e o nazismo. Não é a letra fria da lei - ou da teoria - que devemos levar em consideração. Ela pode envelhecer, perder importância, ou ser criada, modificada, reapropriada apenas com o fim de legitimar algo que pareceria ilegítimo.

Mas se não podemos confiar no indivíduo, isolado, fora da sociedade, que nos diz que a liberdade é o fim de todos, homens-e-mulheres, já que é difícil saber onde a liberdade de um acaba para a do outro começar, nem na presença de um ente superior - que foi Deus, depois [sem ordem] a ciência, o Estado, a Justiça, etc. - o que nos sobra? O senso comum. Mas o que seria isso? E, como apontou Hannah Arendt, como sobreviver sem ele?

Em primeiro lugar, seria interessante levantar a hipótese: será que já houve em algum momento da História algo como o senso comum? Ou seja, será que houve um tempo em que homens-e-mulheres dividiram um conjunto de códigos e regras que não precisavam ser ditas, mas que eram compartilhadas por todos-todas? Bem provavelmente não. Mas já houve regras não escritas em que a grandiosa maioria respeitava. Pense na moda, por exemplo, e somente para dar um exemplo colateral, que conseguimos enxergar isso. Como a moda era uníssona há 100, 150 anos, e como ela se transforma, cada vez mais, em algo difuso, difícil de ser apreendido dentro de uma única explicação. A própria moral cristã era uma regra que não precisava ser imposta - apesar de ser imposta - para as pessoas [hipocritamente] respeitarem - ou arranjarem um jeitinho de burlarem.

Hum. Pensando melhor, talvez a ideia de senso comum não se aplique ao Brasil. Nunca tivemos uma ideia do pertencer a algo maior que nós mesmos, a uma ideia de comum, de comunidade. O Estado sempre foi visto como aquele que atrapalha, pelos ricos, ou que persegue, pelos pobres. Estamos há 200, 300, 500 anos tentando descobrir uma forma de lidar com o outro, desde que o outro não não invada nossa individualidade. Aqui, parece que sempre foi um cada um por si. E deus contra todos.

Talvez devêssemos alçar aquela música do Chico a nosso verdadeiro hino nacional: "Mesmo com o todavia, com todo dia / Com todo ia, todo não ia / A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando / A gente vai levando essa guia".

Ou descobrir que nem só a liberdade, nem só a segurança resolveriam nossos problemas. Mas atitudes que fossem permeadas pelos dois parâmetros, à medida da necessidade, do possível. Ou melhor, do bom senso comum.

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