Batemos
tambores, eles panela
Rincón Sapiência
Tema
As
canelas esbranquiçadas combinam com a roupa, mas contrastam com o corpo retinto.
Ele é mais forte que eu, por isso passo cuidadosamente por trás, sem que me
note. Pego rapidamente o sarrafo no chão e dou bem na nuca, igual meu pai me
ensinou. Ele nem percebe de onde vem, cai só para levantar mais poeira. Em
seguida, grito para o seu Severino: Leva para o hospital e resolve tudo. Sem
perder mais tempo, vou para o carro e saio fora.
1ª variação
Minha
garganta trava e começo a chorar assim que saio com o carro. Meu pai não pode
desconfiar disso. Eu tenho que saber me impor.
Rodo
de carro até a gasolina quase acabar. Fico umas noites sem dormir direito. Ele
podia ter morrido! Tentando ser discreto, pergunto ao seu Severino: e o Josenildo
lá? Ele me responde: tá na mesma, patrão.
Chego
a ir ao hospital, mas não subo. Sorte que a madeira quebrou. Parece que ele
ficou capengando, mas depois vai melhorar, tenho certeza. É forte pra burro, o
bicho.
Na
obra, ele ficava me olhando de um jeito. O corpo com suor peguento, sempre sem
camisa. Achava meio estranho ficar sempre assim, sem camisa. Os outros não
faziam aquilo. Eram peões, mas eram limpos. Josenildo, não. Eu só queria parar
com aquilo, com aquele jeito d’ele me olhar. Eu não sou disso. Eu não sou
disso! Não pode! Com quem ele pensa que tá lidando? Eu precisava fazer alguma coisa
para mostrar quem é que manda, para saber me impor. Meu pai repetia: você que é
o patrão, o resto é peão. Não podia deixar passar em branco.
Fiquei
dias planejando tudo em detalhes: o que eu faria, por onde passaria, o que
diria. Imaginei como iria andar, o tipo de olhar, o tom da minha voz. Eu que
mando nessa porra!
Na
sexta, houve a conjunção de fatores favoráveis. Cheguei até a sorrir. No
momento em que ele deu mole, parti para cima.
2ª variação
Nunca
tinha feito isso. Nada disso. Eu não queria, mas me deu uma coisa que eu não soube
controlar. Josenildo sempre foi meio bicho do mato. Quando eu ia para o vestiário,
ele se escondia. Eu ia conversar com todo mundo, pô. Pegava com frequência Nildo
ainda sem camisa. Corpo de um brilho apagado do pó da obra, suor colado,
peguento, cara de cansaço, se arrumando pra ir embora. Os músculos empurrando a
pele, como se quisessem se expandir para fora do corpo. O abdômen trincado.
Perguntei o que ele fazia para ficar assim. Assim como? Assim, sarado. Ele
respondeu que bastava carregar dois sacos de cimento na cabeça, todo dia.
Rimos, ou pelo menos eu ri. Falei para ele que eu iria começar a malhar assim
também. Foi a vez d’ele rir.
Ele
não era envergonhado, mas comigo, não sei. Um dia ele pediu para eu parar, e eu
perguntei parar o quê? – eu não tinha feito nada. Ele falou que estava com medo
de perder o emprego. Tinha a mãe para ajudar. Eu disse que nunca iria mandar
ele embora.
Começou
a ficar sempre junto dos outros. Eu ficava olhando de longe, não tinha nada a
ver, estava só olhando. Olhar não tira pedaço. Ele evitava ir ao banheiro, sei
lá por quê. Devia achar que alguém iria agarrar ele. É cada uma...
Perdi
a cabeça quando o seu Severino veio falar comigo:
Patrão,
o pessoal tá comentando.
Comentando o que, Severino?
Você e o Josenildo...
Como assim, Severino?
Dizendo que você tá cheio de intimidade com ele...
Severino, me respeita, me respeita que eu sou teu patrão e posso te mandar
embora agora!
Que isso, patrão, que isso. Eu nunca acreditei nessa fofocaiada. Conheço o
senhor desde pequenininho, quando seu pai te trazia pras obras. Eu trabalho pro
seu pai há mais de 20 anos, nunca ia desconfiar de nada...
Nessa
hora eu olhei para fora e Josenildo tava mijando atrás da brita. Não pensei
duas vezes. Tinha que acabar com essa história. Onde já se viu?
3ª variação
Quem
esse crioulo pensa que é? Bem que meu pai falou: nunca confia em preto. Se meu
pai não fosse amigo do juiz, eu tava ferrado. Imagina, ser preso por conta de
um crioulo desse? E ele ainda viveu sem sequela nenhuma, parece. Nunca mais vi
na minha vida. Deve estar morto. Não duvido nada ter virado bandido. Já não era
flor que se cheira. Ou tá cheio de filho, fodido. Tem uma coisa que pobre gosta
é de ter filho. Por mim, esterilizava tudo. Sem nem pedir. Nascia, já cortava
tudo fora. Ia acabar com a violência rapidinho.
Esse
aí chegava sempre bêbado na obra. Não queria nada com a hora do Brasil. Eu
tentei ajudar. Severino, aquele cabeça-chata, veio pedir por ele da última vez:
ele não vai mais faltar, tem que ajudar mais gente. O pai sumiu, a mãe é velha.
Eu pensei, mas não falei: a mesma história de sempre... Sou bom, mas sou ainda
mais é justo. Se eu não mostro quem manda, to ferrado. Ninguém ia me obedecer
na obra. Aí eu lembrava do que meu pai dizia: tem que deixar claro para todo
mundo que você que é o patrão e o resto é peão. Eu já tava escutando uns
risinhos pela obra. Meu pai também dizia: se não dá para ganhar na igualdade,
vai na covardia.
Para
piorar, começou a usar branco na sexta. Só faltava essa. Esse crioulo ainda ia costurar
meu nome na boca do sapo. Um dia, encontrei uma garrafa de cana na frente da
obra. Não sabia se era despacho ou se ele que tinha entornado.
No
dia, estavam fazendo um pagode na esquina, no meio da rua, comprando cerveja no
cara que vendia churrasquinho. Ele veio na obra só para mijar. Foi para trás
das britas, tirou a rola, dois palmos de jeba, e ficou rodando na minha
direção. Aí o sangue me subiu.
4ª variação
Quando
comecei a trabalhar na obra, não sabia como fazer para eles me respeitarem como
eu sou, não por ter o pai que tenho. Não queria usar do argumento de autoridade,
sempre achei que esse era o último degrau. Se tivesse que ser na base da
violência, eu já tinha perdido o argumento. Nunca nem falava alto. Para mim,
não precisava. Agora, também não dava qualquer abertura, nenhuma possibilidade.
Os outros todos me respeitavam. E não é porque meu pai era quem era. Eu tratava
todo mundo de igual para igual, mas quando precisava chegar junto, eu sempre
chegava. Funcionava com todo mundo, menos com esse Josenildo.
Ele
sempre ficava me olhando como se eu fosse um pedaço de carne. Quando eu
reparava, ele estava com um risinho no canto da boca. Se eu estivesse por
perto, soltava uma piadinha de duplo sentido. Todas as vezes que passava por
mim, fazia questão de esbarrar em mim. Podia ter um espação, não tinha
necessidade, mas lá vinha ele e triscava em mim, mesmo que de leve. Uma vez,
senti um troço, um vento nas costas, quando virei, vi que ele tava pertinho,
como que respirando, aqui ó, a um palmo do meu cabelo.
Eu
estava muito desconfiada, mas é complicado acusar alguém assim. Não dava para
conversar com seu Severino, que meio que me adotou. Ele sempre poderia dizer
que eu tava vendo coisas. Que Josenildo era assim mesmo. Mas comecei a ficar
com medo. Se ele tentasse alguma coisa comigo? O pior é que eu não podia falar nem
com meu pai. Ele me disse que se eu quisesse tomar conta de obra, tinha que ser
que nem homem. O único conselho que ele me deu foi: na briga, vai na covardia.
Pega desprevenido.
O
sol está forte esquentando a cabeça debaixo do capacete, o suor colando meu
macacão no corpo. Sempre ia com uma roupa muito larga, para não marcar nada,
mas hoje não adiantou muito. Ele chega atrás da brita e vai mijar. Tem um
banheiro químico – não há qualquer necessidade disso. A única explicação é que
a brita fica bem em frente à minha janela. Depois que acabou fica rodando a
rola, olhando na minha direção, com aquele sorrisinho repugnante que eu já
conheço, embaixo de um bigodinho fino dos mais canastras. Aquilo me dá uma
raiva que eu nunca tive na vida. Um horror, um nojo. Sinto minha pressão cair. Me
lembro do meu pai: pega desprevenido. Vai na covardia. Eu não precisava chegar de
mãos vazias. Tentei levantar uma marreta, mas não consegui. Olhei para fora e,
bem lado do Josenildo, vi um sarrafo.
Versão deslocada da 4ª variação
Todos
os dias ele vem na minha baia. Me olha sempre de cima da divisória, com um
olhar como se ele fosse irresistível. Eu sou estagiária, estou com pouco
tempo de empresa, ele é um executivo júnior, com a conta da Antarctica. Dá
palestra na Feira Nacional de Retailers e tem 32 mil seguidores no
LinkedIn. Apareceu na matéria da Negócios do mês passado como jovem
negro promissor da publicidade. Um ótimo case.
Fui
uma vez só com um decote maior – para nunca mais. Eu tento responder sempre quando
ele puxa conversa, não quero parecer antipática, mas tenho muito medo de ser
mal interpretada. Fico me dizendo que não é possível, que ele não está fazendo
isso que ele parece estar fazendo. Quando eu vou pegar café ou água, é um
aperto. Ele sempre brota e dá uma desculpa para pegar no meu cabelo ou se
aproximar para adivinhar qual fragrância eu estou usando. Cortei o cabelo curto
e parei de usar qualquer perfume! Aí, ele elogia o novo corte – e eu me sinto
sem conseguir escapar, rindo nervosamente, com medo. Agora evito ir pegar café.
Peço sempre para alguém – e me apelidam de preguiçosa. Eu, que sempre faço hora
extra.
Rola
almoço coletivo da firma e ele insiste em sentar exatamente no meu lado, com a
perna colada na minha – e eu, sentando quase de lado, para evitar o contato. Um
dia minha chefe me pergunta por que eu estava toda torta. Tive que inventar uma
desculpa qualquer: to com uma dor na coluna incrível. Tão nova, diz o membro da
outra equipe, um gordo, que também é peguento. Já ele, ele fala: quer que eu
faça uma massagem? E sorri, aquele sorrisinho no canto de boca que me embrulha
o estômago.
Na
festa de fim de ano, eu colo na minha chefe. Onde ela vai, eu vou atrás. Sempre
fui expansiva, mas me sinto profundamente acossada. Em certo momento, minha
chefe pede para buscar uma taça de prosecco para nós duas, eu faço cara
de que não quero – ela fala que eu tenho que deixar a vergonha de lado. Constrangida
e contrariada, vou. Ele me intercepta no meio do salão e, sem que eu consiga me
defender, me reboca para um canto escuro. A primeira coisa que ele faz é tentar
me beijar, eu viro o rosto na hora, a segunda, é colocar a minha mão no pau
dele.
Consigo
me desvencilhar e volto correndo, sem a bebida. Estou com um medo gritante que
deveria dar para enxergar na minha cara – minha chefe percebe e me puxa para um
lado. Quando estamos razoavelmente sozinhas, desabo. Minha chefe escuta tudo e
diz que nunca percebeu nada, mas que não se espanta. Ele está claramente se
achando demais.
No
dia seguinte, a ressaca é agravada por um entra e sai da sala de reunião.
Primeiro a minha chefe chama o chefe dele. Depois de muito tempo, eu vejo o meu
assediador entrar. Passa mais uma meia hora e ele sai. O meu telefone toca e eu
tremo.
Estou
apavorada, mas lembro do meu pai: eu tenho que tratar o mundo de igual para
igual. Ninguém é melhor ou pior que eu. Engulo o choro que quase engasga na
garganta, e vou para a sala. Minha chefe e o chefe dele estão um ao lado do
outro, como advogados de defesa e acusação. Ela me pede para contar a história
toda, e eu tento fazer com a maior precisão e concisão possível. O chefe dele,
um ex-surfista que finge que o tempo não passou, me pergunta se eu nunca dei qualquer
abertura, uma resposta dúbia qualquer, demonstrei qualquer simpatia a mais. Eu
nego, quase ofendida, mas na verdade fico com algumas dúvidas lá no fundo. Ele
se recosta no espaldar e bufa baixinho.
Ele
é demitido. Sai da empresa gritando que estava sendo discriminado. Só porque sou
preto, porque não me comporto como submisso, porque faço sucesso... Berra, até
para quem não quisesse ouvir. E eu revisito algumas cenas para saber se eu
tinha dado alguma abertura para ele. Nunca imaginei que ele seria demitido.
Também me surpreende a reação dele, tão violenta. Mas me assusta mais o fato de
ele ser negro. Estava sendo racista? Eu me pergunto com medo de encontrar uma
resposta que confirme a minha suspeita.
5ª variação
Josenildo
fica lá, no fundo da obra, conversando baixinho com os outros peões. Quando eu
chego perto, o papo some aos poucos e as pessoas voltam a trabalhar, como se
nada tivesse acontecido. Desconfiado, eu interpelo o peão: “O que vocês tanto
conversam?” “É papo de preto”, ele me responde, sem querer se alongar. Arregalo
os olhos – não esperava esse tipo de consciência ali. Tento dar mais corda: “Como
assim, Josenildo?” “A gente tem que se organizar, doutor, nenhum branco vai
cuidar da gente, não”. Fico automaticamente empolgado. Quando eu contar para o
pessoal do coletivo, ninguém vai acreditar. Seu Severino chega próximo e tenta
interpelar: “Deixa de frescura, Josenildo, vocês têm que trabalhar, isso sim, aproveitar
a oportunidade que o patrão tá dando”. “Por isso que os pretos são melhores que
os brancos de todas as cores”, Josenildo responde de primeira, olhos fixos e
aquele bigodinho que parece saído da década de 1940. “Também acho” – me meto
onde não era chamado, empolgado.
“Não
acho certo”, vem depois me dizer Severino, “todo mundo aqui é igual. Não tem
esse negócio de branco ou preto, todo mundo é trabalhador, todo mundo é peão”.
Ele me olha, um pouco constrangido, e completa: “Menos o patrão”. Dá uma pausa,
e continua: “Quem não quiser trabalhar, que deixe o posto para quem quer, tá
cheio de gente lá fora querendo um espaço”. “Deixa eles, seu Severino”, contesto,
“deixa eles”.
Aos
poucos, tento me aproximar do Josenildo. Ele é uma figura com clara ascendência
sobre os demais peões. Há dois mais velhos, um alto, silencioso e muito bom na
elétrica, outro com a cabeça branquinha, cara de sábio e troncudo, que ainda
consegue carregar dois sacos de 50. Josenildo conversa com eles, depois fala
com os outros. “Bora trabalhar aí”, grita de longe seu Severino. Josenildo olha
para Severino e em seguida para mim, como ignorando o capataz, e eu sorrio de
volta, tentando mostrar solidariedade, como nós éramos iguais. Quero de alguma
forma ajudá-lo, estar próximo dele, aprender com ele. Não sei. Fico empolgado
só por saber que ele estaria ali, na obra, e eu teria a chance de encontrá-lo.
“Não
tá certo, isso não tá certo, patrãozinho”, me fala, um dia, na minha salinha,
seu Severino. “O senhor tem um coração muito bom, não pode dar espaço para
esses aí. Eles vão acabar tomando conta de tudo”. Eu tenho que me impor, penso
na hora, não posso perder a autoridade sobre os peões: “Muito obrigado,
Severino, mas ainda não preciso dos seus conselhos”. Quando ele sai pisando pesado,
reflito que talvez eu tenha sido duro demais. Mas não tem como voltar atrás. Me
desculpar certamente é bem pior.
Quando
meu pai vai visitar a obra, flagro ele conversando com o Severino na sala. “Que
bom que você chegou”, ele me diz, apontando a cadeira, enquanto Severino sai. Assim
que ficamos sozinhos, não perde tempo: “Você não pode tratar os pretos assim”,
diz. “Mas, pai”, tento, “você tá parecendo um...”, e ele espalma a mão à
frente, me congelando. Em seguida, continua: “Seu avô construiu essa empresa
sendo justo com quem quisesse trabalhar. Severino te viu criança, está aqui há
20 anos, carregou muito saco de cimento na cabeça, mas agora tá trabalhando no
ar-condicionado. Não pode dar liberdade demais para os peões, meu filho, se não
eles não vão te respeitar”.
Aquilo
me deixa com um nó nas entranhas. Meu pai era um coronel de literatura clichê sobre
o século XIX. Como ele pode ser tão preconceituoso? As pessoas não precisam ser
tratadas como máquinas que reproduzem movimentos e obedecem mudamente a ordens:
elas têm suas próprias vontades. Elas são livres. Josenildo poderia organizar o
grupo para uma relação melhor entre os trabalhadores e a empresa. Ele deve ter
mais ou menos a minha idade e já tem tanta certeza, força, independência...
“E
ainda tem o problema do prazo” – continua meu pai, eu arregalo os olhos. “Quanto
mais a casa demorar a ser construída, mais diárias temos que pagar, e menos
dividendos sobra para a gente. Já estamos, agora, atrasados. Com essa
morosidade, vamos acabar tendo que trabalhar para pagar os custos dessas
liberdades todas”.
Meu
pai vai embora, não sem antes dar uma volta pela obra e falar com Josenildo,
que o escuta quieto, com o semblante duro, mas sem desviar o olhar. Quando ele
passa por mim, perguntei o que ele conversou com Josenildo e ele diz que não
precisa me dar satisfação. Vou a Josenildo e o questiono. “Nada”, ele me
responde, “só perguntou se estava satisfeito com o trabalho”. Não sei se ele
está falando a verdade. Fico vendido, como um príncipe de uma monarquia
abandonada.
Pouco
mais de uma semana depois, numa quinta-feira, o peão de cabeça branca se
envolve num acidente: deixa um balde cheio de brita cair de uma altura de uns
cinco metros. Não pega em ninguém, mas o balde de plástico se espatifa e as
pedras se espalham por até quase minha sala. Severino chega perto para dar uma
dura. Josenildo também se aproxima e começa a defender o mais velho. Severino
engrossa o tom, Josenildo responde à altura. “Vou chamar o patrão!”, grita
Severino tão alto a ponto de eu, que estou do outro lado da obra correndo para
lá, escutar. “Esse aí não manda em ninguém”, diz alguém. “Estou falando do pai,
não do filho”, complementa Severino, saindo, na hora que eu chego. “O que foi?”
Tento perguntar, Severino passa por mim: “Nada, patrãozinho, nada, não precisa
se preocupar”. Eu pergunto o que aconteceu e ninguém me responde nada. Estou transparente.
As pessoas não me enxergam. Eu olho para o Josenildo na busca por auxílio: “Aconteceu
que os brancos sempre se ajudam para ferrar os pretos”. Eu fico rodando de um
lado para o outro, perdido. Tento aumentar o tom, mas fico com medo de chorar
ali, na frente de todo mundo. Aos poucos as pessoas começam a me explicar.
Quando acabam, eu volto para a sala à espera do meu pai.
Ele
não demora – e diz de cara que eu não preciso me meter, ele lidaria com o
problema. Chega perto do Josenildo e eu vejo o peão sair de perto, pegar suas
coisas e ir embora. Tento ainda interpelar o meu pai, mas ele espalma a mão e
eu não sei o que fazer então.
O
clima da obra fica nublado. Ninguém quer trabalhar depois da demissão de
Josenildo. Severino insiste, grita, diz que quem não trabalhar não vai ganhar
nada. Eu fico na sala, engolindo o choro que me corrompe para sair, cozinhando
o meu estômago no próprio ácido.
No
dia seguinte, chego cedo e encontro uma garrafa de cachaça pela metade junto a
velas acesas e um prato de barro cheio de farofa. Entro na obra arrepiado.
Todos os peões estão lá, mas parados, vestidos à paisana. Severino vem falar
comigo: “Já falei com o seu pai. Eles não querem trabalhar sem o Josenildo”.
Chego perto deles: “Vocês estão malucos!?” Eles nunca tinham me visto gritar
assim. Estou descontrolado, desesperado. “Vão trabalhar!” Empurro cada um deles,
um por um, mas eles me ignoram, como se eu fosse feito de vazios. “Vai
trabalhar, vai trabalhar!”. Saio de perto e vou para sala, rugir como um leão
impotente.
Meu
pai entra sem bater à porta: “Vou resolver tudo”, ele me fala, e eu tenho
vontade de dar um murro na cara dele. Nessa hora, vejo Josenildo entrar, todo
vestido de branco, bermuda e camisa nova. Parece meio cambaleante. Deve estar
bêbado. Mexe no chão, sobe uma poeira, como se trabalhando ou fazendo macumba,
ou sei lá.
Se
eu não tenho mais o que fazer ali, decido pegar o carro e ir embora. Bato a
porta com violência. Dou uma última olhada em Josenildo e mudo de ideia. As
canelas esbranquiçadas combinam com a roupa, mas contrastam com o corpo retinto.
Ele é mais forte que eu, por isso passo cuidadosamente por trás, sem que me
note. Pego rapidamente o sarrafo no chão e dou bem na nuca, igual meu pai me
ensinou. Ele nem percebe de onde vem, cai só para levantar mais poeira. Em
seguida, grito para o seu Severino: Leva para o hospital e resolve tudo. Sem
perder mais tempo, vou para o carro e saio fora.
Variação histórica do tema
As
canelas sujas com barro branco chamavam atenção naquele corpo preto e forte. Passei
do lado dele com cuidado, para ele não me notar. Abaixei rapidamente para pegar
no chão um pedaço de madeira grande e fui dar na nuca, por trás, igual meu pai
tinha me ensinado. Ele percebeu de onde veio: gingou para o lado, o pau passou
no vazio, e no balanço deu um rabo de arraia na minha cara. Caí no chão úmido.
Ele aproveitou a deixa e saiu correndo mato adentro. O capitão ainda tentou ir
atrás, mas logo outro preto deu uma rasteira, e ele também se estabacou. Os
escravos todos aproveitaram para fugir, enquanto meu pai chegava de cavalo,
dando tiro no vazio.