domingo, 8 de setembro de 2013

Autoficção e a 'abolição da gravidade'

Não é de hoje que se fala em autoficção. Os artistas-escritores sempre usaram suas próprias subjetividades para criar suas obras, mas com a autoficção esse limite, que parecia claro, óbvio [verdade x mentira, ficção x não-ficção], ficou mais esfumaçado, já que um dos recursos é usar a própria vida como "fonte direta", não apenas como inspiração para um retrabalho.

Mas qual seria, então, a diferença para a autobiografia? Seria a autoficção um elemento da chamada metalinguagem, em que se brinca com os códigos dados, o que seria "real" e o que seria "invenção"?

Não creio - apenas nisso. De maneira bastante rasa, poderíamos dizer que o processo da autoficção é exacerbar o elemento "real" na produção de textos literários. Mas é extremamente complicado criar parâmetros para dizer onde começa a ficção, onde se inicia a autoficção e o que é a autobiografia pura. Para isso, deveríamos acreditar na possibilidade de se produzir, criar sem qualquer elemento próprio, sem qualquer inspiração, e, a partir daí, criar parâmetros para delimitar essas fronteiras. Não há essa possibilidade, nem essa régua, que mapeie matematicamente as divisões entre os chamados gêneros. Ainda bem.

Como mais ou menos escreve o professor Gustavo Bernardo em "O livro da metaficção", o mais provável é que, ao escrever, mesmo o mais científico e isolado texto, estivéssemos produzindo só e simplesmente ficção. Os demais nomes aplicados à narrativa são formas de tentar explicar, não nos perder diante de uma avalanche de informação.

Dante e Virgilio no inferno, visto por Delacroix
Dá para perceber, porém, que, se admitirmos essa qualificação como diferencial, a chamada autoficção não foi inventada nesse século, nem no passado. Exemplo maior disso, eu sugeriria, é a "Comédia", de Dante, chamada divina. Antes que receba um apedrejamento em espaço virtual público, meu argumento se baseia no fato de o próprio Dante ter se colocado como personagem do livro que escrevia, mostrando como ele, e não outra pessoa, teve que ir até o inferno por sua Beatrice.

Não que, na dita "vida real", ou em vida, ele tenha passado por purgatório e chegado ao paraíso, mas o fato de se colocar como protagonista, e não outra pessoa, com qualquer nome, dá argumentos para se pensar o quanto não haveria diferença entre a "realidade" e a "ficção", para ele, Dante. Talvez Dante não tenha conhecido os círculos do inferno, mas queria que as pessoas que lessem sua obra achassem isso, achassem que ele tinha ido até as profundezas da vida - e da morte - por amor.

E não é essa a intenção de todo autor, artista, produtor [no sentido grego da palavra poiesis que quer dizer grosso modo "fazer", mas que é a origem de nossa "poesia"]? Dizer que o que ele faz/produz/escreve é a verdade? Ou ainda: não sonha todo artista em atingir, mesmo que momentaneamente, de relance, num lapso, a Verdade?

Outros casos usam de artifício inverso: retratam suas vivências, sem "literatices", mas mudam o nome de seus protagonistas. Penso, principalmente, no pessoal americano da década de 1950-60, como os beatniks, Bukowski, Fante. Na virada do 1990 para o 2000, eles voltaram como referência para um grupo forte influenciado pelo pessoal do Cardoso On Line [mas não somente eles] e que apelidaram essa proposta de autoficção de egotrip. Uma viagem usando o eu como timoneiro, sem muita autocrítica.

Desde então, a autoficção vem aumentando de força representativa. Em 2008-9, o mais famoso livro no Brasil [entre o que seria a alta literatura, apesar de esse nome ser bastante ruim e datado] foi uma autoficção: "O filho eterno", do Cristovão Tezza. Nele, Tezza, sem se autodenominar, fala sobre como foi difícil para ele criar um filho com síndrome de Down. Mais recentemente, esse processo se agudiza com Ricardo Lisias e "O divórcio", cujo título é autoexplicativo. A vida desses escritores é colocada nas suas obras de uma maneira que é interpretada pelo leitor como tendo sido exatamente aquilo que foi, o que eles viveram, sem qualquer acréscimo de outra fonte que não a própria vida.

Não li o segundo livro, mas na obra[-prima] de Tezza há muita divagação, também. Há muita reelaboração, muito fluxo de pensamento. Daí, o limite entre "verdade" e "mentira" sai do âmbito da física para a, com o perdão do trocadilho, metafísica. Não sabemos que o que se está sendo escrito é a verdade ou uma invenção do escritor, retrabalhada posteriormente.

A intenção desse textinho que já se alonga demais não é analisar obra a obra, mas mostrar como essas incidências que cada vez mais se correlacionam podem ser o retrato de uma época em que os nossos parâmetros são apenas e tão somente o "eu". Com o fim de referências fixas externas, com a - como eu escutei recentemente - abolição da gravidade, não há mais uma força que força a todos, igualmente.

Há um cenário em que as pessoas são incentivadas a se mostrarem, mais e mais, e outras pessoas, como espectadores de um big brother da vida real, assistem a tudo, para poder criar seus próprios parâmetros, avaliar, a partir de outras e semelhantes experiências formas como lidar com cada uma das suas próprias decisões.

Claro que nem sempre isso é consciente e há muito de voyeurismo barato, principalmente se considerarmos a proliferação do mercado de fofoca que explora a exibição nos mínimos detalhes de subcelebridades iniciantes. Mas, novamente, estamos aprendendo os limites desse processo.

Talvez, ao descobrir a individualidade do outro acabemos descobrindo a nossa própria, num processo curioso em que a alteridade se transforma, de uma maneira estranha, em transcendência. Você também é parte do outro, assim como o outro também te constitui. Mas isso é só uma hipótese que acaba de me ocorrer.

O que podemos sugerir com um grau forte de certeza é que nenhuma outra literatura representa tão bem o nosso momento histórico quanto a autoficção. O "eu" finalmente ganhou.

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