Como toda obra de arte, "Barba ensopada de sangue", de Daniel Galera, pode ser interpretada de inúmeros ângulos, além de não ser isenta de pontos menos brilhantes. Geralmente, ambos os fatores estão conectados, o que especificamente é o caso.
Assim como seu protagonista sem nome, Galera também tem [ou teve] barba e também gosta de nadar |
As descrições do cotidiano do personagem principal, um jovem gaúcho que não é nomeado em todo o livro, às vezes pecam pelo excesso de, exatamente, cotidiano. Há uma necessidade muito grande, e às vezes exagerada, de situá-lo no tempo e no espaço. Penso, por exemplo, no aparentemente alongado comentário sobre as eleições municipais do pequeno município de Garopaba, que dão vontade de bater de ombros.
Mas esse exagero descritivo - que abarca não apenas os gestos cotidianos, mas também as feições dos personagens e ambientes, que caem inevitavelmente em momentos poéticos que podem desagradar os menos ligados a uma forma de contemplação não referencial - faz completamente sentido dentro de um contexto em que o personagem principal tem uma doença que o faz esquecer completamente os rostos das pessoas que ele conhece em questão de minutos.
Aliás, esse ponto cria para o autor um excelente problema narrativo, já que ele vai ter que descrever as personagens com o maior nível de detalhamento possível para poder registrar, para o seu personagem, a identidade das pessoas em um outro formato de linguagem.
Identidade. Esse é um dos grandes temas deste livro de Galera - o escritor mais gaúcho dos paulistas. Como sabemos quem somos? Somos identificados com um nome, com um rosto, com um passado, com nossos antepassados, com nossos movimentos, com a nossa formação acadêmica, com nossos gostos, com nossa forma de rezar, com um tique? Esse assunto pode - e deve - ser interpretado por páginas e páginas, com excelentes exemplos do livro.
Vou optar por falar sobre um outro aspecto que também permeia todo o livro, talvez não explicitamente, e que também pode ser vivido fora das páginas do livro. Um assunto que cala mais fundo na minha forma de ver o mundo. Quem é que segura o timão de nossas vidas? Há o livre arbítrio ou estamos todos fadados a seguir adiante um plano desenhado por um Destino?
Peço licença para tergiversar rapidamente. Aos 17 anos, Nietzsche escreveu o seu primeiro texto que pode ser considerado como filosófico. É um ensaio curto que se chama "Fado e História" [daí eu ter usado no parágrafo passado "fadados"]. Como é apresentado, o pequeno artigo vai tratar de uma maneira ainda bastante simples, e sem a raiva dionísica que vai pintar todos os seus futuros escritos, temas que Nietzsche vai pensar a vida toda: religião, doutrina cristã, Deus, moral, eterno retorno etc. Mas como o título adianta, o texto fala muito e principalmente sobre "fado" e "história".
[N]a medida em que o homem é arrastado nos círculos da história universal, surge essa luta da vontade individual com a vontade geral; aqui se insinua este problema infinitamente importante, a questão do direito do indivíduo ao povo, do povo à humanidade, da humanidade ao mundo; aqui se acha também a relação fundamental entre fado e história. A mais elevada concepção da história universal é impossível para o homem; mas o grande historiador, tal como o grande filósofo, torna-se profeta; pois ambos fazem abstração dos círculos interiores para os exteriores.Para logo em seguida perguntar: "Não nos vem tudo ao encontro no espelho de nossa personalidade?"
É, como se percebe, a discussão entre livre arbítrio e destino. Ou, como uma personagem importantíssima, mas praticamente ausente, fala no finzinho do livro de Galera: "Ou existe livre-arbítrio ou não existe. Se o ser humano é um agente livre, se temos escolhas, podemos ser responsabilizados. Se não existe, se o universo é predeterminado pelas leis da natureza e tudo não passa do resultado do que aconteceu logo antes, aí ninguém tem culpa do que faz. Nem rancor nem perdão fazem sentido."
A resposta do protagonista, que se acha um inculto nadador, é digna deste jovem Nietzsche: "Quero dizer que as duas alternativas me parecem erradas. Ou as duas tão certas ao mesmo tempo. Duas respostas certas pra pergunta errada." E umas linhas abaixo: "Sei que não existe escolha e que mesmo assim a gente precisa viver como se existisse. Só isso."
As palavras parecem complementar as do filósofo ainda imberbe: "A vontade livre aparece como aquilo sem vínculos, arbitrário: é o infinitamente livre e errante, o espírito. O fado, porém, é uma necessidade, se não quisermos acreditar que a história do mundo é um sonho incerto, as indizíveis dores da humanidade são invenções, e nós mesmos joguetes de nossas fantasias. Fado é a infindável força de resistência contra a livre vontade; livre vontade sem fado é tão pouco concebível como espírito sem real, bem sem mal. Pois só a oposição cria o atributo...".
O que ambos estão demonstrando em seus discursos é a inocência que é pensar a vida apenas como títeres de um grande arquiteto do mundo, de um escritor cansado que já escreveu o épico de nossas vidas e que agora assiste a tudo deitado no seu sofá, entediado. Porém, não há como trazer para o homem, esse homem comum, de todos os sexos, o poder de todas as decisões, porque há limites claros entre o que ele pode e o que ele não consegue fazer. Pensar que o homem substituiu Deus em seus atributos é levar a vida seguindo a ideologia da Xuxa, quando ela afirmava que "querer é poder". O que não é nem aconselhável, quiçá desejável.
Os dois também estão dizendo que há uma combinação, que pode ser vista como cruel entre esses dois elementos, mas que deve ser encarada com coragem quase estoica. Mesmo que não tenhamos todas as possibilidades de ação, que sejamos forçados por circunstâncias a tomar determinadas atitudes, devemos encará-las como nossas responsabilidades. Devemos enfrentar suas consequências, não com a culpa cristã que arrasta correntes como assombrações, mas o peito aberto que os mitos gregos enfrentavam sua sina, após terem sido avisados por deuses amoralistas que voltavam para o Olimpo logo em seguida.
Nietzsche diz ainda da necessidade de ligação entre esses dois elementos, em como só haveria a possibilidade de existência com os dois elementos. Na ausência de um, o outro também pereceria, e na ausência de ambos [caso isso fosse possível], provavelmente - e agora especulo - ambos renasceriam com outro formato, outro nome.
Na livre vontade está para o indivíduo o princípio da singularização, da separação do todo, da absoluta irrestrição; mas o fado torna a colocar o homem em ligação orgânica com a evolução geral, e o obriga, na medida em que busca dominá-lo, ao livre desenvolvimento de forças contrárias; a livre vontade absoluta, sem fado, transformaria o homem em Deus, o princípio fatalista em um autômato.Em última análise, sempre temos escolhas. Mas nem sempre as escolhas foram escolhidas por nós mesmos. Mesmo em um restaurante de prato único, pode escolher não comer nada. Mas como Nietzsche - esse já o maduro e bigodudo de "Genealogia da moral" - diz, "o homem preferirá ainda querer o nada a nada querer...".
O livro de Galera sugere, talvez de uma maneira muito fatalista, que sempre estamos no meio do nosso devir rumo a um futuro possível, quase provável, e que nos traz, vez por outra apenas, a possibilidade de nos surpreender. Mas diferente de se colocar como vítima de um mundo cruel que só trouxe opções negativas, o protagonista sugere abraçar o seu fado, como abraçou o seu passado, que o constrói. Talvez demonstrando que entre o instantâneo presente, o futuro imaginado e o passado que se apaga com os rostos, há uma ligação mais forte que podemos apreender cotidianamente em nossa pobre e limitada linguagem.
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