Seu neto passou correndo com uma velocidade absurda. Flash. Afundado
numa poltrona de couro marrom, enquanto o fim de setembro faz um confortável
frio lá fora de casa, Andrés observa sua neta Mona indo atrás dele, de
Pedrinho, na mesma velocidade. Flash. Já passaram. Voltam agora, na mesma
velocidade. Flash. Balançam os bracinhos ao lado do corpo para dar mais impulso.
Estão brincando de pique? Ainda se brinca de pique? Correm em volta dele.
Pedrinho fugindo e rindo, Mona, caçando o primo mais novo e gargalhando. Têm
quase a mesma idade. Pedrinho tem 6, ele acha, enquanto Mona é um pouco mais
velha, 7 anos. Ele acha. Não sabe direito. Faz tanto tempo, são tão diferentes.
Não consegue se lembrar. São tão pequenos, tão pequenos, são tão iniciantes
numa vida que vai ser rápida para eles. Flash. Correm, como se não houvesse
qualquer outro motivo na vida. Riem, despreocupadamente, riem com todos os
dentes à mostra, com todos os sabores e sons, riem perdidamente, gostosamente.
Sente um pouco de inveja deles, principalmente de Pedrinho. Não consegue
evitar. Flash. O som das risadas se afasta, esmaece, vira eco na memória. Sente
inveja não da capacidade de movimentação do menino tão novinho que ainda tem dobras
nos braços gordinhos. Não é da velocidade. Andrés gosta de ficar parado.
Aprendeu a se aceitar preguiçoso, depois de velho. Do que ele sente inveja de
Pedrinho, então? E antes que consiga raciocinar, já tem a resposta, a resposta
que ele tem vergonha de ter, que ele não queria saber, que ele não queria
sentir. E ele não sabe por que ele tem vergonha e não se lembra um momento em
que não teve vergonha. Como se todos os seus movimentos fossem cuidadosamente
pensados em prol de outras pessoas, de quem o observa, como se ele sempre
quisesse agradar as pessoas. Até hoje. Como se ele quisesse ser amado, apenas.
Ele sente uma vontade de ser Pedrinho, é isso. Não consegue
evitar esse raciocínio, e ele vem mais forte e Andrés entorta o rosto, aperta
as mãos enrugadas, como se tivesse tomado um remédio amargo. Ele quer viver uma
vida sem os limites que lhe foram impostos, como Pedrinho, duas gerações mais
novo, conseguiu – está conseguindo. Não ter que ser nada, apenas viver. Apenas
correr, fugir, rir, rir despreocupadamente – será que já riu dessa maneira? Flash.
Não se lembra, não tem essa memória – sem que isso quisesse dizer nada para
ninguém. Sem que seus gestos fossem interpretados exatamente por quem deveria
apenas acolhê-lo. Sente uma dor no meio do peito, como se o coração estivesse
congelando. Uma dificuldade de respirar. Uma tristeza que o invade por
completo, descendo da cabeça para o restante do corpo. Começa a inspirar com
mais força, para tentar obrigar o corpo a se controlar, a si mesmo, porque tem
medo do que pode acontecer caso não se segure, e expirar descensuradamente,
para dar a chance do corpo também ter a sua vontade respeitada. O processo não
funciona e sente o corpo tomar o controle e ele fica sem ar. Começa a piscar os
olhos com dificuldade. O sangue desce do corpo e entre uma piscadela e outra já
ele não está mais sentado, mas correndo, correndo pela casa, como Pedrinho, não
é Pedrinho, mas um menino da idade de Pedrinho, um pouco mais velho, e a casa
não é aquela que ele estava e ele já não pensa como o sexagenário de cabelos
brancos Andrés, mas como a criança que Andrés foi, um dia, há muito tempo.
Andrés corre atrás de uma prima, um pouco mais velha. Ele
ri, ri como não imagina que um dia pudesse ter rido, e corre desbragadamente.
Flash. Não sabe se quer encontrá-la, qual é o objetivo de correr, apenas corre.
De vez em quando se esbarram, já que a sala onde correm não é tão grande, mas
continua a correr porque quer correr e porque correr o faz rir, é um objetivo
em si. Quando se cansam, a prima sugere irem para fora brincar. Ela mora em uma
rua sem saída, e os pais de ambos os autorizam a ir. Andrés vai de mão dada com
a prima, como se precisasse de alguma proteção maior. Ele é um menino lindo,
que já demonstra o adolescente e o adulto exuberante que vai se tornar. Pele
morena como um índio, cabelos pretos escorridos, olhos negros, profundos, como
se guardassem o segredo de todas as perguntas. Mesmo jovenzinho, tem um corpo
sólido, que atrai a atenção e a curiosidade de mulheres de todos os tamanhos e
idades. Ele não se importa muito com isso, não pensa nessas coisas, e nem
repara quando as mães de seus amiguinhos passam a mão em seus cabelos finos,
empapados de suor. Ele só pede para que o soltem para ele voltar a brincar. Mas
elas o agarram e o enchem de beijos que ele faz questão de limpar antes de
correr, para o desespero das balzaquianas.
Lá fora, a priminha encontra o grupo de amigas que mora nas
casas e ruas vizinhas. Estão todas brincando de elástico e, ao vê-los, vão em
sua direção. Ele as conhece de vista, lembra delas, principalmente de uma
pequena menina que tem a sua cor, o rosto delicado e os cabelos castanhos
anelados, que ele sente algo diferente, mas que não sabe direito dizer. É como
se ela tivesse um rosto que lhe trouxesse um prazer, mas que também causasse
uma dor, leve, mas constante, só de ser contemplado. Ele não sabe o que é e
evita olhá-la, porque não quer que essa sensação estranha o envolva, mas ele a
olha, não resiste e a olha de vez em quando e sente esse misto de prazer e de
dor misturar no baixo ventre e fica nervoso, e se senta na escada enquanto a
prima abraça e beija todas as amigas.
“Andrés, você conhece as minhas amigas?”, ela pergunta para
ele, como se cumprisse uma etiqueta social recém aprendida, mas que na verdade
tinha intenções bem arquitetadas. Ele balança a cabeça afirmativamente sem
querer pronunciar qualquer palavra, mas querendo de alguma maneira participar
daquele ambiente. Ele tinha um misto de atração e repulsa dentro dele. Forças
combinadas e antagônicas que o impediam de fazer qualquer movimento brusco. Um
sorriso lhe estampou o rosto, sem que ele pudesse controlar, logo o sorriso que
ele achava que era feio porque mostrava os seus dentes que ele não gostava de
mostrar, e que fechava os olhos e transformava sua cara em algo que não era
reconhecido.
“Vamos brincar?”, a prima pergunta novamente, dando as mãos
para as amigas, formando uma roda, sem esperar que Andrés responda qualquer
coisa, mas ele, obediente, sempre um bom menino, novamente balança a cabeça,
positivamente, mas com menos força, com as forças antagônicas exercendo mais
pressão sobre o menino que queria apenas não estar passando por aquela
situação, mas que também queria passar por aquela situação, enquanto as meninas
pulam, em roda, e cantam alguma cantiga que não saberia dizer, repetir ou
cantar jamais.
Assim como começaram elas também param de rodar, com a prima
já deixando de ter o protagonismo, com uma menina mais velha, mais magra e mais
alta falando em seu ouvido, algo que ela sorri, sem querer mostrar qualquer
detalhe, mas já mostrando, e pergunta a Andrés se ele queria brincar de
salada-mista.
O menino fica sem palavras num instante e no instante
seguinte também mas no terceiro instante ele fala que sim, menino bom, menino
obediente, que jamais provocou qualquer problema, é tão amável com todos,
sempre respeita, sempre é o melhor aluno, melhor do colégio, tão inteligente,
sim, ele brincaria mas que não podia valer a salada-mista. Não podia valer o
beijo na boca, o menino de 6, 7, 8 anos está sentado na escadinha à porta da
casa à beira da rua sem saída e fala pela primeira vez que não quer, não brinca
se tiver salada-mista, e a menina alta e magra diz que sim, que tudo bem, que não
vai haver salada-mista e logo fala com a prima, no ouvido, cochicha, e logo as
duas estão novamente sorrindo, e elas todas agora cochicham em ouvidos e ele
sabe o que vai acontecer, já imagina, mas não tem certeza, e tem dúvida e fica
novamente paralisado, não quer fugir, não quer sair dali, mas também não quer
ficar, não tem direito suas vontades claras, não sabe bem o que fazer, só sabe
que não quer salada-mista. É excluído, mas ainda se sente parte daquilo.
“Começa comigo”, diz a prima e ele fica pensando no que vai
acontecer, as outras meninas, a mais velha, fica atrás da prima, mas a outra
alta, e a bonitinha ficam, e uma outra, mais novinha, se sentam do lado dele,
que se espremeu nos degraus da escada para dar espaço para as outras meninas. A
mais velha tapa os olhos da prima, diz algo no ouvido e começa perguntando: “é
esse?, é esse?”, e a prima apenas responde, “não, não”, e a amiga alta passa
por Andrés que sente um alívio imenso, como se tivesse sido libertado, e ela
chega na menina bonitinha e a prima diz: “sim”. “Pêra, uva ou maçã?”, “Pêra”,
responde a prima e vai dar um exagerado aperto de mão, que balança o corpo das
duas meninas. O coração de Andrés dispara e ele, ainda mais ansioso, com
vontade de sair, mas algo o prendia, era como se suas pernas não mais obedecem
a ele, como se houvesse havido uma divisão entre o que ele queria e o que o
corpo exigia, sentiu um pequeno formigamento em todo o corpo, quando a grandona,
depois de novamente cochichar no ouvido da bonitinha, começa a perguntar “é
esse? É esse? É ESSE?”, e ele não sabe, mas ele sabe, ele imagina, mas ele
duvida, e ele logo, e é logo escolhido. Sem muita demora. Sem muita explicação.
Sem muita escolha. O coração está em todo o corpo e ele espera a resposta e ele
não sabe, mas ele sabe e ele deseja, mas ele tem medo, ele tem uma parede de
medo na sua frente, ele tem uma série de regras a respeitar, ele é um menino
bom, e ele escuta, sem pergunta, mas houve a pergunta, e ele não a ouve, ele só
ouve a resposta e a resposta, com o dedo apontado para ele, o dedo indicador da
mão esquerda, enquanto a mão direita tapa os olhos da outra, da bonitinha, e
ele ouve a resposta que ele sabia, mas não sabia, que ele já tinha ouvido, mas
ainda não tinha sido pronunciada, “salada-mista”.
As pernas que estavam mortas tomam vida e ele sai correndo
em direção à casa, apavorado. Entra pela porta, que estava entreaberta, e vai
em direção a alguém, algo que o pudesse consolar, alguém que lhe entendesse que
a regra foi quebrada, que não foi isso o combinado, não poderia ter salada-mista,
e ele não encontra ninguém na sala que ele goste, e ele continua correndo e não
demora nada e ele já está na cozinha e encontra a mãe e a perna da mãe e ela a
agarra, e enfia o rosto na perna da mãe, como se quisesse entrar, sumir, voltar
para um lugar que ele nunca tinha querido deixar. As meninas vêm atrás dele
pedindo, exigindo que ele volte, porque elas estavam brincando e ele tinha
abandonado a brincadeira bem na sua hora, e ele tinha que aceitar, e ele não
quer tirar o rosto de dentro da perna da mãe, que está sentada, tomando uma
cerveja amarelo transparente, ele não quer tirar o rosto daquele conforto,
daquela seda, da mãe com os seus cabelos encaracolados, e ele quer apenas que
elas vão embora, não quer discutir, não concorda com elas, elas estão roubando,
mas elas têm que ir embora, enquanto a algazarra aumenta ele sente uma mão no
ombro, uma mão grande, de um adulto, e reconhece a mão e vê que era do pai, uma
mão grande, de homem, de carinho e dureza, que ele lembra do pai, de uma cena
quando ele estava muito doente, de uma doença que ele nunca guardou o nome, era
novo e teve essa doença e só conseguia ficar quieto com calma quando o pai
chegava em casa, e ele se lembra de um dia em que passou toda a tarde chorando,
pedindo o pai que chegou quando o céu já estava escuro e ele reuniu as últimas
forças e correu e pulou no pescoço do pai que o agarrou, e falou para ele ficar
calmo, que já estava tudo bem, que já tinha passado, e ele soluçava de choro, e
aos poucos se acalmou e dormiu no ombro do pai, e ele agora soltou a mãe e
aceitou a mão do pai que estava tocado pelo álcool, mas o menino não sabia, e
ele, o pai, tinha uma figura que impunha respeito, com os seus bigodes dos anos
de antigamente, bigodes que todos os homens que impõem respeito usam, e ele se abaixou
para ficar na altura do garoto, que estava soluçando novamente, sem chorar, a
mãe o libera sem falar qualquer frase ou palavra, e ele se vira para o pai, já
morto de vergonha por passar por essa situação, não consegue largar totalmente
a mãe, segura a perna da calça, mas se vira para o pai, que está com o cenho
fechado, inquieto, nervoso, como se algo tivesse saído de maneira errada, e ele
tinha que consertar, ele tinha que ser o pai ali, tinha que ensinar o filho,
tinha que mostrar o que é o certo, e o que é errado, dar um parâmetro para que
o filho se apoie durante toda a vida, e então o pai mira nos olhos da criança,
consegue captar a atenção da criança, há um silêncio em todo o ambiente e,
então, o pai fala abruptamente: “se você não for lá, você é viado”.
O menino agarra novamente a perna da calça da mãe, e afunda
mais do que nunca a cabeça na perna dela. Não sabe o que fazer, ele era viado?,
mas viado não são aquelas bichas afetadas, aqueles homens que se vestem de
mulheres, aqueles errados, invertidos, estranhos, bizarros, misturados, aquelas
pessoas más? Se eu não for lá fora, se eu não beijar essa menina, se eu não
quiser isso, eu vou me transformar em viado? Eu vou ser uma pessoa ruim? Meu
pai não vai gostar mais de mim?
“Deixa o menino, Osvaldo”, diz a mãe, sem muito interesse,
enquanto continua a conversar com alguém à sua frente que ele não sabe quem é.
O que eu devo fazer?, se pergunta Andrés e fica congelado,
como não queria ficar, queria ter vontade de ir lá fora, agora ele queria,
queria ir lá fora e beijar a menina, como o pai disse que ele teria que fazer,
porque se ele não beijar ele vira viado. E ele não quer ser viado, ele quer ser
igual ao pai, ele quer ser homem, homem que gosta de mulher, não quer gostar de
homem, e ele volta para si, e está chorando, e está chorando miúdo, mas ninguém
repara nele e ele quer que alguém o abrace, e ele quer que ninguém repare nele,
ele quer que alguém o ajude, mas que ninguém perceba que ele está chorando, e
ele fica ali, chorando, chorando, sem fazer barulho, com o rosto quente,
vermelho, suado, choro misturado com suor e baba que sai da boca. As meninas
desistem dele e voltam para lá fora, o pai tenta retirá-lo da mãe que o mima
muito, o puxa, uma, duas vezes, mas a mãe repete para deixá-lo ali e o pai
desiste, contrariado, pensando muito, quieto, com dúvidas, nervoso, inseguro,
será que... meu filho... pode... não quero... não vou deixar... não o meu
filho...
O menino afunda, afunda e afunda a cabeça na mãe e sem
perceber desperta de volta ao sofá de couro marrom escuro, enquanto Pedrinho e
Mona correm pela casa e se agarram e rolam no chão. Flash. Andrés se olha e
pergunta se alguma coisa teria mudado se ele tivesse beijado a menina – qual
era o nome dela? Não se lembra. Se pergunta se ele teria sido outro homem, se
teria sido menos homem, se teria sido mais livre, ou mais acorrentado, teria
tido uma vida mais simples, um parâmetro mais óbvio, se ele tivesse sabido o
que era o certo, se não tivesse despertado tão cedo e descoberto que ele estava
sozinho, diante do mundo, que não apresenta caminhos, que o mundo é um imenso
deserto sem sol no céu para saber onde nasce o horizonte. Não percebe as
respostas, mas sente uma sensação quente de quem fez o que poderia ter feito.
Sente um orgulho, um pequeno orgulho da sua atitude, e sorri, sozinho, se
levantando.
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