terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Ser e / ou não ser

Ouvi dizer que o paradigma dessa nossa atual modernidade esgarçada - exagerada e, ao mesmo tempo, gasta - não seria mais o complexo de Édipo, ou Electra, dependendo do sexo, em que devemos "superar" os nossos grandes "marcos regulatórios". Seria uma espécie de complexo de Hamlet, em que ficamos na dúvida sobre ser ou não ser. Eu, debaixo da minha ignorância, adicionaria que há uma solução para essa questão. Podemos simplesmente ser e não ser. O famoso trecho da peça:
Ser ou não ser... Eis a questão. Que é mais nobre para a alma: suportar os dardos e arremessos do fado sempre adverso, ou armar-se contra um mar de desventuras e dar-lhes fim tentando resistir-lhes? Morrer... dormir... mais nada... Imaginar que um sono põe remate aos sofrimentos do coração e aos golpes infinitos que constituem a natural herança da carne, é solução para almejar-se. Morrer.., dormir... dormir... Talvez sonhar... É aí que bate o ponto. O não sabermos que sonhos poderá trazer o sono da morte, quando alfim desenrolarmos toda a meada mortal, nos põe suspensos. É essa ideia que torna verdadeira calamidade a vida assim tão longa! Pois quem suportaria o escárnio e os golpes do mundo, as injustiças dos mais fortes, os maus-tratos dos tolos, a agonia do amor não retribuído, as leis amorosas, a implicância dos chefes e o desprezo da inépcia contra o mérito paciente, se estivesse em suas mãos obter sossego com um punhal? Que fardos levaria nesta vida cansada, a suar, gemendo, se não por temer algo após a morte - terra desconhecida de cujo âmbito jamais ninguém voltou - que nos inibe a vontade, fazendo que aceitemos os males conhecidos, sem buscarmos refúgio noutros males ignorados? De todos faz covardes a consciência. Desta arte o natural frescor de nossa resolução definha sob a máscara do pensamento, e empresas momentosas se desviam da meta diante dessas reflexões, e até o nome de ação perdem.
Qualquer um percebe que Shakespeare, pela boca do príncipe dinamarquês Hamlet, está falando sobre a questão da existência, que seria, séculos depois, ecoado por Camus na sua famosa primeira frase de "O mito de Sísifo" ["o suicídio é a única questão filosófica verdadeira"]. Ele já sugere que, diante do duro destino que nos é reservado, ou do "fado [que é] sempre adverso", por que deveríamos continuar?, respondendo que é a consciência, o refletir, o pensamento quem "definha" essa "resolução" via punhal, já que os males do outro lado, do lado da morte, não são conhecidos.

A questão existencial, porém, não é a única forma de pensar esse assunto, entre ser e não ser. Temos a tradição, via pensamento ocidental-judaico-cristão, de imaginar nossa existência como algo parado, estático, imóvel. Seríamos sempre a mesma pessoa independentemente do "escárnio" e dos "golpes do mundo" que temos que suportar diariamente. Quando, na verdade, isso não ocorre, já que as "empresas momentosas se desviam da meta diante dessas reflexões". Temos, sim, uma identidade a que recorremos para sabermos quem razoavelmente somos, mas essa identidade é bem mais flexível do que supõe nossa vã filosofia.

Esse papo de flexibilidade, de "modernidade líquida" [que eu não li] é muito criticado hoje em dia em que termos como "pós-modernidade" são vistos como, quase, uma chacota. Na verdade, na minha mais que humilde opinião, realmente não viveríamos nada muito diferente da modernidade, ou o que tradicionalmente associamos à modernidade, apenas que essa modernidade, como dito lá em cima, estaria muito gasta. Após anos explorando os mesmos critérios, os mesmos ideais, chegamos a um ápice, que ao mesmo tempo é a maior representação da modernidade e, por outro, já demonstra a fragilidade do argumento. Momento, arrisco, de uma grande transformação.

Essa "modernidade esgarçada" nos deu, no entanto, a capacidade de trafegar entre grandes paradigmas identitários, sem que isso nos marque profundamente a alma. Vejamos um exemplo prático, para não ficar apenas na teorização. Imagine que você more fora do país. Num lugar tipo a Dinamarca, terra de Hamlet, por um tempo específico, para estudar, fazer um mestrado. Você nasceu brasileiro, mas não está brasileiro. Você está estrangeiro, igual a muitos outros lá. Naquele momento, você se identifica, sua identidade, é a do outro, daquele que não é dinamarquês. Ou seja, apesar de "ser" brasileiro, neste momento específico, você "não é" brasileiro.

Há outros casos, um pouco mais complexos, mas que eu gosto muito, e que têm me acompanhado recentemente. Se acompanharmos o pêndulo que vai de Nietzsche a Heidegger, podemos ver que, se um lado afirma a vontade de potência como princípio fundamental da vida, o outro demonstra a nossa forte dificuldade de interagir no mundo sem objetificá-lo, sem torná-lo objeto de nossas vontades.

Interpreto esses dois pensamentos, junto com a ideia de ser e não ser, como a necessidade de em alguns momentos você se impor, tentar colocar sua vontade em prática, torná-la real, factível - que é quando nós batalhamos para completar nossos sonhos, nossas vontades. Que é quando deixamo-nos existir.

Mas insistir em completar a sua vontade, dentro de uma sociedade complexa, e sem levar em conta a vontade do outro, é uma das formas de tirania que existem. É o praticar d'"as injustiças dos mais fortes, [d]os maus-tratos dos tolos". Temos que, sim, tentar tornar verdade, fato nossas vontades, mas saber que o outro também tem sua individualidade e que ele tem todo o direito de ignorar as nossas próprias vontades. Só nos resta, nesses casos, sofrer a "a agonia do amor não retribuído", e torcer para que isso passe o mais rápido possível. Há momentos em que é necessário o "não ser". O esperar, o exercício do "mérito paciente".

A opção entre ser e não ser, essa escolha entre o existir ou não, entre o colocar em prática sua vontade, ou recolher-se até a tempestade passar, pode resolver muito dos nossos problemas atuais, em que acreditamos ser, sempre, o centro das atenções - ou, no mínimo, deveríamos ser, por uma questão de justiça. Não resolveríamos todos os problemas, certamente, nem, ao menos, nos livraríamos da sina de criar novos problemas, que nem imaginávamos possível [questões de identidade, neuroses aflitivas, etc.]. Mas temos que errar sempre erros diferentes, não é mesmo?

De qualquer forma, é bom deixarmos claro, para nós mesmos, que dentro de uma sociedade conturbada como a nossa, temos limites, nebulosos limites que não se apresentam como tal. Com o passar do tempo e aos poucos, conseguimos vislumbrar suas características e podemos agir com o fim de o evitarmos ou simplesmente o aceitarmos. Com a convivência com o outro, criamos essa inteligência emocional, que nos demonstra quando, exatamente, podemos ser, e quando devemos não ser. Estou, neste momento, de fins de ano, suspeitando fortemente que esta é a verdadeira sapiência do homem. A única que não se aprende.

***

ps. Eu sempre achei curioso algumas línguas não terem a diferenciação entre "ser" e "estar". Acontece ao menos no inglês, francês e alemão - entre as que eu tenho alguma noção. Já escrevi isso inúmeras vezes, e repito agora: Borges sempre lembrava desta diferença, entre o "existencial" [ser] e o "circunstancial" [estar], entre aquilo que nós éramos, que nos definia, e aquilo que nós poderíamos, de acordo com outros fatores, ser, ou não. Daí, eu sempre imaginei como seria a tradução do mais famoso dos versos de Shakespeare não por "ser ou não ser", mas por "estar ou não estar". Heidegger poderia entrar na roda, com uma nova versão do agora chamado "Estar e tempo". Combinaria bem com esse período de modernidade esgarçada.

sábado, 21 de dezembro de 2013

O autorretrato do ano

A foto correu o mundo via redes sociais. Três das pessoas mais importantes do mundo, no meio de um enterro de um dos maiores ícones do século XX, se juntaram, sacaram um celular potente, fizeram uma pose descontraída, falaram xis, e se autofotografaram. Ou, em inglês, fizeram um “selfie”. A história seria apenas exótica, caso os homens e a mulher em questão não fossem o presidente dos EUA, Barack Obama, a primeira-ministra da Dinamarca, Helle Thorning-Schmidt, e o primeiro-ministro do Reino Unido, David Cameron – no velório do ex-presidente sul-africano Nelson Mandela.

 Acho que a Michelle não gostou de não ser chamada [flagra de Roberto Schmidt/AFP]
Muito já se criticou a postura dos três líderes mundiais, que teriam desrespeitado a memória do sul-africano. Outros fizeram questão de defender a descontração do trio, lembrando que a cerimônia fúnebre não era necessariamente triste, mas uma celebração da vida do homem que representou, pessoalmente, o fim do regime do Apartheid. Não importa quem tem a razão nesta discussão. A foto dos três juntos se tornou um dos principais fatos do ano. Ou o autorretrato de 2013.

Não que tenha tido a relevância política das manifestações que abalaram Turquia, Brasil e outros países do mundo. Nem que tenha estremecido as relações multilaterais, como os escândalos da espionagem patrocinada pelos EUA. Ou o impacto da mudança de um papa taciturno, para um que abraça as pessoas nas ruas naturalmente (Aliás, que ano foi esse 2013, hein?). Mas o “selfie”, esse hábito de registrar a própria imagem com o celular ou uma câmera digital e, em seguida, compartilhar em uma mídia da internet, mostra muito como nos comportamos, no âmbito privado – ou o que restou dele – neste ciclo que agora se encerra.

Esta não é uma conclusão deste texto ou deste que vos escreve, mas uma constatação geral. “Selfie”, o diminutivo carinhoso de “Self”, que por sua vez quer dizer algo como “a si mesmo”, foi escolhida a palavra do ano pelo tradicional dicionário Oxford. A frequência com que ela foi usada na internet subiu 17.000% neste ano, se comparado com o ano anterior. O dicionário ainda conseguiu traçar a primeira aparição da palavra com essa acepção: foi em um fórum de internet na Austrália em 2002. De lá para cá, a palavra, e o hábito de se autofotografar, explodiram. Mas o que isso representa?

Muita gente tentou pegar o caminho do narcisismo exacerbado na interpretação do fenômeno. Inclusive uma capa do tabloide New York Post, em que mostrava como uma turista, ao perceber que havia um fulano tentando pular da ponte do Brooklyn, sacou o celular e se enquadrou junto ao suicida em potencial para registrar o momento (em tempo: o rapaz não se jogou). O título da reportagem foi um trocadilho intraduzível: “Selfie-ish”, sendo que “selfish” é visto normalmente como “egoísta”.

É claro que vivemos um momento em que nos desacostumamos a sair do centro das atenções. Compartilhamos todos os nossos passos na tentativa de mostrar o quanto merecemos receber os olhares dos outros. Queremos ser as celebridades cotidianas da vida social que se estabelece ao nosso redor. O “selfie” representa bem esse período, claro, já que você vira o paparazzi de si mesmo. Mas há ainda uma outra forma de interpretar que talvez seja complementar a essa.

Desde que a fotografia foi inventada – ou mesmo antes, quando a ideia de “retrato” entrou na pintura – sempre houve quem gostasse de deixar registrado sua imagem para a posteridade. E outros que não, que fogem de momentos assim, que abaixam a cabeça, jogam o cabelo na frente do rosto. Os motivos dessa diferença de comportamento entre os “exibidos” e os “envergonhados” podem variar enormemente, e esse texto não vai tentar elencá-los. Parece óbvio, também, que o número de exibidos subiu, proporcionalmente, enquanto o de envergonhados teria diminuído. Mas há um detalhe que, numa leitura superficial, tem ficado de fora: como, agora, o retrato é feito pela própria pessoa, sem o auxílio, ou a participação de ninguém mais.

Como dito, autorretratos não são novidades no mundo estabelecido das artes. Rembrandt e Van Gogh, para ficar em exemplos fáceis, são artistas que gostavam de se usar como modelos. Se no caso do misterioso Rembrandt, podemos supor que era uma forma de autoinvestigação, estudo, e facilidade – já que o modelo está disponível ao mesmo tempo que o pintor –, no de Van Gogh, além desses mesmos motivos, também havia um outro componente que se encontra nos atualmente famosos selfies: o isolamento social. Rembrandt pintou seus mais de 60 autorretratos ao longo de toda vida, Van Gogh concentrou o grosso da sua produção autorreferencial em apenas dois anos – os dois mais conturbados anos de sua vida.

Assim, o selfie representaria a ausência de um outro, que compusesse a relação criada no retrato. Imaginemos o exemplo de um modelo-fotógrafo que, agora, viaja sozinho, e quer deixar marcado que ele visitou – ou consumiu – tais e tais lugares. Não precisa de ninguém para sair, se divertir, conhecer o mundo. É independente, totalmente livre, e ainda um cidadão cosmopolita. Mas esse raciocínio não se sustenta tão facilmente. Principalmente num mundo em que a virtualidade se confunde com a realidade.

Este autorretrato mostra, em vez dessa completa independência, uma incapacidade de se relacionar dentro de uma sociedade factível, imperfeita, cheia de arestas solas. Uma inabilidade social, em tempos de redes sociais. Não é que nosso modelo-fotógrafo tenha preferido viajar sozinho – ele simplesmente não teve ninguém para viajar com ele. Isso não é um problema em si. Apenas se torna um problema quando se encara dessa maneira. E o selfie teria um componente que desnudaria essa farsa de autossuficiência.

Com o autorretrato o modelo-fotógrafo tenta, de uma maneira virtual, arranjar companhia para si. Porque um selfie só é um selfie se o retrato for postado. O selfie, em seguida, cruza os dedos para que a sua foto seja curtida, comentada, compartilhada. Que ele se transforme, por uma questão de segundos, no foco das atenções, desse mundo em que o déficit de atenção se tornou a resposta para todos os problemas das crianças, e a ritalina, que combate o problema, se tornou uma droga tomada no café-da-manhã.

Em vez de liberdade, o selfie demonstra uma dependência absurda do outro. É uma aposta no individualismo, num “eu me basto”, mas num individualismo desesperado, que precisa que alguém, por favor, o observe para existir. Uma tentativa de roubar o olhar do outro para que, só assim, a sua individualidade pudesse ser notada. Um pedido de socorro.

Há um exercício no teatro em que os atores, sentados em uma roda, devem tentar chamar a atenção de quem está à sua esquerda. Vale qualquer ação: falar, gritar, chorar, puxar, levantar... Mas como cada um se vira à esquerda para realizar o seu próprio objetivo, o processo parece impossível. O selfie é assim. Escancara a nossa privacidade para demonstrar toda a nossa inabilidade de lidar com o público. É um exemplo, um ótimo exemplo, de um tempo em que todos querem falar e ninguém escutar, a maioria quer ser escritor, a minoria, leitor.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Nietzsche cristão?

É claro que em O anticristo, livro de 1888 bastante anticlerical, Nietzsche continua usando do seu vocabulário ácido para martelar as grandes verdades estabelecidas e livrar o homem de uma tutela dada a priori. Mas sua atitude perante o Cristo, em si, é bem mais dúbia. Não que ele chegue a ter uma admiração irrestrita pela figura imponente que, de tão importante na História, dividiu a maneira como contamos os anos. É mais como se ele aceitasse as posições de Cristo, e o interpretasse como um igual, deixando na conta de seus seguidores, principalmente Paulo, o crime de ter deturpado seus ensinamentos.

Nesta obra, Nietzsche reforça uma ideia sua de que o grande objetivo do ser humano é não ser sujeitado por nenhuma ordem, não obedecer cegamente, sem contestação, qualquer obrigação moral. Daí ser contra a ideia de um Deus que fale o que é certo ou errado – para ele, Nietzsche, é importante que o homem descubra sozinho, da maneira que lhe for possível, o que lhe é bom ou mau. Para ele, o princípio supremo das religiões está inscrito na passagem de que “Deus perdoa a todo o que faz penitência”. Como não temos acesso a Deus diretamente, essa frase quer dizer, na interpretação do alemão, que devemos obedecer ao sacerdote, que vai nos dizer quantas e quais penitências devemos tomar.

Cristo – Nietzsche prefere chamá-lo de “Redentor”, ou “Jesus de Nazaré” – agrada ao alemão à medida em que é um personagem que lutou contra a forma institucionalizada de religião que existia à sua época. Não é possível saber se Jesus tenha negado a igreja judaica, explica Nietzsche, ou se posicionado contra uma ideia maior de igreja, como bastião da cultura e do comportamento. “Era uma insurreição contra ‘os bons e os justos’, contra os ‘santos de Israel’, contra a hierarquia da sociedade – não contra a sua corrupção, mas contra a casta, o privilégio, a ordem, a fórmula; era a descrença nos ‘homens superiores’, o não pronunciado contra tudo o que era sacerdote e teólogo”, escreve ele, carregando na ironia nas expressões entre aspas.

Nietzsche chega a chamar Jesus de “santo anarquista” e de “criminoso político”, num elogio ambíguo, por intimar o “povo mais baixo” à “resistência contra a ordem dominante”, sugerindo que se fosse em seu tempo, fins do século XIX, era capaz de ser deportado para a Sibéria. Como homem completamente ateu, retira do personagem bíblico sua santidade e afirma que, sim, Jesus morreu pelo pecado, mas pelo seu próprio, não tendo qualquer razão, em se confiando na Escritura, de se afirmar que ele quis, no fundo, expiar os pecados dos outros.

Mas é complicado confiar na Bíblia, diz Nietzsche, já que o texto foi muito “mutilado ou sobrecarregado” com “traços estranhos” de outras pessoas que podem, inclusive, ter criado ou aumentado santos providenciais para resolver problemas pontuais. De qualquer forma, a figura do Redentor sofreu uma desfiguração do meio em que viveu e da História, que o irá interpretar à luz de cada tempo. “As tentativas que conheço de, a partir dos Evangelhos, extrair a história de uma ‘alma’, parecem-me prova de uma detestável frivolidade psicológica”, exclama, mostrando que, se Jesus não escreveu uma única linha conhecida sequer, fica praticamente impossível confiar em seus intérpretes. “Os primeiros discípulos, em particular, traduziram primeiro para a sua crueza própria um ser flutuando em símbolos e incompreensibilidades para dele compreenderem em geral alguma coisa”, diz em outro momento.

O problema aqui é o do início de sua argumentação. Se Nietzsche é contra a tutela, qualquer que seja, não poderá aceitar a opinião de quem se deixou ser tutelado. Se qualquer frase direta a partir de uma fonte primária já não é de todo confiável, dadas as grandes dificuldades de se comunicar o óbvio, uma opinião de segunda mão torna essas afirmações ainda mais fracas.

“Fazer de Jesus um herói! E que mal-entendido não é a palavra ‘gênio’! Todo o nosso conceito, o nosso conceito cultural de ‘espírito’ não tem nenhum sentido no mundo em que Jesus vive. Com a linguagem rigorosa do fisiólogo, estaria aqui melhor no seu lugar uma palavra de todo diferente: a palavra idiota.”

Numa primeira leitura, o trecho anterior pode chocar pela crueza e pela tentativa de tornar Jesus um homem, de carne e osso, sem qualquer diferença dos demais homens. Ao fim, ainda há uma expressão que, nos nossos tempos, poderia ser considerado uma blasfêmia: chamar Jesus de idiota. Sobre isso, é possível tentar fugir do raciocínio óbvio. O caminho proposto aqui é lembrar que Nietzsche era leitor de Dostoiévski, que, por sua vez, escreveu um livro chamado O idiota. A obra narra a história do príncipe Míchkin, que, sendo superior aos seus conterrâneos, não consegue se adaptar e é considerado um idiota. Idiota, aqui, tem o sentido de ser a exceção, de ser o diferente do que se propõe, do fugir, novamente, de tutelas.

Outro exemplo de como essa frase não necessariamente é um xingamento, mas uma dificuldade de se adequar à sociedade em que estamos inseridos aparece no filme húngaro O cavalo de Turim. Logo no início do longa, o diretor Béla Tarr coloca o narrador para descrever a famosa cena de Nietzsche abraçando o quadrúpede na praça pública da cidade italiana. Tarr lembra que, após todo o imbróglio, Nietzsche teve uma crise nervosa que o deixou sem se comunicar direito até a sua morte, 11 anos depois. As últimas palavras do alemão teriam sido, segundo Tarr: "Mutter, Ich bin Dumm", ou algo como "Mãe, eu sou um idiota". Mesmo que não haja qualquer comprovação dessa frase, é uma forma de dizer que ser “idiota”, dentro de um universo nietzschiano, não carrega junto de si um conteúdo apenas negativo.

No entanto, é de outra forma que Nietzsche faz o maior elogio a Jesus. O alemão afirma que “com alguma tolerância na expressão”, poderia chamar Jesus de “espírito livre”. Dentro dos textos de Nietzsche isso pode ser interpretado como o homem que não precisa de um parâmetro anterior para viver, que vive a partir de sua própria consciência, com a coragem de enfrentar o mundo, sem cair numa dicotomia entre erros e acertos. Alguém que se opõe “a toda a espécie de palavra, fórmula, lei, fé, dogma. Fala simplesmente a partir do mais íntimo – tudo o mais, a realidade integral, a natureza inteira, a própria linguagem tem para ele somente o valor de um sinal, de uma parábola”.

Sua morte, de acordo com os textos sagrados, comprovaria essa liberdade, já que o Salvador não usou “nem de fórmulas, nem de ritos, para a sua comunhão com Deus – nem sequer da oração”. “Este ‘alegre mensageiro’ morreu como viveu, como ensinara – não para ‘redimir os homens’, mas para mostrar como se deve viver”, escreve Nietzsche lembrando que Jesus bateu de frente com juízes, com verdugos, com os acusadores, e, já na cruz, enfrentou calúnias e ultrajes. “Não resiste, não defende o seu direito, não dá passo algum que afaste dele o fim; mais ainda, provoca-o... E suplica, sofre, ama com aqueles, por aqueles que lhe fazem mal...”

A partir de então, seus seguidores teriam deturpado sua mensagem. “A história do Cristianismo – e, claro está, desde a morte na cruz – é a história da incompreensão cada vez mais grosseira de um simbolismo originário”, argumenta lembrando que foram criados ritos e doutrinas por uma Igreja que gostaria, segundo Nietzsche, de ter apenas poder sobre os seus fiéis. Para o alemão, “já a palavra ‘Cristianismo’ é um equívoco – no fundo, existiu apenas um único cristão, e esse morreu na cruz.”

O que o libertário pensador alemão admira em Jesus de Nazaré é essa capacidade de afirmar suas vontades, de lutar contra o que está estabelecido, mesmo que isso lhe custe a própria vida. É essa habilidade de combater os dogmas criados, os deuses castradores, as morais que determinam um bem e um mal para todas as pessoas, sem considerar as particularidades de cada um. Nietzsche, curiosamente, acredita ser possível, sim, ter uma prática cristã, portanto. Mas só haveria uma única forma de ser cristão. Seguir de perto o exemplo do Cristo. Mas deste Cristo combativo, que ele admirava. Ou seja, para começar, não repetindo seus passos, mas inventando os seus próprios caminhos. Não obedecendo regras desnecessárias, mas discutindo, com razão e força, a validade delas. Ao fim, Nietzsche parece exoticamente otimista: “Hoje, uma tal vida é ainda possível e até necessária para certos homens: o Cristianismo autêntico, originário, será possível em todas as épocas...”

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Campanha que vale a pena: não eleger o Cabral

Aparentemente já perdemos a batalha para a eleição de governador no próximo ano. Qualquer que seja a alternativa não vai mudar muito o que está em jogo, agora. Vamos ao segundo turno e votamos no menos pior - como tem sido nos últimos muitos anos. Mas há uma campanha que podemos e devemos nos engajar e que vale a pena: não deixar Sérgio Cabral se eleger para o Senado.

Se para governador o virtual vencedor é Lindblergh - já que é o que tem menos rejeição numa disputa que tem os campeões no quesito Garotinho, Crivella e Cesar Maia, além do poste chamado Pezão - para senador, não sabemos muito bem quem sairá candidato, além do excelentíssimo senhor governador do estado do Rio de Janeiro, Sérgio de Oliveira Cabral Santos Filho. Mas qualquer que seja o segundo candidato, devemos focar nele nossos votos.

Pode ser alguém pior que Cabral? Pode, claro. Se for o Garotinho, sugiro votarmos no terceiro colocado nas pesquisas. Mas será difícil barrar a completa antipatia que o governador fomentou contra ele. Ontem ouvi um deputado estadual, famoso por ser oposição a tudo isso que está aí, falando que Cabral deve ter algum problema psiquiátrico, de falta de noção do que é real, verdadeiro, efetivo. O motivo do comentário foi ele ter voltado a usar o helicóptero para seus deslocamentos, no momento em que todas as pessoas reclamam de dificuldades com o trânsito, com o argumento de falta de segurança - oi? O governador está se sentindo tão acima do bem e do mal que um choque de realidade vai fazer até bem a ele. E não consigo imaginar choque melhor que não conseguir se eleger nem para o Senado. Então, governador, é pensando no senhor que vamos fazer essa campanha, ok?

Vamos à prática. Nesse momento, apesar da pior avaliação dos últimos sete anos, Cabral ainda tem 20% de bom/ótimo em todo o estado. Considerando as últimas eleições, Lindblergh e Crivella foram eleitos para a casa do Congresso com 28% e 22% dos votos, respectivamente. Se toda a aprovação do Cabral fosse convertida em voto, ele teria dificuldade, neste momento, de se eleger - ainda mais considerando que em 2014 haverá apenas uma vaga, o patamar deve subir para 30-40% dos votos, num chute. Mas Cabral tem a famosa máquina governamental.

Saiu hoje no jornal: Pezão foi acusado pela sétima vez por ter promovido sua campanha para governador. Sétima vez. Só de condenação foram três vezes. O que ele teve que fazer? Pagar uma multa. A multa? R$ 25 mil. Agora, você, você aí, sentado na sua cadeira do trabalho, ou deitado na cama, ou lendo pelo celular, você mesmo, você acha que alguém que, digamos, enriqueceu bastante nesses últimos anos de grandes obras no Rio, cuja mulher é advogada das grandes empresas que mandam no estado, vai se importar de pagar R$ 25 mil? Nem que fosse por dia. Cabral vai usar - como já está usando - a máquina para se promover. E vai alavancar sua candidatura, principalmente quando ele se descompatibilizar, em março.

Daí, cabe a nós, eu e você, eleitores que não aguentamos mais Cabral e que queremos fazer um favor para ele, cabe a nós, eu dizia, usar da mais pura matemática eleitoral e simplesmente fazer voto útil. Não importa [quase] quem é o segundo colocado. Cabral deve ter uma derrota eleitoral para mostrar que a carreira política dele acabou. Para mostrar, até para o próximo governador, que quem fizer um governo ruim, antissocial, antipopular, vai  ter o mesmo destino. No máximo, vai se eleger para cargos em que não precisa de uma votação majoritária, como para deputados e vereadores - caso, inclusive, de Cesar Maia, outro que cavou sua própria cova. Síndico do prédio? Esquece.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Quem se aproxima demais de Deus, acaba queimado

Em várias tradições, aconteceu o mesmo: quem tentou chegar perto de Deus, de uma maneira ou de outra, acabou se dando mal. Os casos mais famosos são a Torre de Babel e o conto de Ícaro. Não deve ser coincidência que o mesmo mito tenha se perpetuado.

O caso de Babel aparece em apenas nove versículos do capítulo 11 do "Gênesis". Todos sabemos a história: "homens do Oriente encontraram uma planície em Sine­ar" e resolveram "construir uma cidade, com uma torre que alcance os céus", com a intenção de tornar o nome deles "famoso" ­e também para não serem "espalhados pela face da terra". Além da vaidade [e é bom lembrar sempre da famosa última frase de "Advogado do Diabo", quando Milton, o coisa-ruim-em-si, admite que é o seu pecado favorito], há um sentimento de união, que Deus, demonstrando todo o seu ciúme, acaba por acabar - exatamente, confundindo as línguas que eles falavam. "Assim o Senhor os dispersou dali por toda a terra, e pararam de construir a cidade", diz o oitavo versículo. Não poderia ser mais cruel - como, aliás, toda vida é.

Já o de Ícaro é menos conhecido. Seu pai, Dédalo [o que só me faz lembrar de Stephen Dedalus, alter-ego de James Joyce], era um grande criador de artefatos. Mas, humano, demasiado humano, sente inveja do sobrinho Talos, que tinha intuído uma serra a partir das espinhas de um peixe, e o tenta matar. Como pena, os deuses o degredaram a Creta, onde foi o responsável por construir o famoso labirinto, onde o igualmente famoso Minotauro ficaria preso. Após a morte do monstro antropomórfico por Teseu [outra história, outra história...], Dédalo e Ícaro foram presos no labirinto. Para tentar fugir de lá, Dédalo criou as famosíssimas asas de cera com penas de gaivota, uma para ele, outra para Ícaro, e aconselhou o filho: não chegue próximo do Sol, nem do Mar. Ícaro ignorou a sugestão do pai e foi em direção a Hélio, que derreteu suas asas, fazendo com que ele caísse no Mar Egeu.

Toda essa contextualização é para dizer que uma das críticas, a meu ver, de Heidegger a Nietzsche segue masomeno esse caminho. Heidegger, que era um gentleman ao criticar seu predecessor, enxergava um dos grandes temas do Bigode, a vontade de potência, como uma questão "relativa". Em outras palavras: para que a vontade existisse, era necessário que houvesse outra vontade para se apoiar, para ultrapassar, para vencer. A vontade não era sozinha, por si só, mas estava determinada a partir de outras vontades. Era competitiva, portanto. E, também, individualista, excludente. Também aristocrática [uns são melhores que outros] e elitista. Para Heidegger, Nietzsche acredita que o seu além-do-homem [outro dos temas favoritos do Bigode] era uma espécie de Deus.

Não concordo que Nietzsche tenha dito exatamente isso, mas o raciocínio de Heidegger é límpido. Além disso, o fim da vida de Nietzsche, em que ele assinava as cartas como Zaratustra ou Dionísio, seus deuses que substituiriam o deus cristão, é exemplar nesse sentido. E não vamos culpar a doença que, alega-se, ele tinha. Ou não vamos culpá-la totalmente. Havia, sim, um sentimento de superioridade, de não querer fazer parte da humanidade, como ela era, no senhor Bigode. Nietzsche queria ser tirado para o novo Cristo.

O problema desse raciocínio, se eu entendi bem Heidegger - o que eu duvido -, é perceber como as relações são sempre fracas para manter qualquer tipo de afirmação peremptória. Melhor explicando: Se Nietzsche criticava tanto a humanidade, por que ele ainda precisaria dela para se elevar, para exercer sua vontade? Apesar de ele esnobar as relações humanas, parecia que ele era o que estava mais ligado aos homens - daí, inclusive, o início do seu Zaratustra, quando o profeta desce de seu isolamento para pregar entre os homens.

Porque, seguindo o argumento de Heidegger, se essa vontade de potência depende tanto da humanidade para poder existir, para poder se destacar, no momento que essa humanidade simplesmente ignorar o além-do-homem, ele não terá mais parâmetro algum por que lutar e viver. E, novamente, basta ver o fim da vida de Nietzsche para saber que a história não terminou bem. Quando o homem se torna sujeito, ele está necessariamente objetivando algo ou alguém. E, certamente, dependendo desse algo ou desse alguém. Sem esse algo ou alguém, ele cai, se estabaca no chão redondamente, e fica um tempo ali, com dificuldade de se levantar, sem entender bem o que aconteceu. Porque todo e qualquer Deus precisa de fiéis para existir. Já o homem pode viver, simplesmente, diluído na humanidade.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

As últimas palavras de Nietzsche

No filme húngaro "O cavalo de Turim", o diretor Béla Tarr coloca o narrador para descrever a famosa cena de Nietzsche abraçando o quadrúpede na praça pública da cidade italiana [já comentei essa cena aqui]. Ele lembra que, após todo o imbróglio, o Bigode teria entrado em parafuso. As últimas palavras do alemão teriam sido, segundo Tarr: "Mutter, Ich bin Dumm", ou algo como "Mãe, eu sou um idiota".

Não encontrei qualquer outra fonte, na internet, que confirmasse essa frase. Se diz muito sobre a cena de Nietzsche abraçando o cavalo, e se fala sobre o momento em que, nu, dentro do quarto, ele dançou, para o desespero da dona do estabelecimento em que ele estava hospedado, que assistiu a tudo pelo buraco da fechadura. Também é possível encontrar outras frases finais, como "Christ, or Dionysius, do you understand me? Take your choice", mostrando a tara que Nietzsche tinha ao fim da vida com Cristo e com Dionísio, e ecoando a informação de como ele, já meio tantã da cabeça, assinava suas cartas ora como Dionísio, ora como Anticristo. Ou, em um livro sobre a estranhíssima relação de Nietzsche com a família Wagner, já no manicômio alemão, como ele teria dito para os guardas: ""It was my wife Cosima Wagner who brought me here."

A verdade é que não dá para saber exatamente qual teria sido as últimas palavras de Nietzsche, principalmente porque ele ficou cerca de dez anos fora do ar, após o colapso de 1889. E, mesmo antes, ele já não estava regulando bem, conforme mostram as tais cartas, entre outros documentos. Além disso, suas últimas palavras também não podem / não precisam ser as mais representativas de toda a sua vida, apenas demonstrariam sua passagem final, o momento em que não seria mais necessário jogar o jogo da vida, interpretar o papel que escolhemos. Mas Nietzsche não era um sujeito que estava dentro da moralidade, que representava, que tentava agradar. Era, inclusive, o oposto disso, e esse comportamento baseado apenas na sua vontade, sem levar em conta os outros, em sua volta, foi, inclusive, um dos motivos que o deixou isolado.

Daí é curiosa a escolha das palavras do diretor Tarr para Nietzsche. Primeiro, que ele se refere a mãe, com quem Nietzsche não teve uma boa relação, chegando a afirmar que o principal empecilho para se acreditar na doutrina do Eterno retorno seria pensar que ele viveria novamente com a mãe e com a irmã. Mas, de toda forma, a mãe é um desses firmamentos que sempre teremos. É uma constante que nos acompanha. A frase seguinte, "Eu sou um idiota", quer dizer, na primeira leitura, que ele tinha feito tudo errado na vida. Tinha optado pelos caminhos que levaram a esse isolamento, que não tinha acertado.

Mas não consigo deixar de pensar, novamente, em Dostoiévski, especificamente em "O idiota", uma de suas obras-primas. Saca a minúscula sinopse que a Wikipedia em português dedica para o livro:
O príncipe Míchkin tem 27 anos de idade quando retorna a Petesburgo, após permanecer vários anos em um sanatório na Suíça para tratar da sua epilepsia. Tem-se então o desenrolar da trama cujo tema central recai na problemática do indivíduo puro, superior, que acaba sendo para os demais, numa sociedade corrompida, um idiota, um inadaptado.
O herói do romance, o humanista e epilético Míchkin, é uma mescla de Cristo e Dom Quixote, cuja compaixão sem limites vai se chocar com o desregramento mundano de Rogójin e a beleza enlouquecedoura de Nastácia Filíppovna. Sua bondade e o impacto da sua sinceridade irá revelar ao leitor de forma trágica como em um mundo obcecado por dinheiro, poder e conquistas, o sanatório acaba sendo o único lugar para um santo.
"[P]roblemática do indivíduo puro, superior, que acaba sendo para os demais, numa sociedade corrompida, um idiota, um inadaptado"? "O herói do romance, o humanista e epilético Míchkin, é uma mescla de Cristo e Dom Quixote"? "Sua bondade e o impacto da sua sinceridade irá revelar ao leitor de forma trágica como em um mundo obcecado por dinheiro, poder e conquistas, o sanatório acaba sendo o único lugar para um santo"? Poderíamos, sem fazer esforço, estar falando sobre Nietzsche.

O homem que quis criar um super-homem, que não se acanhava de falar o que pensava, que gostava do Cristo histórico, mas o via como um inadaptado, e que acabou se isolando, ou sendo isolado, em um sanatório, por dificuldade de se relacionar com as outras pessoas. O livro de Dostoiévski, para aumentar as coincidências, foi escrito na italiana Florença.

Tarr talvez tenha inventado a frase final de Nietzsche, mas não é uma sentença aleatória. Está dentro de um contexto, de um mundo que melhor explica quem foi o que quis ser o Bigodudo. Um idiota dostoievskiano completo.

domingo, 8 de dezembro de 2013

Baixo, gordo e careca

Há uma lenda que Júlio César, após voltar vitorioso das batalhas para ampliar os domínios de Roma, sempre ia conversar com um dos seus conselheiros mais íntimos, que lhe dizia: César, não se esqueça que é baixo, gordo e careca.

Não sei a veracidade dessa história, mas ela representa bem mais que o óbvio. Na volta para Roma, César estava num céu, em que não tinha iguais a ele. Era um ser imbatível, mortífero, um semideus. Mas quanto maior o ego, maior a queda. Por isso, ele precisava de um conselheiro para apontar para as suas características mais humanas, aquelas partes que poderiam ser vistas como "defeitos", que o "diminuíam", dentro de um padrão pré-estabelecido do que seria bom ou grande.

César não foi o único a sentir o gosto da divindade. Basta pensar nas celebridades atuais e como eles são idolatrados. Muitas vezes, sem qualquer justificativa - vide o caso dos fãs dos ex-BBBs, por exemplo.

Vou mais longe: há casos que nós, seres humanos normais, que devemos pagar nossas contas, trabalhar de segunda a sexta [às vezes mais], juntar uma grana para tomar uma cervejinha de vez em quando, também temos a bola tão cheia, que nos esquecemos também que somos baixos, gordos e carecas. O excesso de sorte, por exemplo, é, por si só, um azar já que não te prepara para o fracasso a que todos estamos condenados - cedo ou tarde. Não quer dizer que somos fracassados, mas que passaremos por momentos de revés. E do alto do Olimpo fica difícil enxergar a planície.

Há ainda uma outra forma de se pensar, para tornar esse raciocínio um tiquinho mais complexo. Quando temos sucesso, geralmente nos esquecemos que há outras pessoas ao nosso redor. É a nossa vontade que nos guia à frente, e que vai avançando, avançando, derrubando os entraves que aparecerem, até que encontra um que se mostra intransponível - ao menos, da maneira como você estava acostumado a galgar. Diante dessa negativa, se vê perdido porque não percebia o entorno, a humanidade que lhe envolve, lhe abraça, existe além e apesar de você. É grande o desespero.

Nesses momentos, se percebe que as vontades são importantes para nos levar à frente, para nos fazer viver, sempre, e cada vez mais, mas que elas não são, não podem ser, a única forma de vivência. Apenas sob a égide da vontade, é capaz de você se isolar do restante da humanidade, se tornar uma espécie de ermitão, mesmo dentro da mais populosa cidade. A vontade é individualista, exclusivista.

É necessário, de alguma maneira, também equilibrar a vontade com o momento em que não se faz nada, apenas se deixa levar pela maré, para algum porto qualquer. Esperar a grande tempestade passar porque, dentro dela, não se pode guiar muito bem o destino do barco. Na emergência, a tática é a do menor prejuízo. É o momento de se usar a razão, para tentar controlar o desespero que simplesmente quer abandonar o navio e afundar mar adentro.

Mas também não pode exagerar no assunto, com o perigo de se tornar alguém muito pré-programado. A grande sapiência, a única, talvez, e que não se aprende em nenhum lugar, e talvez nunca se aprenda, é saber em que momento se deve liberar a vontade e em quais a única coisa que se pode fazer é esperar, e se diluir no meio de toda a humanidade. Porque até César tinha seus momentos de humano, demasiado humano.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

O mimado Nietzsche, o vazio Heidegger

Exatamente isso, que Lou se libertasse dele seguindo seus caminhos, foi o que o feriu profundamente. Sentiu-se usado, desperdiçado. Uma discípula lhe dá a entender que o compreende, e depois vai procurar outros mestres. Nietzsche sofreu isso como uma ofensa inaudita. Ele se largara em suas mãos e depois ela o largara de mão - Safranski, R.: Nietzsche - Biografia de uma tragédia, página 235, na tradução de Lya Luft.
Curiosamente, essa passagem sobre a relação de Nietzsche com Lou Andreas-Salomé - a mulher que passou ainda pelas vidas de Rainer Maria Rilke, como musa, e Freud, como colega e amiga - exemplifica mais que a personalidade de Nietzsche, aponta também para a sua obra. Além disso, mostra como as duas - vida e escrita - estavam bastante conectadas no caso do Bigode.

Uma das principais críticas de Heidegger para Nietzsche cai mais ou menos por aí. O Bigode tinha dito que era o cara que acabaria com a metafísica, ou seja, com esta separação do mundo em que vivemos em dois grandes submundos, que poderiam ser o céu e a terra, ou o mundo das ideias e o mundo real, ou ainda, e mais genericamente, o mundo suprassensível x mundo sensível. Ou seja, dois mundos, um melhor que o outro - e adivinha em qual nós viveríamos? No pior, é claro.

Tal separação teria começado lá com o Sócrates de Platão [já que Sócrates não escreveu nada], no famoso mito da caverna. Porém, o Bigode diz que esse outro mundo superior era invenção da carochinha para não aproveitarmos o mundo daqui, esse mesmo, que tem primeiros beijos, cineminha no fim de tarde, chope com os amigos, mas também engarrafamento, falta de grana, ressaca no dia seguinte e pé na bunda. Ele sugeriu que ficássemos com esse aqui que estaria de bom tamanho e não nos preocupássemos com o outro, porque ninguém tinha voltado para contar se ele existia realmente. Assim, de acordo com o próprio, a metafísica teria acabado.

O que não é exatamente o que Heidegger falaria. Ou melhor, Heidegger estava pensando de outro jeito completamente diferente. Para o sósia do Cony, não havia tanta importância sobre o fim deste tipo de metafísica, que fala sobre a separação de mundos, e todo esse blablablá. Ele acreditava que, em vez disso, deveríamos nos preocupar com a posição do sujeito-homem nessa equação. Melhor explicando: para ele, desde há muito, o homem teria começado a se sentir o rei da cocada-preta. Só porque ele percebeu que pensava logo existia, o homem se colocou no centro das decisões de todas as coisas.

A partir de então, o homem foi deslocando Deus - ou quem quer que fosse - dos holofotes para assumir o posto, com direito a plumas e paetês, meio Clóvis Bornay. Porém, o homem jamais teria a envergadura moral [por favor, com trocadilho] para ficar em Seu lugar. Mesmo o além-do-homem, quiçá o super-homem. O homem deveria se aceitar como um imenso e vazio pouco-importante, aleatório em relação a qualquer sentido ou direção. Não existiria nada que o homem pudesse ou conseguisse, a princípio. E quem pensasse de outro jeito estaria ainda seguindo a mesma tradição, que teria tido o início da época Moderna com Descartes, mas que teria se iniciado exatamente com... Sócrates de Platão.

Em outras palavras, apesar de respeitar e gostar muito de Nietzsche, Heidegger insinuou que o seu predecessor era uma criança mimada, que não aceitava ficar de fora da brincadeira, e que achava que o mundo girava em torno de seu umbigo. E que quando era contrariado, criticava o mundo, em vez de aceitar que, bem, ele não é o Rei Sol, e nós não aceitamos a teoria heliocêntrica para explicar o mundo há muito tempo.

O mais legal, porém, é perceber a indispensabilidade dessa impertinência do Bigode, até para sacolejar o mundo - esse mundo aleatório, perdido, sem razões e motivos. Mas é bom sempre ressaltar que [vontade de] potência sem controle é [quase] nada - como diria o comercial. Do outro lado, saber-nos tão insignificantes também pode ser libertador, já que, se unirmos com a impetuosidade irresponsável e infantil, poderemos ir para qualquer lado ou direção que quisermos. No fim, talvez valha raciocinar com a criança diante da caixa de bombom: se podemos ficar com os dois, por que precisaríamos escolher um só e apenas?