domingo, 29 de março de 2015

Negação da individualidade

"Sentindo necessidade imediata de ordem, e de dar nome ao que existe, apelidou-a de Pequena
Flor." Quando se lê essa frase de Clarice Linspector em "A menor mulher do mundo", conto que Verissimo considera ser o melhor em língua portuguesa, muitas ideias brotam na cabeça. Principalmente quando se lê esse conto logo depois de passar por "Elegbara", a reunião de narrativas curtas de Alberto Mussa, em especial "A cabeça de Zumbi" e "O último neandertal". Há algo aí que junta as duas [ou três] pontas e que nos leva a um outro formato de pensamento.

Ao fim de "... Zumbi", Mussa escreve:
Mas não por muito tempo. Porque Zumbi, mortal eterno, atingindo o ápice do seu ideal, tinha diluído a própria individualidade, disseminando-se como um ente coletivo. Nenhum dos filhos de Deus ousou semelhante grandeza.
Assim, vez por outra, Pernambuco continuava a ver o rosto de Zumbi. Até em mulheres; até em crianças; até em brancos.
Por isso a angústia dos que vêm às cercanias de Palmares ou simplesmente contemplam a serra da Barriga: porque se esconde naquelas matas uma possível negação da singularidade dos seres e da própria ontologia humana; porque, vagando pelas brenhas, certamente ainda há algum Zumbi para morrer.
Ao fim de "... neandertal", ele deixa como moral a seguinte passagem:
Se os nomes comuns serviam para destacar do real tangível classes de entidades de existência meramente cognitiva, os nomes próprios desencadearam a sensação falsa de que cada pessoa era em si uma classe, uma entidade única, criando o artifício da personalidade. Os demais conceitos — alma, família, beleza, propriedade — surgiriam como atributos secundários dessa idéia.
Os neandertais refratários a tal perversão certamente anteviram os efeitos que iria produzir. Não cabe discutir se foram ou não foram mais inteligentes. Fique apenas a imagem do último deles, a um só tempo solitário e coletivo, como que a demonstrar que o indivíduo é uma falácia; que a consciência é uma falácia; que o próprio ser — em sua furna — também é uma falácia.
O que as três narrativas fazem é questionar, de modo brando no caso de Lispector, ou diretamente no de Mussa, a certeza da individualidade, de um existir em separado dos demais, a ideia de que há "um homem" em vez de "os homens", ou ainda "os seres". Um duvidar de que há um ente puro, isolado, em vez de ser simplesmente como que mergulhado num grande mar infinito [talvez os hindus chamem isso de brahman]; um ser em que é impossível determinar as fronteiras, demonstrando como somos unos - e a própria ideia de plural ou singular se torna complicada, já que não haveria nenhuma diferença em relação a isso.

Lispector mostra a surpresa do explorador francês Michel Petre ao encontrar um mulher negra de 45 centímetros no meio de uma tribo de pigmeus na África equatorial. Ele está tomado de um espanto que o leva para longe de todas as certezas acumuladas por anos de ciência racional europeia. Encontra algo que desafia a sua lógica, o que estava acostumado, as verdades assentadas dentro de si. Seu deus, nesse momento, morreu. Não tinha mais em que se apoiar. Era só dúvida. Espalhado, perdido, vagando, sem um porto. Era puro devir. Seu incômodo cresce, não pode trafegar nessas águas tão turbulentas sem algum tipo de apoio. "Na certa, apenas por não ser louco, é que sua alma não desvairou nem perdeu os limites", escreve Lispector. Decide dar à pequena mulher um nome, algo que a retira desse fundo em que ela se confundia, em que ela se sentia parte integrante, e criar uma perspectiva em relação aos demais, como um pintor renascentista. Na necessidade de criar uma "ordem", uma direção, um sentido; fazer um recorte no mundo para que essa parte em separado pudesse ser enxergada. "E, para conseguir classificá-la entre as realidades reconhecíveis, logo passou a colher dados a seu respeito."

Os pigmeus não teriam necessidade de se identificar: "Os Likoualas usam poucos nomes, chamam as coisas por gestos e sons animais." Uma senhora, mãe de uma noiva, personagem do conto, sugere que a tristeza que ela exala não é "humana", mas de "animal". Nós e eles. Uma separação, um limite, uma borda, uma fronteira que nos coloca sobre os demais, hierarquicamente. Já o pai de outra família imagina a pigmeu servindo a sua mesa. Um escravo, um menor, um outro. O mesmo raciocínio.

O explorador sente mal-estar porque sua Pequena Flor sorri. Sorri sem motivo - para ele - sem razão, que ele enxergue. Sorri porque está viva. Está feliz simplesmente por se percebe viva e não morta. Por ser e por não não-ser. Ela não precisa de mais nada além disso, não precisa de qualquer outra bengala para se apoiar e justificar para si sua vida. Ela vive e é isso. Essa falta de motivo aparente violenta o explorador que tem seus apoios, seus objetivos, seus futuros a cumprir. "Esse riso, o explorador constrangido não conseguiu classificar." Como assim sorrir sem razão? Ela sorria porque o amava - e não amava a ele, explorador, simplesmente, mas amava o que o mundo lhe apresentava, amava, por fim, a vida, o viver, o estar viva. Ele fica constrangido e sorri de volta, querendo entender como funciona o diálogo, mas logo volta a si, à razão, à sua História, se recompõe. Toma notas, organiza, classifica. Tenta estabelecer novamente um limite entre um e outro, a divisão da comunhão que havia se estabelecido. A volta a si, dentro de si, o mergulho em sua individualidade, sua subjetividade.

Mussa é explícito no seu argumento: "os nomes próprios desencadearam a sensação falsa de que cada pessoa era em si uma classe, uma entidade única, criando o artifício da personalidade. Os demais conceitos — alma, família, beleza, propriedade — surgiriam como atributos secundários dessa idéia." No seu conto, ele mostra como o neandertal negou a separação do seu entorno, se misturando com o fundo, que todos eram apenas um e um era todos. Ou como o objetivo de vida de Zumbi era não ser ele, apenas, mas ser muitos, todos serem ele e ele ser todos - todos serem todos.

Não é uma defesa de uma forma mais sábia de lidar com o mundo, de viver, de existir enfim, apenas a demonstração que, com esse prognóstico, afirma-se a ideia de um ser único em separação do restante, "como que a demonstrar... que o próprio ser — em sua furna — também é uma falácia". O ser como momento em que o devir é aprisionado, um limite para o espraiar de vida, de força, de vontade nietzschiana - não como uma possibilidade infinita, tal qual Heidegger defende na sua obra capital. Mas um ser que fosse uma fronteira estabelecida, uma determinação de algo que existe independentemente dos demais. Um ser que é quase um não-ser por ser a cristalização de um determinado modo de ser, em vez de se deixar flutuar, navegar, nadar ao sabor do tempo. Um ser que, mesmo que em alguns casos seja momentâneo, permite que se separe, se torne único.

É possível em nossa sociedade extremamente neurotizada e neurotizante ainda se pensar sem a noção do indivíduo? Não é indispensável se pensar movimentos que girem de um lado para o outro, que demonstrem que há a necessidade também de uma constituição para depois haver uma destituição? O equilíbrio dinâmico entre os pontos cardeais? Como perder a soberba de se imaginar único?

sábado, 28 de março de 2015

'O equilibrista', de Eucanaã Ferraz



Traz consigo resguardada
 certa idéia que lhe soa
clara, exata.

 No entanto, hesita: que palavra
a mais bem medida e cortada
para dizê-la?

Enquanto não lhe vem o verso, a frase, a fala,
segue lacrada a caixa
no alto da cabeça.

Eucanaã Ferraz

quarta-feira, 25 de março de 2015

'Quem sou eu?', de Luís Gama

Quem sou eu? Que importa quem?
Sou um trovador proscrito,
Que trago na fronte escrito
esta palavra "Ninguém!"
A.E. Zaluar - "Dores e Flores"

Amo o pobre, deixo o rico,
Vivo como o Tico-tico;
Não me envolvo em torvelinho,
Vivo só no meu cantinho;
Da grandeza sempre longe
Como vive o pobre monge.
Tenho mui poucos amigos,
Porém bons, que são antigos,
Fujo sempre à hipocrisia,
À sandice, à fidalguia;
Das manadas de Barões?
Anjo Bento, antes trovões.
Faço versos, não sou vate,
Digo muito disparate,
Mas só rendo obediência
À virtude, à inteligência:
Eis aqui o Getulino
Que no pletro anda mofino.
Sei que é louco e que é pateta
Quem se mete a ser poeta;
Que no século das luzes,
Os birbantes mais lapuzes,
Compram negros e comendas,
Têm brasões, não - das Kalendas;
E com tretas e com furtos
Vão subindo a passos curtos;
Fazem grossa pepineira,
Só pela arte do Vieira,
E com jeito e proteções.
Galgam altas posições!
Mas eu sempre vigiando
Nessa súcia vou malhando
De tratante, bem ou mal,
Com semblante festival
Dou de rijo no pedante
De pílulas fabricante
Que blasona arte divina
Com sulfatos de quinina
Trabusanas, xaropadas,
E mil outras patacoadas.
Que, sem pingo de rubor
Diz a todos que é DOUTOR!
Não tolero o magistrado,
Que do brio descuidado,
Vende a lei, trai a justiça
- Faz a todos injustiça -
Com rigor deprime o pobre
Presta abrigo ao rico, ao nobre,
E só acha horrendo crime
No mendigo, que deprime.
- neste dou com dupla força,
Té que a manha perca ou torça.
Fujo às léguas do lojista,
Do beato e do sacrista -
Crocodilos disfarçados,
Que se fazem muito honrados
Mas que, tendo ocasião,
São mais feros que o Leão
Fujo ao cego lisonjeiro,
Que, qual ramo de salgueiro,
Maleável, sem firmeza
Vive à lei da natureza
Que, conforme sopra o vento,
Dá mil voltas, num momento
O que sou, e como penso,
Aqui vai com todo o senso,
Posto que já veja irados
Muitos lorpas enfurnados
Vomitando maldições,
Contra as minhas reflexões.
Eu bem sei que sou qual Grilo,
De maçante e mau estilo;
E que os homens poderosos
Desta arenga receosos
Hão de chamar-me Tarelo
Bode, negro, Mongibelo;
Porém eu que não me abalo
Vou tangendo o meu badalo
Com repique impertinente,
Pondo a trote muita gente.
Se negro sou, ou sou bode
Pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda casta
Pois que a espécie é muito vasta...
Há cinzentos, há rajados,
Baios, pampas e malhados,
Bodes negros, bodes brancos,
E, sejamos todos francos,
Uns plebeus e outros nobres.
Bodes ricos, bodes pobres,
Bodes sábios importantes,
E também alguns tratantes...
Aqui, nesta boa terra,
Marram todos, tudo berra;
Nobres, Condes e Duquesas,
Ricas Damas e Marquesas
Deputados, senadores,
Gentis-homens, vereadores;
Belas damas emproadas
De nobreza empantufadas;
Repimpados principotes,
Orgulhosos fidalgotes,
Frades, Bispos, Cardeais,
Fanfarrões imperiais,
Gentes pobres, nobres gentes
Em todos há meus parentes.
Entre a brava militança
Fulge e brilha alta bodança;
Guardas, Cabos, Furriéis
Brigadeiros, Coronéis
Destemidos Marechais,
Rutilantes Generais,
Capitães de mar-e-guerra
- Tudo marra, tudo berra -
Na suprema eternidade,
Onde habita a Divindade,
Bodes há santificados,
Que por nós são adorados.
Entre o coro dos Anjinhos
Também há muitos bodinhos.
O amante de Syringa
Tinha pêlo e má catinga;
O deus Mendes, pelas costas,
Na cabeça tinha pontas;
Jove, quando foi menino,
Chupitou leite caprino;
E segundo o antigo mito
Também Fauno foi cabrito.
Nos domínios de Plutão,
Guarda um bode o Alcorão;
Nos lundus e nas modinhas
São cantadas as bodinhas:
Pois se todos têm rabicho,
Para que tanto capricho?
Haja paz, haja alegria,
Folgue e brinque a bodaria;
Cesse pois a matinada,
Porque tudo é bodarrada!

mais infos aqui.

domingo, 22 de março de 2015

Epidemia de opinião

É quase uma contradição dizer que vivemos em uma epidemia de opinião. Melhor dizendo: é uma contradição. Mas alguém tem que incorrer nessa contradição na tentativa certamente vã de acender não mais uma luz amarela, mas algo ainda mais intenso que o vermelho. O sacrifício é por conta da casa.

O momento é de grande confusão de vozes, de um emaranhado de chiados como uma sobreposição de distorções. Todos falam e poucos se escutam. Todos opinam, poucos leem outras opiniões. Todos escrevem grandes tratados no Facebook, poucos frequentam ambientes contraditórios. Todos são autores, poucos são leitores. Todos têm certezas, poucos duvidam de si. Todos são portadores de alguma verdade, poucos são aqueles que desconfiam daquilo que sabem.

Temos que ter alguma solidez para cumprir nossas metas cotidianas, sem dúvida. Alguma coisa que nos faça levantar da cama e enfrentar oito horas de trabalho nem sempre recompensador, chefes às vezes pouco amigáveis, salários quase nunca abonados. Seja o lazer que o dinheiro suado proporciona das noites de sexta à música de abertura do "Fantástico", a compra de um apartamento de dois quartos, duas vagas na garagem e churrascaria na varanda, ou o futuro de engenheiro, advogado ou médico dos filhos. Também não cabe ficar, a todo momento, duvidando se estamos certos ou errados em relação às nossas decisões. Por que temos que pensar se votamos corretamente, se poluímos o planeta, se estamos ajudando o mundo, se só pensamos em nós mesmo, se o egoísmo é a única forma de convivência dentro de uma cidade caótica? Certezas são importantes para o cotidiano, sem dúvida. Mas não duvidar de si, em nenhum momento, nos torna pouco maleáveis, nos estabiliza, nos estaciona no tempo. O que pode ser um problema para um mundo que corre cada vez mais veloz.

Se a era moderna recebeu como epígrafe um trecho do famoso monólogo de "Hamlet", o tal "Ser ou não ser, eis a questão", que simbolizaria a dúvida existencial do ser humano frente à infinidade de possibilidades que a vida lhe traz, o momento atualíssimo nos parece trazer um outro temperamento, não mais baseado numa peça de teatro, mas em personagens de videogames: somos imaginados como personagens estanques, com três estrelinhas na característica de velocidade, meia estrelinha nas habilidades de lutas, duas estrelinhas na quantidade de força, quatro coraçõezinhos cheios de vida e três armas de calibres cada vez maiores. Diferentemente dos personagens dos games atuais, não temos "continues" infinitos nem podemos salvar uma fase para voltar depois.

Determinado nosso caráter, como uma escolha customizada num guarda-roupa virtual, a partir das nossas mais variadas formações e defesas, o próximo passo é bradar essa escolhas fixas. O facebook se transformou em um canal interessante para isso, principalmente por conta de seu algoritmo que vai, aos poucos, filtrando opiniões contrárias às suas. Quanto mais nos afirmamos, mais angariamos curtidas, que no linguajar atual quer dizer reconhecimento. O se expressar, podemos suspeitar a partir disso, está ligado diretamente à construção da nossa própria imagem. Pensamos ser o que escolhemos ser, o que pudemos escolher ser, e o espelho da internet só nos mostra o reflexo de Narciso.

É possível suspeitar, porém, que o mundo seja mais flexível, mais multifacetado, do que nos mostra a nossa própria vontade de ser. Não basta construir família, ser bem sucedido, viajar para lugares cada vez mais exóticos, fazer parte de um programa social que ajuda os menos afortunados no fim de ano, para sentir esse sentimento que o seu Aristóteles chamou de "eudaimonia", palavra complicada de traduzir, que recebeu versões bem diferentes no português que vão da simples felicidade, passando pelo "bem-estar" e chegando ao "desenvolvimento humano". É complicada porque "felicidade" não é um porto de chegada, não é uma linha final, não é a completude de uma caminhada. Se você acredita nisso, você pode se considerar devedor das religiões que acreditam em paraíso. Mas, pense: qualquer ambiente que não se modifica, que permanece o mesmo, é, em pouco tempo, absorvido, se torna sem vida, chocho, sem graça. Mesmo a melhor das festas não pode durar naturalmente para sempre. Ela tem que acabar. Todo o carnaval tem que ter o seu fim.

Se você, ainda assim, se mantém muito seguro de suas certezas, de suas verdades, é bem provável que vai gritá-las para, inclusive, se convencer delas. O pensamento quando transformado em palavras e sons é mais poderoso que quando apenas isolado dentro da cabeça, onde fica matutando, maturando, batucando, indo de um lado a outro como um pinball. Ao se tornar expressão, o pensamento se cristaliza, se transforma, mesmo que momentaneamente, em uma verdade. Fixa, imutável. É possível se apoiar nela. Você, que quase duvidou de si mesmo, tem que se apoiar nela. É sua única jangada no meio de um oceano nada pacífico.

Há ainda os que acreditam que essa difusão de vozes cada vez mais violentas e em volume mais alto seria apenas a indicação de uma muito incipiente formação do novo tipo de praça pública, agora virtual. Um lugar onde estaríamos debatendo para chegar aos nossos melhores consensos possíveis. O problema é que ninguém quer abrir mão de suas convicções, porque elas não são apenas opiniões, elas são a Verdade - ditadas por deus, o diabo, o pastor, a globo, o colunista da veja, o site patrocinado pelo pt, o meme do facebook, o vídeo do whatsapp.

Inventamos uma nova forma de interação: em vez de diálogos, diversos monólogos. O "eu" vem sempre à frente do "tu", do "ele" e só não vem à frente do "nós", caso o "nós" envolva gente muito, mas muito próxima mesmo, porque o pirão deve ser servido para mim primeiramente, mesmo se a farinha estiver sobrando. Nesse tempo de epidemia de opinião, descobrimos o óbvio: não há forma de conversar quando todos só falam.

quinta-feira, 5 de março de 2015

Rio 450 anos: o que temos para comemorar?

Em qualquer viagem, é inevitável fazer comparações com o seu país, seu estado, sua cidade. Você fica pensando, a cada curva no mapa, a cada estátua desvendada, o que é diferente da sua casa e o que é igual de todos endereços tão familiares. Tenta fazer uma brincadeira de espelho e encaixar a alameda da sua casa dentro da avenida do hotel. Colocar o boteco no pub. A Medina na favela. O Cristo na Torre. Lembra da dificuldade de tomar um ônibus na hora que enfrenta a dificuldade de tomar um trem. Percebe os tempos - longos, curtos, médios, ondulados. Os gostos. As temperaturas. Os cheiros que te remetem para as memórias mais longínquas, em cascatas. As pessoas andando nas ruas. Como se olham. Como se tocam. Como se vestem. Você compara, converte, mede com uma fita métrica do seu bairro, tenta falar com o mesmo alfabeto, léxico e gramática que você usa cotidianamente. É uma tentativa de tornar próximo aquilo que é, a cada momento, estrangeiro. Isso tudo acontece sempre, sempre que você toma um avião para sair do mesmo lugar de sempre. Mas uma viagem a Lisboa multiplica esse sentimento exponencialmente. São tantas familiaridades, tantos traços em comum, que às vezes o caminho é exatamente o oposto: o que temos de diferente?

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Quando Pessoa, travestido de Bernardo Soares - o heterônimo mais próximo do autor, segundo os entendidos -, diz que a sua "pátria é a língua portuguesa", percebo o quanto temos - portugueses e brasileiros - de diferente aí. O contexto da citação até pode não ser exatamente este, mas pode-se sugerir que há, aí, um elogio da literatura, da palavra escrita. Dessa tradição tão europeia de passar as suas histórias e a História ao longo do tempo por essa mídia chamada papel. Língua, literatura, cultura escrita, essa tradição tão vindo nas caravelas para o resto do mundo.

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Os brasileiros não podemos - no sentido de "deveríamos" - falar que compartilhamos a mesma pátria. Nossa pátria não é formada das mesmas letras, nem da mesma terra. Temos, sim, essa herança, o que é inegável  - e a capacidade de se emocionar ao ler o próprio Pessoa nos mostra o quanto deste passado está presente.

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Se pudesse sugerir onde fica nossa pátria, eu arriscaria: na música. É lá onde o povo-popular se encontra. Foi lá que o Brasil oficialmente desobedeceu os impostos ibéricos de maneira mais clara, e tal qual Édipo, começamos a caminhar, cegos e sozinhos (mas qual caminhar sozinho não é uma metáfora para a cegueira?).

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Não quer dizer que não tivemos Glauber, Machado [Machado!], Oiticica, todos grandes Macunaímas. Mas é na música que estabelecemos mais claramente nossas fronteiras sentimentais nacionais. E, de certa forma, é o que nos mantém unidos.

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Isso mostra como nós somos diferentes da tradição estritamente europeia. Todo país europeu tem o seu Cervantes, Goethe, Shakespeare. Nós, claro, temos Machado, temos Drummond, que as pessoas adoram tirar fotos e arrancar seus óculos, mas a representatividade da literatura em nosso cotidiano é irrisória. Pense, como um entre tantos exemplos, em nossas tiragens para lançamentos de um livro grande [sem ser um Paulo Coelho ou "50 tons de cinza" da vida] e compare com o que acontece em Portugal.

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Nossa tradição tem muito, mesmo que nós, brasileiros-preconceituosos, não queiramos, de índio e africano: somos muito mais corpo que alma. Muito mais rua que casa. Somos muito mais ginga, requebrado, rebolado. Samba, xaxado, afoxé. Mesmo o pessoal mais ao sul, mais ligado à Europa. [E, sim, estou generalizando para efeito de divagação.] Nosso pensamento não é cartesiano. Nosso tempo não respeita o horário. Nossas estações são diferentes. Não somos europeus em exílio, como disse Borges sobre sua Buenos Aires - e ele mesmo estava errado.

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Por isso não entendo a comemoração dos 450 anos do Rio. Quer dizer, entendo, mas não concordo. Comemorar o quê? Comemorar o início de uma cidade que tentava ser europeia? Comemorar o marco inicial da expulsão dos índios que aqui estavam? O genocídio? A destruição do sistema ecológico daqui? O maior porto de escravos das Américas? A elite que sempre governou para a própria elite?

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O pessoal do andar de baixo teve que se virar. A necessidade de sobrevivência fez com que eles criassem, inventassem, transformassem a massa que era entregue para eles em algo novo. Sem muito planejamento, sem muita visão do todo, sem pensar muito no amanhã. Era o que tinha para aquele hoje. Tinham que desviar das pedras e pedregulhos e montanhas no meio do caminho.

***

O que ficou disso, o que é comemorado agora nos 450 anos? O folclórico, o vazio, o malandro sem malandragem, o sambista de panamá da Uruguaiana e camisa listrada azul pronto para se exibir para a câmera do turista gringo. Falta sangue nas veias. Mas não falta nas ruelas.

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Perto da minha casa, o filho do Andrei Bastos, que eu tive a honra de entrevistar certa vez, Alex Schomaker Bastos, foi assassinado por assaltantes. Os pais e amigos do menino fizeram uma homenagem a ele, com cartazes colados no ponto onde ele esperava o ônibus. Parece que os cartazes foram retirados, mas a família colou tudo de novo. Agora, há uma patrulhinha parada ao lado para dar mais "segurança" ao lugar. E o prefeito prometeu transformar o lugar e construir uma pracinha. No primeiro caso, uma medida paliativa que apenas empurra o problema da violência para alguns metros adiante ou para trás. No segundo caso, uma medida hipócrita.

***

O que temos para comemorar? A Baía de Guanabara e as praias constantemente poluídas? Os ônibus caríssimos e ineficientes? As contas dos donos das empresas de ônibus na Suíça? A violência em crescimento vertiginoso nas áreas menos privilegiadas? A crise de abastecimento de água? O futebol e as escolas de samba caídos em descrença? O custo de vida estratosférico e subindo? O prefeito mentindo sobre as obras para as Olimpíadas? A inexistente herança da passagem da Copa do Mundo? O que temos para comemorar?

quarta-feira, 4 de março de 2015

Para lá e para cá de Marrakesh

Andar pelas ruas da Medina de Marrakesh assusta às primeiras passadas de um turista acostumado com a organização das cidades europeias contemporâneas. A melhor e a mais simples definição é a de um labirinto, "maze" em inglês, que faz lembrar a origem da palavra "amazing". Um espanto. São ruelas, e ruelíssimas, que levam a lugar nenhum, ou a casas de pessoas que vivem suas vidas como viviam seus antepassados há dezenas de dezenas de anos. São pequenas vias onde passam burros, motonetas e até carros de pequeno porte. Onde os verdureiros dividem espaço com o senhor que só fala berber e vende arruda e alecrim murchos que parecem ter sido colhidos há dias em sua própria horta. São lojinhas de quinquilharias em que os atendentes não lembravam como se chamava fósforo em francês. Vendinhas de frutas onde pode-se encontrar uma criança de 9, 10 anos carregando uma faca com um papelão fazendo as vezes de punho, para cortar um cacho de bananas que será devida ou indevidamente, não se sabe, pesado numa balança antiga que ele mesmo segura. E há os souks, os mercados intrincados, em zigue-zague, com vários boxes, onde se encontra todos os produtos tradicionais do norte da África: chá, temperos, tecidos, couro, artesanatos, pinturas, açougue, etc. Perder-se na Medina é uma regra e, após o costume, uma regra bem-vinda.

A Medina é como um bairro histórico, preservada à maneira marroquina, dentro da grande cidade que é Marrakesh. Do lado de fora dos seus muros, parece uma urbe qualquer. Ocidentalizada, europeizada, americanizada. A Globalização é uma troca desigual de forças. Sair da Medina faz lembrar "A vila", o filme de Shyamalan. Pulamos alguns séculos de um instante para o outro.

Essa região cresceu em volta da Jemaa el-Fna, a praça central que por séculos reúne todo o tipo de gente do Marrocos e além. Sempre um lugar de concentração. O coração da cidade. No final do século XIX, parece, tentaram transformar o lugar para um estacionamento. Não deu certo e as pessoas continuaram a frequentá-la. De dia, vendedores de suco de laranja, frutas secas, encantadores de serpentes, malabaristas, videntes, poetas e contadores de história que repetem os relatos ouvidos há gerações. De noite, restaurantes que vendem os tradicionais tajine e cuscuz, mas também frituras de frutos do mar, espetos de todos os animais, cabeças inteiras de novilho - onde as famílias marroquinas se reúnem nos fins de semana para apreciar a iguaria, como se num estrela Michelin, e quase ninguém fala francês (uma exceção no lugar em que quase todos os atendentes conseguem arranhar ao menos algumas palavras em muitas línguas).

O preparo da cabeça do novilho, à vista de todos, é de espantar. Coloca-se inteira dentro de um panelão, onde será cozido, num caldo feito com os ossos de outras cabeças e especiarias. Após, corta-se ao meio, em sentido meridional, arranca o couro, e se retira todas as carnes moles: bochecha, língua, cérebro. Corta-se até o triturar e joga-se tudo dentro de uma panela com um caldo para refogar. Na versão "mixture", come-se com pão e sem talheres. Aconselha-se estar com a mão, direita, limpa. O guardanapo parece os papéis de refugo dos jornais que cobrem mesas dos bares mais tradicionais do Rio. Espalha em vez de absorver a gordura. O prato não surpreende: é excepcional.

Marrakesh é a última cidade importante do Marrocos (é uma das cidades imperiais) antes da chegada ao Saara. Para lá de Marrakesh, o deserto-mor. Para lá de Marrakesh, a África negra, o coração das trevas. Os europeus, pode-se suspeitar, tinham receio de ultrapassar essa fronteira - mais um motivo para nos espantarmos com a coragem dos portugueses, que iniciaram a circunavegação da África nos primórdios do século XV, quase como uma continuação das guerras de reconquistas. Parece que se empolgaram.

Andar por esses becos e travessas é uma afronta ao pensamento único ocidental. Tão próximos da Europa, e ao mesmo tempo tão distantes. As ruas tortuosas que funcionam de um jeito menos organizado se os mirarmos pelos nossos olhos cartesianos, limpinhos e assépticos, são metáforas imperfeitas, como todas as metáforas. Lembram favelas. Lembram a área de Londres anterior ao incêndio de 1666, o que faz pensar o quanto esse grande fogo não teria sido proposital para fazer uma "higiene social". Lembram um mundo antes das revoluções, principalmente antes da revolução científica, que tudo calcula, tudo metrifica. É uma organização orgânica, que cresce à medida que a necessidade exige. Não há planejamento. Há sobrevivência. Há uma inteligência que se pode encontrar, em menor ou maior grau, em lugares pobres: ginga, malandragem, balanço. Um raciocínio mais intuitivo, mais ligado à corporalidade.

Isso não quer dizer que a Medina de Marrakesh é o melhor lugar para se morar - porque não é. Nem próximo. É, isso sim, um desafio a uma imposição de se comportar, e pensar, de uma única e exclusiva maneira ao redor de todo o globo. É um grito para dizer que não devemos seguir as mesmas regras, que não devemos respeitar o mesmo tempo, que o Ocidente, a Europa, os EUA não dão conta - nunca deram - de todo o mundo. É a tentativa de mostrar que outras formas de viver são mais que possíveis, são necessárias.

O projeto hegemônico ocidental-europeu-norte-americano chegou, ou, ao menos, deveria ter chegado, ao seu fim.