sexta-feira, 4 de abril de 2003

como um segundo capítulo do conto abaixo...

Passado e futuro

No mês que ia completar quarenta anos, Henrique Dias sentiu que deveria fazer uma retrospectiva de sua vida. Estava há anos sem encontrar com a maioria dos amigos. Olhou para fora da casa que morava, observou o morro com mata ainda virgem que crescia logo no final da vista e se permitiu lembrar do seu passado.

Ainda sabia que seu grupo de amigos fora imenso, e por vários anos, bastante unido. Conheceu alguns antes da faculdade, mas a maioria datava do período na estadual. Faziam todos os tipos de programas juntos, e preferiam viajar sozinhos a deixar que outras pessoas entrassem no grupo. Eram unidos, coesos e definitivamente, excludentes.

O que motivou essa lembrança repentina de Henrique foi o encontro com Gabriel Feitosa, um amigo seu de anos, que o visitara um dia antes. Gabriel sentara-lhe ao lado e falara-lhe sobre como iam todos os amigos, onde eles estavam, o que faziam. Gabriel, um dirigente de uma ong famosa, como disse em outra oportunidade, passou toda a tarde com Henrique. Falava ao seu lado, coçava a barba longa e castanha, ria e contava histórias sobre o destino dos amigos. Quando anoiteceu, foi-se embora.

Os dois tinham se tornado amigos quando Henrique se interessou por uma amiga de Gabriel, no início da faculdade. Chamava-se Daniela, e era uma menina esguia, morena, de cabelos negros cortados rente à cabeça. Ela era um pouco mais velha que Henrique e ele não se sentia a vontade para se aproximar. Gabriel os apresentou em uma festa e os dois descobriram que moravam próximos um ao outro. Falaram de detalhes da vida dos dois que eram muito parecidos – ambos os pais tinham morrido na mesma semana, oito anos antes de se conhecerem – e acabaram saindo da festa juntos.

Junto com Gabriel e Henrique, andava João Gustavo, um filho de um empresário de uma grande indústria. João Gustavo era o mais expansivo dos três. Mesmo sendo bastante baixo, chamava mais atenção por não conseguir ficar quieto por mais de alguns instantes. Era um completo aficionado por música e na época da faculdade, entrou numa banda para ser o baterista.

O grupo de amigos ainda possuía o Barata, um negrão enorme que era o mais meticuloso de todos, Sadi, um filho de libaneses que desde pequeno se interessou por cinema, Carlinhos, um moreno baixo que gostava de discussões sobre política e fazia parte do centro acadêmico, Déb, uma gordinha que adorava teatro e se dizia atriz, e Mônica, que começou a faculdade, mas, dizia, não gostava do curso - entretanto foi a que teve melhor desempenho ao final. Havia outras meninas, outros amigos, alguns que só passaram temporadas, mas Henrique só se lembrava direito desses.

Henrique tinha uma mania quando ainda estudava. Ele imaginava o futuro de cada um dos amigos, como eles se virariam ou qual seria realmente a profissão de cada. Ele suspeitava que todos iriam ser pessoas realizadas, venceriam no que quer que escolhessem, pois, apesar de ter pouco envolvimento com o resto das pessoas do mundo, sabia que todos eram mais inteligentes que a média. Não que eles se gabassem, não, apenas sabiam que trabalhariam em qualquer área, onde quer que desejassem.

Depois que Gabriel foi embora, Henrique se apoiou no umbral da janela e chorou copiosamente. Ele sentia saudade de todos e sentia a falta da segurança que era pertencer a um grupo. Henrique se sentia tão sozinho ultimamente que povoava a cabeça com abstrações vindas de qualquer lugar, principalmente da televisão. Nesse dia, resolveu mexer no passado.

Desde sempre Henrique teve certeza que Gabriel seria uma pessoa importante. Gabriel abria mão de tudo para lutar pelos seus ideais. E ele os tinha muito bem traçado na cabeça. Falava que queria uma família. Queria ter filhos, aproveitar a vida, queria desistir de toda a tristeza, dizia que éramos obrigados a sermos felizes. Era em torno dele que eles se equilibravam.

Daniela ficou com Henrique por três anos. De certa forma, Henrique apagava o brilho dela. Ela quase não demonstrava o que pensava quando perto dele com vergonha de parecer idiota. Em todas as conversas, ela se escondia sob o título de namorada do Henrique. Os dois foram os únicos casais que duraram. E casais eram formados e desfeitos a todo tempo, entre eles. Sem sombra de muito erro, pode-se afirmar que todos se namoraram.

Sadi participou do núcleo de cinema na faculdade e logo conseguiu emprego dentro de uma produtora famosa. Fazia a parte de pesquisa. Começou a estudar o maquinário, a parte técnica, aprendeu mais por fora em alguns cursos e, hoje, dirige seus próprios filmes. Já ganhou prêmios em vários festivais.

Na cabeça de Henrique, dentro de um grupo assim tão homogêneo, para todos terem sucesso, ele imaginava que alguém, por mais predestinado que fosse, deveria fracassar completamente. Isso seria uma forma de aplacar a fome do arquétipo de grupo, costumava recitar para Gabriel. Este apenas ria e perguntava de brincadeira quem então seria essa pessoa. Apesar de nunca responder, Henrique imaginava que este era João Gustavo.

Em todas as conversas que abarcassem música, João Gustavo era a palavra definitiva. Era o que mais procurava, o que mais se interessava e o que sempre tinha a opinião mais sensata. No entanto, quando entrou para a banda, Henrique teve certeza que ele seria perfeito para o papel de fracassado. A banda não daria certo, como acontece com a grande maioria delas, e seria tarde para poder voltar atrás. João Gustavo acreditava piamente no seu sucesso e ficou anos lutando para a banda ser promovida. Mas, quando completou trinta anos, percebeu que não adiantava mais.

Barata conheceu Mariana no final do curso. Os dois se encontraram nas aulas de verão de fotografia. Barata casou-se com Mariana e se tornou fotógrafo profissional. Déb foi para a televisão depois de participar de uma peça muitíssimo famosa. Hoje roda um filme com Sadi. Carlinhos trabalha como assessor de algum político famoso e Mônica fez mestrado e doutorado e dá aula na estadual, no próprio departamento. Henrique sorriu ao ouvir isso, mas Gabriel não percebeu.

Daniela é assessora de empresas estrangeiras que querem montar escritórios aqui. Ela fornece informações sobre as condições do país e quais são as áreas mais rentáveis. Depois que Henrique e ela se separaram – Henrique dizia que tinha enjoado dela – ela conseguiu um emprego e estudou num mestrado voltado para negócios. Ela quase não se encontra com os demais.

Henrique lembra que ele tinha sido o primeiro a ganhar dinheiro entre todos os amigos, mesmo sendo o mais novo. Tinha entrado numa consultoria muito parecida com a que Daniela trabalha hoje, mas tinha largado quando percebeu como era o vício de poder que existia dentro das grandes corporações.

Com o final da banda, João Gustavo se viu perdido, desiludido. Tinha passado a vida inteira acreditando que faria sucesso, que seria conhecido, famoso. Com trinta anos, viu que não era nada além de um desempregado. Henrique escutou impassível sobre João.

Antes de terminar o curso, Henrique desistiu. Largou emprego, faculdade, namorada e tentou a vida de uma maneira que ele sempre tinha imaginado. Ele queria ser escritor. Escrevia contos diariamente, enviou alguns roteiros de curtas para a produtora que Sadi trabalhava, se enveredou pelo teatro. Ficou dez anos vivendo de sub-empregos para tentar sustentar a vontade de escrever. Nunca conseguiu nada.

João Gustavo já tinha um filho para criar quando resolveu bater na porta do pai e pedir ajuda. O pai, através de conhecimentos, conseguiu que ele trabalhasse numa gravadora como descobridor de talentos. No início ele deveria ouvir as diversas fitas que chegavam na empresa e decidir qual seria escolhida para uma triagem mais aprofundada. Com o tempo, conseguiu angariar melhores posições e hoje é um executivo importante dentro do mercado fonográfico. Tem uma família de três filhos e se sente totalmente realizado. Nem de longe lembra aquele João Gustavo que conhecemos, disse Gabriel.

Ao ouvir as últimas frases, os olhos de Henrique se encheram de lágrimas e o amigo descobriu que deveria ir embora nesse momento. Suas histórias pareciam magoar mais do que ajudar. Sabia que não devia emocionar mais o amigo que estava ali catatônico há quase dez anos. Tinha desistido completamente. Levantou-se, abraçou o amigo e disse que voltaria na semana seguinte, como sempre fazia. Na cabeça de Henrique só vinha a certeza que sua profecia estava correta. Alguém deveria ser um fracasso, mas esse alguém não era João Gustavo.

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