Primeira prova
Quando amanheceu pôde ter certeza de que não iria fazer um lindo dia de sol. Levantou-se da cama, já que não tinha dormido, ansioso para saber se sua encomenda tinha chegado. Sabia que o carteiro passava de manhã e desceu para esperá-lo na portaria. Iria queimar o tempo com o jornal. Ou com um café na padaria.
Foi no banheiro e viu os olhos fundos, as olheiras aparentes e a barba por fazer. Ignorou os detalhes e apenas molhou o rosto na pia. Colocou um moletom cinza de mais de vinte anos que ficava pendurado no cabideiro do quarto e desceu sem nem ao menos pentear o cabelo.
Perguntou para o porteiro se o carteiro havia passado, mas eram pouco mais das sete horas e ele só passaria próximo das nove. Resolveu então matar o tempo como programado. Sentou-se no balcão e dobrou as folhas do diário na sua frente. Apesar de estar colado no seu nariz, não conseguia armazenar nenhuma informação que lia. As frases entravam através dos olhos, mas se perdiam em algum lugar antes de serem decodificadas no cérebro.
Sua mente estava presa ao pacote com todos os originais que havia enviado para a editora do seu primeiro livro de contos. Esperava para esses dias a resposta da editora. Mandara a cópia única por correio por uma questão de segurança, tinha medo que alguma página, ou informação extraviasse pela Internet. E porque a editora não recebe nada que não seja papel.
Ficara enfurnado em casa escrevendo meses a fios, desenvolvendo temas que ele achava interessante. Saía apenas para comprar comida, voltava e trabalhava mais nos contos. Tinham que ser sucintos, repetia para si mesmo numa voz mental. Deviam ser inteligentes, fugir das obviedades, com um ponto de tensão e um desenlace surpreendente que deixasse quem o lesse pensativo após o término.
Tinha se suprido de uma dúzia de autores que ele considerava referências. Era averso a textos empolados, para ele deveriam ser palatáveis tanto pelos mais altos dignitários da língua, como para o mais novo alfabetizado. Não se considerava um pessimista, porém suas mensagens raramente eram de um mundo melhor. Seus heróis podiam morrer no início do conto, ou sobreviver até o infinito, para contar a história numa repetição eterna. Via-se como um ultra-realista que não aceita nenhuma expectativa da vida que não pudesse ser comprovada. Não esperava o pior de nada, apenas não esperava.
Tinha experimentado diversas técnicas narrativas aprendidas ao longo das leituras. Tinha completa noção do que deveria fazer para se diferenciar. Ao ler algumas publicações mais recentes, conseguira isolar o que era um autor contemporâneo. Brincou com hipertextos para ser ressaltado como um da era da tecnologia, aquele que tem uma linguagem rápida, com cortes parecidos com um vídeo-clipe. O ritmo tinha se tornado a parte mais importante do formato. Narrativas que tinham como cenário a cidade grande, com seus contrastes sociais, sua violência latente e a podridão da carne humana que se sente o cheiro nas esquinas. O nonsense como personagem, o fantástico como costume, o inesperado como cotidiano, a visão blasé.
Voltara a chover. Toda as noites, nos últimos dias, tinham chovido. Não conseguia dormir direito. Matava uma garrafa de vinho tinto por noite para ver se se derrubava. Mas nada. Os personagens que criara povoavam sua mente, voltavam como que para conversar com ele. O protagonista sem nome que também vivia insone e sonhava acordado com um massacre na cidade ficava ao lado dele, tomando gim puro olhando para o seu autor e fumando um cigarro que nunca acabava. A mulata que tinha vindo para a cidade grande para tentar a sorte como dançarina, deitada no sofá da sala, ora chorando, ora se entregando para o seu protetor sem nenhuma vontade. O viúvo metódico que decidira acabar com a vida por saudade da mulher, morta em situação obscura. Abria o armário com a mão direita, pegava a arma prateada com a esquerda, colocava-a em cima do pano cinza que cobre o móvel, buscava as balas, rodava o tambor, mirava ao lado do ouvido e escutava-se o estampido.
As horas não passavam. O relógio insistia em ser vagaroso e ele não agüentava o cheiro da padaria pé-de-chinelo que costumava freqüentar. Resolveu andar pelo quarteirão para passar o tempo. A chuva fina e o vento forte que vinha do mar fazia com que as poucas pessoas que estavam a essa hora na rua, andassem apressadas e com as cabeças baixas. Ele preferia assim. Quando os troncos das árvores viviam úmidos por causa das chuvas constantes. Ou quando as pessoas andavam somente pela extrema necessidade pelas ruas, com as ruas mais vazias, ou com a praia deserta. Sentou-se em frente ao mar para ver se conseguia livrar um pouco o pensamento. Ficou ali parado, olhando o mar, as pequenas ondas que iam e vinham e observou um homem deitado num banco longe do seu. O homem levanta-se, tira a roupa e vai na direção do mar. Joga de lado a camisa, a calça, o cinto, os sapatos, entra na água, até desaparecer e não volta. Exatamente igual a um dos seus personagens.
Foi para a areia, ninguém junto dele em toda a extensão da praia, caminhou até o final e voltou. Não tinha nada para fazer, experimentara todas as formas de fazer com que o horário do carteiro chegasse, mas ele insistia em demorar a passar. Voltaria, mesmo que ficasse na portaria, sentado nos degraus da escada de acesso. Em poucos minutos, estava exatamente assim, mexendo no cabelo como um cacoete, olhando para os próprios pés, observando o movimento das madames com os seus cachorros, dos carros, táxis e ônibus que passavam em frente ao prédio. Às nove, pergunta novamente ao porteiro o horário das entregas, e era nove mesmo, poderia estar um pouco atrasado, não acontece sempre, mas de vez em quando, quem irá saber.
Uma eternidade depois, chega o homem das cartas. Entrega o pacote ao porteiro e vai embora. Ele levantara-se para acompanhar a evolução daquele pequeno homem com uniforme amarelo e sentira uma pontada fria na altura estômago. Tinha plena convicção que essa espera tinha sido outra vez sem motivos. Não existia nenhuma certeza de que naquele dia o seu pacote chegaria. Todos os enormes envelopes em cima do balcão do porteiro e ele com toda a certeza de que deveria ter revisado mais algumas vezes os originais, que eles não eram bons suficientes para serem publicados, não se diferenciavam de nenhum outro que tinha lido, era apenas uma reunião de idéias repetidas. Era esse o motivo deles não terem nem lido o que tinha enviado. Obviamente não interessava publicar alguém desconhecido e igual, exatamente igual a um medalhão da editora.
O porteiro separava as correspondências e nunca o balcão ficou a tanta distância. Parecia que deveria atravessar quilômetros para alcançá-lo. O porteiro era apenas um ponto dentro de todo o imenso campo de visão. Via tudo muito escuro e de longe. Forçava a vista frisando a testa, mas era ineficaz. Inspirou todo o ar que coube em seus pulmões, trancou-o dentro deles e caminhou com todo o corpo emborcado para a frente. O porteiro segurava sua carta com uma mão e sorria. Ele nem percebeu o sorriso, nem agradeceu e subiu as escadas sem temperamento para esperar o elevador.
Agora já não pensava em mais nada. Queria apenas saber o que tinha ali dentro. Abriu de uma vez o envelope e viu uma carta que leu de uma vez só. A carta era assinada pelo responsável por novos autores e dizia que a editora não iria publicar o material. O responsável achou o texto frio e distante. Parecia apenas um exercício de formatos, sem nenhuma preocupação com emoções verdadeiras. O autor tinha completo domínio narrativo, mas era incapaz de falar sobre seres humanos, pasteurizando-os. Viviam emoções requentadas, de segunda mão, mesmo que distantes dos clichês. Contudo, denotavam que eram emoções emprestadas de outros.
Ele nem teve forças para jogar a carta longe. Não sabia o que fazer a partir de então. Deitou-se na cama e tentou por alguns instantes parar de respirar. Não conseguiu chorar também, nem transparecer nenhuma emoção mais forte. E, depois de alguns instantes de completo branco mental e tonteira no raciocínio, conseguiu concatenar algumas idéias e descobriu que, por mais cruéis que as palavras tinham sido, elas retratavam perfeitamente o que ele era nesses últimos tempos. Isolara-se nesse apartamento, depois de abandonar tudo da vida, vivia de uma pequena mesada da família e decidira tornar-se escritor sem ao menos tentar qualquer outra forma de humanidade primeiro. Não se lembrava da última vez que se apaixonara, quando chorou, ou tido uma conversa por mais de quinze minutos com uma pessoa diferente. Abriu a janela, observou a quantidade de apartamentos que havia no prédio que morava e percebeu que não conhecia ninguém. O telefone estava sem tocar há dias e ele nem sentira falta.
Voltou-se, pegou o papel da editora e jogou pela janela. Falou como que conversando com alguém, Amanhã vou dar um jeito nisso. Hoje, vou viver uma vida normal, começando pelo meu sono. Disse isso e deixou o corpo desabar na cama, dormindo logo em seguida.
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