E não é que Lars von Trier fez um filme de terror? Tudo bem, estou atrasado um ano, "Anticristo" é de 2009 e já deu o que tinha que falar com suas cenas bem chocantes que transformam a decapitação auricular de "Resevoir dogs" em uma brincadeira, literal e metaforicamente [Aliás, pensando agora sobre orelhas, esse pedaço da anatomia, que não tem pálpebra - como já ouvi de um conhecido neohippie - aparece também em "Blue velvet". Mas o que isso tem a ver? Nada...]
Após "Dançando no escuro" e o experimentalíssimo "Dogville", Von Trier se transformou num diretor cultuado por suas figuras de linguagem e por sua melancolia extrema. [Penso agora na gravura homônima de Dürer e, coincidência, lembro que o próximo projeto do dinamarquês se chama... "Melancholia", repetindo a pobre Charlotte Gainsbourg, a única atriz que já fez dois filmes dele - ou estou exagerando?]
Depois ele se aventurou por outro gênero, a comédia, mas uma comédia à dinamarquesa, com "O grande chefe" [ótimo filme] e agora chega num filme de terror, quase tradicional, mas rodado com toda a sua tekné.
Começamos assistindo a um dramalhão: marido e mulher perdem o filho, que se jogou da janela, enquanto eles transavam. Mulher se culpa e o marido, terapeuta, tenta tratá-la. Nesse segundo momento, achamos que vai ser um filme psicológico - literal e metaforicamente - e que alguma coisa vai dar errado: um analista não pode tratar de sua própria família, é o óbvio. Mas, mal sabíamos que isso é apenas a ponta daquelas pedras de gelo que se desprendem do polo norte levando preocupação para todos os ambientalistas do mundo.
Descobrimos, em seguida, que ela não tinha conseguido fazer sua tese porque passara por problemas em sua passagem por uma cabana no meio do mato, apelidada, não à toa, de Édem. E a partir daqui, começam as elocubrações.
A tese da mulher é sobre o femicídio, o genocídio de mulheres. Junte a isso que há uma lenda de que Von Trier maltrata suas protagonistas, tanto é que é muito difícil de alguma repetir o personagem [Nicole Kidman disse há três dias sobre von Trier: "People who are brilliant are difficult. He can be mean and vindictive and all these things, but he says those things about himself"]. E que, no filme, ela se transforma numa verdadeira demônia [após presidenta, pode, né?]. O resultado parece simples: Von Trier odeia as mulheres. Essa conclusão, porém, é simplória.
O filme, como outros do dinamarquês, é metafórico. A mulher, em "Anticristo", é a emoção, a ligação com a natureza, o desespero, as forças do desconhecido, a magia, a irracionalidade. O homem, por sua vez, é o oposto: razão, cidade, centrado, psicologia, ciência, sensatez. Ela é Eva, a culpada pela queda do paraíso; ele, Adão, o primeiro humano, o primeiro sujeito que usa a cabeça para viver, não apenas o instinto.
"Anticristo" - lembrai sempre do nome - não é, entretanto, um filme católico, nem mesmo cristão. "Anticristo", aí, tem a ver com a contraposição com a bondade, representada pela maneira mais rasa de se interpretar o espírito "cristão". [Pensei agora no "Anticristo" de Nietzsche, principalmente porque o filósofo alemão era aquele que pregava contra essas oposições e dizia - a grossíssimo modo - que éramos uma composição de opostos.]
Uma das características mais marcantes em obras de terror é esse embate entre o bem e o mal. E Von Trier conseguiu pegar exatamente essa dualidade para explorá-la em todas as suas possibilidades de entendimento, em todas as suas metáforas possíveis. Isso, é claro, pode parecer um filme machista, que degrada as mulheres, principalmente vindo de quem vem. E até acho que deve ter alguma relação aí: assim como não conseguimos nos desvencilhar de nosso tempo histórico, não podemos fugir de nós mesmos. Mas essa é apenas uma das possíveis e mais banais interpretações. "Anticristo" merece mais.
Seja porque é um filme de terror que dá medo - uma raridade ultimamente. Seja porque é um filme muito bem filmado. Seja porque é inteligente e se desdobra, como uma boa obra de arte, após a exibição. As cenas finais não vão sair da minha cabeça tão cedo.
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