quarta-feira, 27 de abril de 2011

A necessidade do vazio

Um amigo - superfã de histórias em quadrinhos - me contou que não aceita mais indicações de experts em HQs, gente que conhece praticamente tudo o que foi lançado e que leu tudo e que sabe tudo e que gosta de tudo. Minha primeira reação foi a de perguntar: mas não seriam esses os mais indicados a aconselhar as leituras, já que eles têm um panorama geral do todo? Ele me deu uma resposta interessante que eu vou tentar reproduzir, com as minhas palavras, aqui.

Segundo ele, quando o expert conhece toda a produção lançada, tende a perder o raciocínio crítico em relação ao seu objeto de adoração. Não tem um distanciamento necessário e gosta de tudo, independente da origem, só porque o formato é igual ao anterior. Como um vício, que deve ser abastecido e não se percebe as diferenças entre cada dose. Para ele, é importante fazer escolhas, baseadas em qualquer critério, ou em nenhum critério, na razão ou no inconsciente, por algumas histórias em detrimento de outras, para que possamos, com o tempo necessário, avaliar se aquele objeto é realmente digno de um elogio ou se entra na classe do mais-um-produzido. É necessário parar o ritmo de leitura, respirar fundo, interromper o processo automático de ingestão, para que a história reverbere.

Claro que cada um tem o seu ritmo. Conheço outros dois amigos, jornalistas de profissão, amantes da música e DJs de hobby que dá dinheiro,  que sempre me abastecem de novas bandas, canções que acabaram de aparecer, ou grupos antigos, revisitados, desconhecidos, ou que eles descobriram. Não consigo acompanhar o ritmos deles, mas, semanas e até meses depois, a luz acende e eu sempre me pego me perguntando: ahn, então era isso o que eles falavam?

Também já estive no lado oposto, de quem consome determinado objeto sem qualquer fruição. Por um tempo, decidi que veria tudo do Woody Allen. Acho que, desde "Tudo o que você quis saber..." [1972] até hoje, vi todos os filmes em que ele era diretor. Depois, quando percebi que não sabia mais o que era bom ou ruim da obra dele, que via tudo por uma espécie de compulsão, pela obrigação, para cumprir um dever autoimposto, parei. Desisti de ter uma imposição do gozo.

Conhecer o próprio ritmo é um movimento que vai de encontro com as aspirações sociais, que geralmente ditam a velocidade que você tem que viver: cada vez mais rápido. Não existe, claro, regras regulatórias gerais - e se houvesse, já seria contra. Mas eu já sentia algo parecido quando frequentava as cabines de filmes, no meu curto período de pseudocrítico de cinema. Nunca me enturmei com os outros rapazes e moças. Devem ser ótimos, mas eu não conseguia acompanhar tanta erudição, tanta informação cinematográfica. Sempre perguntavam - uns aos outros - se tinham visto tal e qual filme, ou toda a filmografia de fulano, que é apadrinhado do beltrano ou que só tinha produzido uma obra-prima lá no fim do mundo. À distância, eu nunca tinha visto nada daquilo. Geralmente as opiniões eram que o filme era imperdível, ótimo, ou que era horrível, constrangedor. Que o ator estava excelente ou que ele nunca mais deveria aparecer numa tela de cinema. Que o diretor era um gênio. Que a fotografia era linda. E eu, que até hoje não sei avaliar bem um ator, querendo saber mais sobre o filme, ou tentando descobrir um comentário que fosse mais... amplo. Nunca ouvi.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Seriedade e passividade humana

Às vezes uma obra pede uma segunda visita. E as suas ideias, que tinham apenas aparecido sutilmente na primeira audiência, se tornam tão óbvias que nos perguntamos onde é que estávamos quando a assistimos na vez anterior. Aconteceu comigo ontem, ao rever "A serious man" dos irmãos Coen. Tinha visto o longa ainda empolgado com os seus filmes anteriores: o faroeste contemporâneo "No country for old men" e a comédia nervosa "Burn after reading", ambos belíssimos exemplares de arrebatamento à primeira vista. "O homem sério" não é assim.



O filme não é tão claro como os anteriores [ia escrever óbvio, mas não é questão de obviedade]. Não vi toda a filmografia de Ethan e Joel, mas dos que assisti, é, certamente, o mais pessoal e enigmático, contando uma história que pode ser quase autobiográfica, ao retratar uma família judia disfuncional do interior dos EUA. Não que eles tenham se retratado na trama, mas porque, imagino, tenham retirado grande parte da construção da história de elementos pessoais.

O principal tema abordado é a religião: como o judeu deve se comportar frente às intempéries da vida. Desde a epígrafe, que cita que o homem deve receber o destino de braços abertos, e o incrível curta que antecede o longa, que mostra a divisão de um homem entre o sobrenatural e o natural, estamos forçados a acreditar no caráter contemplativo e pouco crítico desse protagonista.

Larry, personagem Michael Stuhlbarg, não desfaz essa impressão. Sua vida segue sem grandes sobressaltos, mas logo é sacudida por um pedido de divórcio da mulher e uma tentativa de suborno de um aluno. Após se ver soterrado pelas agruras cotidianas, como os filhos distantes e ausentes, e o irmão problemático, além de ter medo do vizinho conservador de direita que só não o despreza mais que os imigrantes de outras nacionalidade, ele decide se consultar com quem poderia dar-lhe conselhos para a resolver os problemas: o rabino. O melhor argumento para isso mostra indícios de uma retroalimentação dentro da tradição judaica: uma amiga de Larry sugere que os judeus têm muita História e certamente alguém terá passado por problemas parecidos.

Enquanto vê sua vida desabar, Larry tem que pagar pelo enterro do amante de sua mulher e se sente diretamente confrontado com o homem morto, que é visto como um referência na comunidade e é chamado de "sério". Ele, Larry, também quer se sério, também quer ter a moral ilibada, também quer fazer o certo, mas é tudo tão difícil para ele. Parece que as situações o sufocam, não deixando escapatória se não aceitar o erro, o suborno, a mentira. É muito mais fácil e não há testemunhas, além de sua consciência.

Nessa hora, lembrei das inúmeras referências à consciência e à culpa dentro da obra de Woody Allen, não por acaso outro judeu. Também imaginei, mas sem qualquer fundamento, como a psicanálise só poderia ter sido criação de alguém que tenha o conhecimento dessa tradição em que as pessoas vão a um expert contar seus problemas [logo em seguida lembrei que há o costume de se confessar entre os católicos].

O filme, como acontece com as mais autorais obras dos Coen, não deixa uma mensagem simples de ser decodificada. Inclusive, ao fim, imagino hordas reclamando de ter sido uma interrupção repentina demais, não esperada. Mas a última cena é por demais impactante para precisar de explicações. O filho de Larry finalmente consegue reaver um dinheiro que ele deve para o fortão da sala e tenta pagá-lo, no meio de um aviso meteorológico de tormenta que tirou todo mundo do colégio para se protegerem na [não pode ser coincidência] sinagoga. Quando o filho de Larry o chama para entregar os US$ 20, o fortão o ignora, hipnotizado pela visão das nuvens negras no horizonte. Storm is coming. O que fazer? Como se proteger? Como aceitar a destruição que certamente virá? Até os mais fortes são incapazes frente ao infinito das forças divinas.

sábado, 16 de abril de 2011

O novo e o bom

Qual é a importância do novo? A necessidade de se atualizar sobre o que acontece? Não existe respostas conclusivas para essas perguntas. As que me ocorrem agora esbarram em questões práticas em excesso [possibilidade de conseguir um trabalho] ou abstratas demais [ter consciência sobre o seu entorno]. Por outro lado, por que se manter preso ao passado renegando toda e qualquer novidade? Por que cultuar a nostalgia, por que imaginar que o passado era, de alguma forma, melhor que o presente? Também não vejo respostas que fujam de uma afirmação moldada exatamente pelo tempo [porque o que passou já está assentado na tradição] ou simplesmente por uma preguiça ou medo de se expor ao erro, ao ter contato com o que é diferente do antigo.

Por outro lado, o novo é realmente diferente do antigo? Essa afirmação me traz dois raciocínios à cabeça. O primeiro é a declaração de Borges, lembrando que não há o "original" por não haver a "origem", assim como não há o "definitivo", por também não existir "fim". Por outro lado, imagino uma proposta por demais positivista, em que há uma espécie de "evolução" da humanidade, e o que vem à frente sempre seria melhor que o passado.

Ficamos muito mal acostumados, após as vanguardas dos século xx, que por suas vezes, eram desdobramentos iniciados desde o movimento dito Moderno, em que deveríamos fazer algo completamente diferente do que vinha antes. O bom seria aquilo que negasse o passado e inaugurasse um novo tempo. Mesmo que em intenção, já que, como disse acima, não acredito que haja essa ruptura e o nascimento de um período completamente novo. Portanto, seguindo esse raciocínio, o bom era o novo, o diferente, aquilo que poderia ser visto como o oposto do que se estava fazendo. Daí a negação ao passado e a valorização do próximo, do que vinha por aí.

Tudo o que falei agora são platitudes. Estou só confabulando sobre o que seria a produção narrativa, nos dias de hoje. E quando eu digo "narrativa" me refiro a qualquer produção de caráter diferente da ciência dura.  Vivemos de mitologia em mitologia, na nossa ficcionalização cotidiana do real.

Claro que o texto nasceu - e matutou na minha cabeça - após ter visto os vídeos em que Alcir Pécora e Beatriz Resende conversam com Paulo Roberto Pires sobre a ficção contemporânea. Muito do resumidamente, Pécora diz que não gosta de nada do que é feito atualmente e fala que há um excesso de compadrinhamento entre os escritores. A declaração, claro, repercutiu, aqui e ali e acolá. Pécora, um homem extremamente erudito que deu muito trabalho para os historiadores ao comentar os sermões de Padre Antônio Vieira, afirma que a literatura, e a arte como consequência, deve ser sempre definitiva, ou seja, extrema, mortífera, hecatombesca, enfim, arrasadora. Ou não é arte.

Antes de pensar em uma definição razoavelmente romântica, portanto, extremamente moderna e filha de nosso tempo, fico imaginando a seguinte situação: um fulano escreve despretensiosamente um texto. O texto cresce e se transforma em livro. O livro ganha asas sozinho e é reconhecido. O reconhecimento aumenta e ele é aclamado, é entronado como gênio. Isso estaria no contexto de Pécora como arte? A intenção é importante? Quem tem o direito de dizer o que é a genialidade ou a bovinice da humanidade? Os críticos? O tempo, a tradição, o cânone? O mercado? Estamos certo disso? Quem são ou o que são os críticos? Quem garante que a História tem as respostas para tudo? E se o resultado desse hipotético fulano não for a consagração, mas o sucesso de vendas? Ele é pior artista por isso? E, ainda, se ele não tiver nem vendagem nem for reconhecido pela crítica, o que muda? Quem garante que ele é realmente ruim?

Isso aqui não é uma opinião sobre nada. É uma amontoado de dúvidas, que se acumulam e se reproduzem. A única certeza de que tenho é tão abstrata quanto as minhas primeiras declarações. Para se ter contato com essas narrativas, deve-se, primeiro, fazer de tudo para se escutar a própria voz interna. E isso, claro, não é algo que se ensina em escolas, de qualquer grau.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Cardápio de cerveja

[Há muito tempo, me pediram para escrever um texto sobre cervejas para um cardápio, que nunca saiu. O texto é fraco, mas engraçadinho. Como é inédito, publico aqui:]


Dizem que os primeiros registros sobre cerveja apareceram onde hoje é o Iraque, há mais ou menos 6 mil anos. Mas o país não foi invadido por isso. Os sumérios, que viviam à época na região inventando a roda, a escrita e outras insignificâncias, tinham até uma deusa para homenagear a cerveja: Ninkasi.

Diz a lenda que a loura (que só amarelou realmente no século XVI), nasceu quando um desavisado deixou um pão ao relento. O naco tomou chuva e, com os fungos presentes no ar, fermentou e se transformou miraculosamente em cerveja. Ah, os desavisados. Por muito menos inventaram a penicilina, mas isso é papo para outro dia.

O certo é que a cerveja era bem diferente do que ela é agora, claro. A começar pela cor. A cerveja pilsen, a que a grande maioria está acostumada a beber, só nasceu quando descobriram que se podia fazer cerveja de baixa fermentação, as chamadas Lagers. Para isso, precisavam de baixas temperaturas, o que aconteceu, novamente, sem querer. Mas não entremos em detalhes.

A questão é: existem muito mais tipos de cerveja que imagina a nossa vã filosofia. Dentro da própria categoria pilsen (que ao contrário do que se pode imaginar não tem origem alemã, quiçá belga, muito menos inglesa - as grandes escolas da cerveja - mas tcheca), pode-se explorar mais o gosto de um ou outro ingrediente básico da composição.

Aliás, em 1516, o duque da Baviera, região onde fica Munique, decretou uma lei de pureza para determinar os ingredientes que poderiam fazer parte de uma cerveja: água, malte de cevada (resumidamente, grãos do cereal processados e torrados), lúpulo (uma planta da família de uma tal de Cannabis sativa) e só. A levedura nem era conhecida na época, mas foi acrescentada depois. Depois a descobrirem, e até inventaram a penicilina. Mas isso é outra história.

É claro que os quase vizinhos da Bélgica ignoraram completamente isso e continuaram fazendo com os ingredientes que tinham as suas cervejas magistralmente. O mesmo aconteceu na Inglaterra e por aí vai. Até os alemães abriram algumas exceções com o passar do tempo e tivemos contato com a cerveja de trigo (também conhecida como hefe-weizen ou weissbier), por exemplo.

Isso nos dá uma gama imensa de cervejas. Ficar preso a uma só é não querer experimentar a liberdade da escolha. Cada cerveja vai bem com um tipo de comida, com um tipo de paladar, com um tipo de humor, com um tipo de clima. A melhor maneira de conhecer é beber. Por isso, mãos e goelas à obra.

domingo, 10 de abril de 2011

O nascimento da ideia e o discurso

Recebi o vídeo abaixo de uma amiga com o título de "Sinistro". É a palestra de uma neurocientista americana no TED [um formato de evento onde as novidades do mundo são mostradas em ritmo de apresentação de executivos] que narra um derrame que sofreu e como ela ficou impressionada com as diversas reações de seu corpo com a falha de regiões do cérebro que controlavam sua fala, por exemplo. Ela divide, à maneira clássica, o cérebro em dois hemisférios e dá a cada uma das partes uma função bem delimitada, que muito rasa e resumidamente, podemos dizer que seria a emocional e a racional.



O vídeo me voltou à mente semana passada quando percebi o quanto ficava mais organizado o meu pensamento quando eu o colocava em palavras. Quando eu o transformava em discurso. Comecei a imaginar - não pesquisei nada - uma razão para isso, a partir das palavras da neurocientista.

Ela diz que há claramente um conflito gerenciado entre esses dois hemisférios, mas que vivemos com essas duas personalidades opostas, que não por acaso se encaixam, dentro do espaço físico da cabeça, ergo do corpo. Imaginei que é no lado "emocional" que nasce o pensamento, tal qual uma fonte a jorrar água, ininterruptamente. São ideias, sensações, raciocínios, lógicas, aparatos desenvolvidos pelo cérebro para conceber o mundo - nunca interpretá-lo - para nos inserir numa certa lógica, que os gregos chamavam de physis, e nós, por falta de alternativa melhor, diminuímos para natureza.

É uma enxurrada que abarrota os nossos circuitos internos cerebrais com uma quantidade incalculável de imagens, que sobrecarregam nossas sinapses e nos deixam angustiados. É o caos. Imagine uma comporta abrindo para a passagem de água. Somos soterrados por essa avalanche de pensamentos e ficamos reprimidos, tantas as possibilidades de conexões, algumas fazendo sentido, outras completamente ilógicas, umas tendo elementos fantasiosos, outros se baseando na realidade, mas com possibilidades assustadoras. É como uma nuvem de palavras, tal um tag cloud, em que as palavras estão todas presentes, mas não são passíveis de entendimento, como uma grande conclusão.


Ao levar todas essas informações para o lado racional, onde se controla a linguagem, começamos a dar um caminho para essas palavras. Um sentido, metaforica e literalmente. Colocamos as palavras dessa tal nuvem, uma atrás da outra e as transformamos em frases, em argumentos, em propostas. As ideias sempre existiram, mas estavam escondidas ante a confusão generalizada da desordem. O discurso, a fala, a escrita, a língua, portanto, torna decodificável, não somente para o outro, mas para si mesmo, os pensamentos que afloram sem qualquer pedido de licença. 

Não é à toa que os filósofos citam tanto a importância do logos - discurso, mas também traduzido como razão - dentro das suas investigações. Não há preponderância entre o discurso e o nascimento da ideia. O pensamento é a junção dessas duas partes. Uma sem a outra é incapaz de fazer qualquer sentido [novamente ele]. O caos é importante como matéria-prima, mas o discurso o torna inteligível para o próprio falante. Daí também que o processo da psicologia trabalha com a fala e muitos artistas usam de suas lembranças menos agradáveis como origem de suas obras. 

Também não é sem razão que esse lado "racional" controla, ou melhor, percebe o tempo - assim como, inclusive, o espaço. Quando o pensamento brota, não há qualquer hierarquia entre as ideias soltas: elas aparecem num amontoado de informações e não existe como elencar o que vem primeiro ou depois. Ao formular um discurso se cria uma noção de tempo, do antes, do agora, que já passou, e do depois, que está por vir. 

Saber lidar com esses espaços, que não são em nada conflitantes, mas, ao contrário, complementares, é uma lição que há anos os pensadores orientais sugerem. E que os ocidentais, empiricamente, tentam controlar. Quando a balança está pendendo para um lado, chega um novo sujeito e sugere o outro lado, só para contrabalançar. E assim, vivemos, nessa gangorra, onde o ponto-alto é o ponto-médio.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Real Bollywood

Recebemos o pai Raja, a mãe Anu e o filho Yannick, de 11 anos, em casa, por uma semana. Nossa amiga em comum dissera que ele era um cineasta e que eles viajariam por seis meses pela América Latina. Precisavam de ajuda no Rio. Sem problema, dissemos. Mas com uma condição: deveriam trazer o seu filme, para assistirmos juntos. E foi assim, num dia em que Anu, a cenógrafa do filme, preparou ainda o almoço, um ensopado de galinha com bastante leite de coco e especiarias preparadas por ela mesma. Portanto, a opinião que vai a seguir não é totalmente isenta.

"Barah Aana", se eu não me engano, é uma expressão em hindi que quer dizer algo como "75 centavos", ou seja, algo muito barato, ainda mais se considerarmos o valor da rúpia, que está valendo cerca de R$ 0,04. A sinopse descreve bem resumidamente todo o filme: três homens, de três gerações diferentes, de três origens diversas, se encontram em uma favela de Mumbai e passam pelo mesmo problema: a falta de dinheiro generalizada.

O filme retrata os três protagonistas em separado: o jovem garçom galanteador, que quer ter mais oportunidade com uma gringa que sempre vai ao café onde trabalha; o zelador de 30 e poucos, que deixou a família em outra cidade e trabalha para comprar remédios para o filho doente; o motorista já grisalho, que começa o filme fugindo de capangas que querem matá-lo para tomar suas terras, e é dado como morto, portanto nem pode reclamar na polícia do ataque que sofreu.

Os três dividem o barraco na tal favela, uma favela real, como nos falaram, mas que aparece mais idílica, mais bonita que o normal, colorida, com um jeito de 1960, de "Rio 40 graus", de uma inocência que já perdemos. Aliás, todo o filme tem um cuidado de quem passou bastante tempo na publicidade, caso de Raja. Inclusive, não é coincidência que o único filme brasileiro que ele conhecia bem era de outro cineasta egresso da publicidade, "Cidade de Deus", de Fernando Meirelles.

Depois de passarem por diversas humilhações e num ato quase inconsciente, os três começam a praticar sequestros e percebem, como no início da Bíblia, que isso era bom. Os indianos de classe-média, como acontecia com os brasileiros de até há pouco, não confiam na polícia nem para dar queixa. Era dinheiro fácil e quase certo. Até que...

É bastante interessante enxergar os pontos de contato entre os dois países durante toda a projeção. Raja falou que a Índia passa por um processo de modernização que teria acontecido com o Brasil em algum momento no século passado. Mas isso não é um prêmio de consolação para o filme. Algo como: só é bom porque, em alguns momentos, se parece com o Brasil. Não. O filme tem seus méritos próprios, e são méritos que vão além da técnica, mesmo que na interpretação dos atores - dois deles bem conhecidos: Vijay Raaz e o excelente Naseeruddin Shah. "Barah Aana" tem um frescor, uma inconsequência juvenil, de quem quer mostrar que há algo de errado no reino da Índia e usa o filme como arma política, mas sem nunca perder a doçura. Raja usa o cinema para tentar falar, mais alto que a sua voz poderia alcançar, como ele vê sua terra. É mais ou menos para isso que serve a arte.