quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Fetiches de escritores

Em Oxford, encontramos em exposição uma série de cartas do Kafka para a sua irmã mais nova, Ottla. Nas correspondências, descobrirmos que ele era vegetariano - e mal visto por isso, por seu companheiros [Kafka tinha um pouco de mania de perseguição, não?] - e que ele dava apoio à sua irmã, indo em direção contrária aos anseios dos pais - ela quer estudar, o pai não deixa; Kafka, então, oferece pagar a faculdade dela. Além desses aspectos mais práticos do dia-a-dia, podemos ver a letra do escritor, a letra que ele escreveu seus mais conhecidos textos.

Aliás, apesar de toda a confusão por conta do seu espólio - basta lembrar que Max Brod, aquele que, segundo a lenda, deveria queimar tudo, levou todo o material para a Israel, e hoje em dia, além deste país, a Alemanha e Oxford tentam ter sob suas posses as versões originais dos textos kafkianos - é possível ver os manuscritos de algumas das obras mais famosas de toda a produção do tcheco. Entre elas estão: "Die Verwandlung" - que é traduzida comumente como "A metamorfose", apesar de eu já ter ouvido que o correto seria algo como "A transformação" - e "Das Schloß" ["O castelo"].

No primeiro, é possível ler, com a letra bastante da comum, que eu não consegui identificar nenhum detalhe que ressaltasse, apenas, talvez, um ligeiro tremido, a famosa frase inicial: "Als Gregor Samsa eines Morgens aus unruhigen Träumen erwachte, fand er sich in seinem Bett zu einem ungeheuren Ungeziefer verwandelt." [Cabe também dizer que jamais Kafka escreveu sobre uma barata, mas sobre um "inseto monstruoso".] No segundo, a última sentença, largada pela metade, que dá a impressão que não há saída, mesmo, para o pobre K.

Depois, fomos a Stratford-upon-Avon, uma das inúmeras cidades ao lado de Oxford que tem hífen. Há Bourton-on-the-Water, Moreton-in-Marsh, Stow-on-the-Wold entre outras várias na região de Cotswold - apesar de Stratford não ser exatamente dessa região, mas ficar ao lado.

Além da bela paisagem natural, a Stratford que fica sobre o rio Avon tem um cidadão mundialmente famoso. William Shakespeare nasceu, foi batizado, casou e está enterrado lá, segundo consta. A igreja onde a maioria desses eventos aconteceu se chama Holy Trinity - é possível ver uma cópia do papel de batismo e de óbito. É pequena, mas extremamente bem cuidada, principalmente por ser do século xiii - mas já havia um prédio ali muito mais tempo antes, de acordo com a própria igreja. A construção parece esconder inúmeros mistérios, cada um dos detalhes do teto é diferente do outro, como se eles tivessem sentidos ocultos que só os iniciados conseguem captar. Fiquei tão impressionado, que caí no golpe da lojinha ao lado - no caso, da Royal Shakespeare Company - e comprei uma edição [excelente] de "The tempest" - já lida e a ser comentada outro dia.

Após essa peregrinação, fiquei a me perguntar: o que vale ver a letra de Kafka - se você não é aquele especialista que descobre facetas de sua personalidade pela sua caligrafia - ou o sepulcro do Shakespeare? Absolutamente nada. São só fetiches, que funcionam de maneira muito parecida com as indulgências, que eram vendidas pelos católicos para a salvação da alma dos pecadores pré-reforma. Como se ao ter contato com esses elementos dos grandes mestres, você também fosse, de alguma forma, tocado por eles, fosse agraciado, e um pouco da "magia" desses personagens passasse para você também. No máximo, ou na melhor das hipóteses, entretanto, funciona como aquela pena que o Dumbo usava para voar. Um amuleto. Nada mais.

Ou, para ler/reler as obras de ambos, que é o que, no fundo, vale a pena, mesmo.

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