A pior situação após uma grande tragédia é a cobertura jornalística de uma grande tragédia. É claro que isso é uma opinião minha, de quem já cobriu [poucas] tragédias, de diferentes tamanhos, e vê como o ser humano se mostra um pouco sádico nessas horas.
Imagino que Aristóteles poderia explicar bem esse sentimento geral. Não deve ser coincidência utilizarmos o termo "tragédia" quando algo completamente fora da normalidade choca um público grande.
Na sua obra "Poética", como em todas as suas demais obras, o aluno de Platão e professor de Alexandre analisa [no sentido científico do termo, de tentar separar o todo em partes menores] a estética, principalmente sob o viés da tragédia, o gênero teatral.
Essa obra seminal ditou as formas como o Ocidente entendeu as obras de arte - principalmente as escritas - durante séculos. Alguns de seus conceitos são usados até hoje, como a ideia de mímese [dá para ler um pouco sobre isso aqui] ou, e é aí onde queremos chegar, a de catarse.
Aristóteles era filho de médico. Daí, acredita-se, a sua vontade de "analisar" seus objetos, de torná-los fontes para ciência, de, inclusive, criar esta mesma ciência como a conhecemos hoje. Igualmente é especulado que vem de seu pai o vocabulário usado em alguns termos, como em catarse. No grego, essa palavra que tomou o significado de "efeito libertador", quer dizer simplesmente "expurgar", "purgação" ou, "purificação". Se minha memória não me falha, "catarse" [o Google me diz que se escreve assim em grego: "κάθαρση"] era o termo dado a quando se tomava um remédio para provocar vômitos, por exemplo.
O filósofo usa pouquíssimas vezes tal expressão em sua "Poética" [se eu não me engano, apenas duas]. Fora do contexto, a primeira citação funciona muito bem aqui: "Suscitando a compaixão e o terror, a tragédia tem por efeito obter a purgação [catarse] dessas emoções." Colocando as palavras em outros lugares na mesma frase: a tragédia conseguiria aterrorizar-nos, nós, os espectadores, e provocar-nos a compaixão, conseguindo, com isso, retirar, ou acostumar-nos, ou tornar-nos aptos a enfrentar emoções parecidas. Serviria, portanto, para doutrinar-nos, treinar-nos para a vida real, fora dos teatros, nas ruas, onde as tragédias verdadeiras acontecem.
Voltando, portanto e finalmente, às tragédias verdadeiras. Há uma espetacularização das tragédias por parte da cobertura e é fácil enxergar isso. Uma vontade de transformá-las em uma narrativa, de ficcionalizá-las. Se fôssemos pensar na estrutura de três atos, estes seriam: 1º/ a grande epifania, a cena do acidente, mortes, desespero e dor; 2º/ flashback, para contextualizar quem são as vítimas, humanizá-las, trazê-las para perto dos espectadores; 3º/ a busca ensandecida, e às vezes totalmente cega, por culpados, a caça às bruxas, a expiação do bode [que era carneiro, provavelmente], a vingança.A catarse, enfim [ver o ps. abaixo]. Todos ficam "expurgados" das emoções de "terror" e "compaixão", que faz tanto mal carregar dentro de si. Por isso as reportagens e as informações são consumidas com afinco, com vigor, com vontade.
O problema, contudo, de trocar as tragédias-teatrais pelas tragédias-verdadeiras é o mais simples de todos: confundir a realidade com a ficção. Não é tão fácil assim sair do teatro do cotidiano. Sem uma mudança na estrutura do roteiro das tragédias-verdadeiras, elas tendem a se repetir eternamente. E, diferentemente das peças teatrais, pessoas realmente morrem no dia-a-dia.
ps. do dia seguinte: Fiquei pensando que há uma segunda informação que não pode deixar de ser considerada. A mudança no sentido da palavra catarse, e a posição em que ela se encontra nas tragédias teatral e verdadeira. Na teatral, a catarse é o sentimento final, uma explosão, em que há a série de desgraças, e o tal "efeito libertador". As pessoas saem mal das peças, e por conta disso, sabem como é se sentir mal. Já na verdadeira, é o inverso. Diferentemente do que eu imaginei ontem, a catarse acontece no início, logo de cara, e as pessoas não sabem lidar com esse inevitável, com essa sensação do "sem sentido" e vão em busca de um significado maior, que tente ajudá-las a entender essa falta de razão exagerada. Procuram novamente voltar para um mundo em que há causa e consequência, em que há justiça, mesmo que divina. A busca por culpados é exatamente a tentativa de dar uma razão, de determinar as causas daquela catástrofe, tentar evitar aceitar que o mundo, às vezes, é aleatório, completamente aleatório. Na vida real, as tragédias não nos ensinam absolutamente nada.
Escultura que representaria Aristóteles, do Louvre, cópia do século I ou século II de uma outra, do escultor grego Lisipo, |
Na sua obra "Poética", como em todas as suas demais obras, o aluno de Platão e professor de Alexandre analisa [no sentido científico do termo, de tentar separar o todo em partes menores] a estética, principalmente sob o viés da tragédia, o gênero teatral.
Essa obra seminal ditou as formas como o Ocidente entendeu as obras de arte - principalmente as escritas - durante séculos. Alguns de seus conceitos são usados até hoje, como a ideia de mímese [dá para ler um pouco sobre isso aqui] ou, e é aí onde queremos chegar, a de catarse.
Aristóteles era filho de médico. Daí, acredita-se, a sua vontade de "analisar" seus objetos, de torná-los fontes para ciência, de, inclusive, criar esta mesma ciência como a conhecemos hoje. Igualmente é especulado que vem de seu pai o vocabulário usado em alguns termos, como em catarse. No grego, essa palavra que tomou o significado de "efeito libertador", quer dizer simplesmente "expurgar", "purgação" ou, "purificação". Se minha memória não me falha, "catarse" [o Google me diz que se escreve assim em grego: "κάθαρση"] era o termo dado a quando se tomava um remédio para provocar vômitos, por exemplo.
O filósofo usa pouquíssimas vezes tal expressão em sua "Poética" [se eu não me engano, apenas duas]. Fora do contexto, a primeira citação funciona muito bem aqui: "Suscitando a compaixão e o terror, a tragédia tem por efeito obter a purgação [catarse] dessas emoções." Colocando as palavras em outros lugares na mesma frase: a tragédia conseguiria aterrorizar-nos, nós, os espectadores, e provocar-nos a compaixão, conseguindo, com isso, retirar, ou acostumar-nos, ou tornar-nos aptos a enfrentar emoções parecidas. Serviria, portanto, para doutrinar-nos, treinar-nos para a vida real, fora dos teatros, nas ruas, onde as tragédias verdadeiras acontecem.
Voltando, portanto e finalmente, às tragédias verdadeiras. Há uma espetacularização das tragédias por parte da cobertura e é fácil enxergar isso. Uma vontade de transformá-las em uma narrativa, de ficcionalizá-las. Se fôssemos pensar na estrutura de três atos, estes seriam: 1º/ a grande epifania, a cena do acidente, mortes, desespero e dor; 2º/ flashback, para contextualizar quem são as vítimas, humanizá-las, trazê-las para perto dos espectadores; 3º/ a busca ensandecida, e às vezes totalmente cega, por culpados, a caça às bruxas, a expiação do bode [que era carneiro, provavelmente], a vingança.
O problema, contudo, de trocar as tragédias-teatrais pelas tragédias-verdadeiras é o mais simples de todos: confundir a realidade com a ficção. Não é tão fácil assim sair do teatro do cotidiano. Sem uma mudança na estrutura do roteiro das tragédias-verdadeiras, elas tendem a se repetir eternamente. E, diferentemente das peças teatrais, pessoas realmente morrem no dia-a-dia.
ps. do dia seguinte: Fiquei pensando que há uma segunda informação que não pode deixar de ser considerada. A mudança no sentido da palavra catarse, e a posição em que ela se encontra nas tragédias teatral e verdadeira. Na teatral, a catarse é o sentimento final, uma explosão, em que há a série de desgraças, e o tal "efeito libertador". As pessoas saem mal das peças, e por conta disso, sabem como é se sentir mal. Já na verdadeira, é o inverso. Diferentemente do que eu imaginei ontem, a catarse acontece no início, logo de cara, e as pessoas não sabem lidar com esse inevitável, com essa sensação do "sem sentido" e vão em busca de um significado maior, que tente ajudá-las a entender essa falta de razão exagerada. Procuram novamente voltar para um mundo em que há causa e consequência, em que há justiça, mesmo que divina. A busca por culpados é exatamente a tentativa de dar uma razão, de determinar as causas daquela catástrofe, tentar evitar aceitar que o mundo, às vezes, é aleatório, completamente aleatório. Na vida real, as tragédias não nos ensinam absolutamente nada.
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