sexta-feira, 29 de novembro de 2013

A voz da vontade

O grande problema de qualquer pensador mais voltado para a filosofia pós-Nietzsche foi responder à questão: e agora? Como viver num mundo sem qualquer parâmetro? Como não cair num imenso e intenso niilismo? Como não ficar deprimido ante o tamanho do mundo e a sua [nossa] infinita insignificância? Enfim, como viver sem Deus?

Daí que Camus anuncia, logo no início de seu ensaio "O mito de Sísifo", que "o suicídio é a única questão filosófica verdadeira". Porque, se não temos um motivo a priori - aliás, se não temos nem um a priori - temos que encontrar dentro de nós uma razão por que viver. Mas e se não a encontrarmos? Ou se, ao a encontrarmos, a perdemos em seguida? Ou se simplesmente não quisermos procurar? O ponto é: os motivos e as motivações não brotam do nada.

Todo esse raciocínio começa ficar meio deprê, mas não é essa a intenção. Porque, repare, se fosse também difícil encontrar um motivo por que viver, teríamos uma epidemia de suicídio. Tudo bem que as taxas de suicídio estão aumentando no mundo como um todo, em média - mas os motivos, especulo, são outros. E, mesmo que seja a maior causa de morte por atos violentos, nós não agimos como os lêmures suicidas da lenda, que se jogam do penhasco, em grupo.

O ponto aqui é outro: por que, então, sem esse deus, sem esse parâmetro primário, por que, então, continuamos? Suspeito que a resposta está, novamente, com Nietzsche, mas numa interpretação do que Nietzsche de certa forma disse. É a tal da vontade.

Exemplo hipotético que tenta comprovar: Um rapaz está deprimido porque perdeu algo que lhe era muito caro e não consegue lidar com essa perda. Depois de tentar todas as outras alternativas, ele decide ir à praia, nadar no mar, para fazer com que o sangue, ao menos, corra nas veias. Consegue, a muito esforço, se levantar e caminhar até a praia. Chegando lá, entra na água e percebe que está muito, muito fria. Ele, tão deprimido, pensa em apenas deixar que o corpo perca a sua força, o seu viço, e afunde. Mas a água está tão gelada que aquilo começa a incomodá-lo de uma maneira estranha. Se ele não quer mais viver, por que estaria incomodado com a água gelada? Não sabe, mas algo simplesmente o empurra para fora da água. Não quer viver no gelo, quer o conforto da areia quentinha, onde bate o sol. Tenta ainda dar umas braçadas, mas o corpo, novamente, toma conta e deixa que as ondas o empurrem para a arrebentação. Sai da água, se senta na areia, e espera o corpo secar, antes de ir para casa.

Claro que isso não acontece com todas as pessoas. Nem sempre a vontade aparece. Há casos em que estamos tão anestesiados, tão numb, que não importa o frio de fora, porque o corpo está muitos graus abaixo. Mas, acredito - e é uma crença, que não tem qualquer comprovação - que se apurarmos nossa audição, sempre vamos ouvir nossa própria voz, a voz da vontade.

domingo, 24 de novembro de 2013

A privataria como solução?

É extremamente comum que encontremos reportagens citando a privatização da empresa de telecomunicações brasileira no governo Éfe Agá Cê como exemplo de sucesso, como aconteceu de novo, agora, com o leilão de concessão do Aeroporto Galeão, no Rio. Eu sou, por princípio, contrário à privatização, de uma maneira geral. Acho que é um atestado de incapacidade: não gosto de desistir da luta e terceirizar meus problemas. Mas, no caso das empresas de telecomunicação, eu acho até meio patética essa defesa.

Claro que a Embratel, e as suas subsidiárias, como a Telerj, eram horríveis. Lembro que para fazer uma ligação devia se esperar dar sinal, o que poderia demorar literalmente horas. Quando assistia a filmes americanos, ficava impressionado com a ligação automática: as pessoas sacavam o telefone, geralmente sem fio, não o colocavam no ouvido, e já teclavam o número correspondente. Que inveja. A telefonia era tão ruim que ter uma linha em casa era sinal de status. Você se tornava, também, acionário da empresa. Celular? Coisa de gente rica. Um período tão estranho para o mundo atual quanto a ideia de "discar" um número.

É claro, também, que, comparativamente, as novas empresas de telecomunicação são melhores que a Embratel. Houve uma imensa popularização dos aparelhos, principalmente celulares. Há muito mais celulares que pessoas no Brasil. Mas essa "democratização" dos telefoninhos não refletiu em melhores serviços. Nem de longe. No top 10 do ranking de empresas mais reclamadas, OITO são telecoms.

Além disso, o serviço, em si, é péssimo. A internet no Brasil é mais lenta que no Haiti ou na Etiópia. Nada contra esses países, mas o país que enche a boca para se dizer a sétima economia do mundo deve [ou deveria] ter os serviços compatíveis com o seu tamanho, d'accord?

A privatização também não barateou os serviços. Se antes era difícil adquirir a linha e comprar um aparelho celular, agora, o assalto chega mensalmente, via conta. Para comprovar, o brasileiro pagava a segunda mais alta tarifa do setor no mundo em 2010. Isso mesmo, a segunda. Só "perdia" para o sul-africano, nosso irmão dessa desigual classe-média do mundo. Perdia, porque agora o Brasil pode orgulhosamente dizer que paga o minuto mais alto de todo o globo [sem trocadilho]. Na minha mais que humilde opinião, isso não é exemplo de sucesso, mas de exploração completa e irrestrita dos cidadãos, transformados em apenas consumidores.

Daí, fica difícil acreditar nas maravilhas que se está vendendo com a venda do Galeão para a controladora do aeroporto de Cingapura, considerado o melhor do mundo, junto com a Odebrecht. Muito provavelmente a situação do aeroporto vai melhorar - como melhorou, sensivelmente a da telefonia. Mas isso me faz crer que há mais uma má vontade pré-leilões, um sucateamento forçado para mostrar como o serviço público seria, por definição, ruim, quando na verdade se você pensar que há inúmeras carreiras públicas que são referência - como as universidades ou a Petrobras - esse argumento não se sustenta. Não nego que haja um vício no funcionalismo público, mas suspeito que deva ser muito mais saudável para o país mudar essa mentalidade que trocar o controle sobre os seus problemas. 

Coincidência: geralmente, o mesmo cara que é a favor da privatização, é contra as cotas nas universidades, ou a vinda de médicos estrangeiros, exatamente porque essa seria uma medida paliativa. E, não, não me venha falar em agência reguladoras, por favor. Se não dá para confiar no governo para fazer, daria para confiar para cobrar?

Se todos os argumentos listados até agora não serviram para comprovar o meu descrédito com uma verdadeira melhora com o aeroporto, basta lembrar que o conglomerado brasileiro Odebrecht é o responsável pelo novo Maracanã e, para ficar no ramo dos transportes, pela SuperVia. Nada mais a declarar.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Os arrastões e a infância na violência

O caso de arrastões nas praias do Rio demonstra dois aspectos que ainda não tinham sido nomeados - e ainda não foram, oficialmente, mas cuja urgência fica cada vez mais difícil de ser escondida. Ambos, claro, têm a ver com a sensação de insegurança, e uma questão é como uma consequência da outra. Em primeiro lugar, esses assaltos e furtos ao atacado mostram como o combate apenas policialesco ao crime não soluciona o problema, apenas o espalha, o modifica, o torna, em alguns casos, mais cruel. O outro é a cruel readaptação da questão inicial: como de uns tempos para cá tenho a impressão de um aumento significativo de crianças e adolescente vivendo na e da rua.

Sempre me impressionou na cena final de "Cidade de deus" a idade dos meninos que assumem o crime na favela

Não há estatísticas que comprovem esse aumento apenas uma percepção de quem vê vários grupinhos, de dez, 15 moleques sujos andando em andrajos, segurando garrafas de plástico transparente e aspirando algum tipo de solvente. Invariavelmente são negros. No Centro, após o horário de expediente, são extremamente comuns, principalmente perto da Carioca, e descendo em direção à Uruguaiana. Em Botafogo, ficam na praia, e em acessos. Sempre se escondendo, se esquivando, sofrendo o processo de marginalização. São presenças constantes, e ausentes da sociedade.

Se não há estatística, ao menos temos um fato que joga luz para essa situação: no arrastão, foram apreendidos tantos garotos - alguns de 10 anos! - que o secretário Beltrame falou que vai penalizar os pais por abandono de incapaz, além de pedir a ajuda do conselho tutelar para resolver o problema. Exatamente porque não é apenas colocando mais policiais na praia que vamos acabar com os arrastões. E não estou dizendo isso por uma impressão esquerdista, do tudo pelo social - não apenas - mas por uma incapacidade generalizada de a polícia dar conta de um problema que é sempre pulverizado. Como estar em todos os lugares ao mesmo tempo? Enquanto a polícia estiver no Arpoador, os meninos vão estar arrastando o posto 9. Quando a polícia estiver no Leblon, eles atacam no 6.

Daí que o Beltrame sempre falou - e não somente ele, mas vários outras pessoas ligadas a área de segurança - que as UPPs não poderiam ser as únicas armas contra a violência. Porque é como se apenas estivéssemos espalhando o problema. Ou espremendo. Se prendemos os cabeças das quadrilhas, outros, geralmente mais novos, vão assumir os lugares. Ou vão arranjar outras formas de ganhar dinheiro, que não vendendo drogas. Ou vão sair das favelas com UPPs porque lá agora há uma certa ordem. Aliás não é incomum de ouvir diversos jovens moradores de favelas com UPPs reclamando das políticas públicas impostas pelos poliças. A ordenação - o viver em sociedade - requer abrir mão de alguns quereres. E eles não estão acostumados.

Todas as vezes que eu vejo esses meninos e meninas nas ruas, com seus corpos sujos e franzinos, me lembro de uma frase que eu ouvi não sei onde, não sei de quem, mas que representa bem esse nosso problema. Pobre é o país que tem medo de suas próprias crianças. #Ficaadica para o próximo lema da nação.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

A próxima revolução: o vegetarianismo

Até o século XIX, homens e mulheres africanos e seus descendentes não tinham os mesmos direitos que os de origem portuguesa ou europeia - no Brasil e em outros cantos das Américas. Não que hoje em dia haja uma igualdade de relações entre esses dois grupos, e os números de assassinatos de jovens negros, muito maiores que os de brancos, está aí para não me desmentir, mas que as diferenças diminuíram bastante nesses mais de cem anos de abolição da escravidão, não dá para negar. Hoje, já não pensamos em questões de raças, mas de culturas, por exemplo. O racismo, mesmo que negado por alguns componentes da nossa elite, é crime. Há ações que tentam, às vezes timidamente, às vezes com mais urgência, diminuir esse monstruosa separação. Ou seja, melhorou.

Na virada do século XX para o XXI, lembro de uma crônica do Verissimo em que ele dizia que os anos de 1900s tinham sido o tempo das mulheres. Elas tinham saído de uma condição de Zimbábue [ou outro país bastante pobre], não para a da Bélgica ou Suíça, mas para uma Argentina, uma Tailândia, uma Turquia - esses países, como o Brasil, classe-média. Novamente, como se vê, ainda não há igualdade de condições, mas houve uma diminuição entre esses pontos extremos.

Recentemente, a discussão sobre a regulamentação da situação jurídica de casais do mesmo sexo vem causando discussão entre países com alto índice de desenvolvimento humano, como é o exemplo da França. Isso é reflexo do tratamento dado por certas instituições erradas que por milênios condenam as relações que fogem do que havia se estabelecido como regra, mesmo que a relação homoerótica seja tão natural quanto a heterossexual. É o momento da luta do pessoal LGBT, luta que começou há já quase meio século.

A próxima grande revolução comportamental, tenho o atrevimento de sugerir [e após a indicação de amigos sobre o assunto], será a do vegetarianismo. A recente polêmica com o resgate do beagles lá no laboratório São Roque é, para mim, a prova de que já começamos o combate. Exemplo disso foi dado pela colunista de um jornal carioca, ligada fortemente ao movimento de defesa dos direitos animais, que chegou a reproduzir uma opinião de uma médica e professora aposentada da UFRJ, em que se defende a utilização de presos em testes científicos, com a contrapartida de diminuição de pena, em vez de se utilizar animais. Em tempo: a colunista se disse contra a sugestão, argumentando, não em favor dos seres humanos, mas da Justiça, que poderia ser afetada caso um criminoso optasse por um teste que não fosse suficientemente cruel em relação ao seu crime.

Eu não sou contra o vegetarianismo, quiçá contra animais: bichinhos fofinhos, oncinha pintada, zebrinha listrada, coelhinho peludo, pelo contrário. São todos ótimos. Acho apenas que a tendência ao vegetarianismo, ou ao fim da morte de outros animais com o fim de nos alimentar, é inevitável, principalmente depois que começaram a fazer hambúrgueres de célula tronco. Mas o que me leva a escrever aqui é o que estaria por trás dessa ligação tão íntima - e cada vez maior - entre homens e animais. Por que só agora resolvemos reconhecer, no nosso âmago, que o cão é o melhor amigo do homem, e não nossa comida?

Na minha mais que humilde opinião, tem a ver com o nosso momento histórico. O homem [o ser humano] tem entre as suas necessidades a de amar. Por mais estranha que essa afirmação soe, a verdade é que o homem precisa amar - e isso inclui, claro, um pouco do passivo "ser amado". Como vivemos tempos em que o amor virou artigo de propaganda de refrigerante, insípido, anódino, limpinho, as pessoas estavam caindo num buraco niilista, que culminava numa sociedade cheia de cinismo, ironia, do blasé como ideal de viver.

Os bichos de estimação vêm resgatar essa capacidade do humano de sentir, de querer bem, de lutar por outra coisa que não si mesmo. Não me espanta a relação de alguns donos de cachorro que tratam seu cão como se fosse filho - há até disputa judicial em caso de separação. Não me assusta a fascinação de donos de gatos, que dizem que, na verdade, são os gatos que os possuem. Os bichos preenchem, em parte, esse vazio que os homens normalmente sentiriam se não compartilhassem de sua presença.

Eu talvez ainda me choque com a declaração da médica e ex-professora da UFRJ, que foi quase corroborada pela colunista. Mas talvez eu que esteja deslocado no tempo. No futuro, vão olhar para os meus textos e achar que eu me comportava como um desses escritores machistas, preconceituosos, homofóbicos, que nossa - e todas as - literaturas do passado estão cheios. Isso, claro, se ainda se ler no futuro.

domingo, 17 de novembro de 2013

'Anticristo', aforismo 39 - Nietzsche

Volto atrás, e vou contar a autêntica história do Cristianismo. Já a palavra «Cristianismo» é um equívoco – no fundo, existiu apenas um único cristão, e esse morreu na cruz. O «Evangelho» morreu na cruz. O que desde esse instante se chamou «Evangelho» era já o contrário do que Cristo vivera: uma «má nova», um dysangelium. É falso até ao contra-senso ver numa «fé», por exemplo a fé na salvação por Cristo, a insígnia do cristão: unicamente a prática cristã, uma vida como a viveu aquele que morreu na cruz, tem algo de cristão... Hoje, uma tal vida é ainda possível e até necessária para certos homens: o Cristianismo autêntico, originário, será possível em todas as épocas... Não uma fé, mas uma acção, um não fazer certas coisas, sobretudo um diferente ser... Estados de consciência, uma fé qualquer, um ter algo por verdadeiro, por exemplo – todo o psicólogo sabe isso –, são de todo indiferentes e de quinta classe perante o valor dos instintos: em teros mais estritos, todo o conceito de causalidade espiritual é falso. Reduzir o ser-cristão, a cristianidade a um ter por verdadeiro, a uma simples fenomenalidade de consciência significa negar a cristianidade. De facto, nunca houve cristão algum. O «cristão», o que desde há dois mil anos se chama cristão, é unicamente uma auto-incompreensão psicológica. Se indagarmos com maior rigor, dominavam nele, apesar de toda a «fé», apenas os instintos. E que instintos! A «fé» foi em todas as épocas, por exemplo em Lutero, apenas uma capa, um pretexto, um véu, por detrás do qual os instintos realizavam o seu jogo – uma sagaz cegueira perante a dominação de certos instintos... A «fé» – já lhe chamei a genuína sagacidade cristã. Falou-se sempre de «fé», mas agiu-se sempre apenas por instinto... No mundo imaginário do cristão, nada ocorre que toque sequer a realidade efectiva: pelo contrário, reconhecemos no ódio instintivo a toda a realidade o elemento impulsor, o elemento unicamente propulsor, na raiz do Cristianismo. Que se segue daí? Que também in psychologicis o erro é aqui radical, isto é, determina a essência, ou seja, é a substância. Retire-se daqui um só conceito, ponha-se no seu lugar uma só realidade – e todo o Cristianismo voltará ao nada! Visto de longe, permanece o mais estranho de todos os factos, uma religião não só condicionada por erros, mas inventiva e até genial unicamente em erros perniciosos, apenas em erros que envenenam a vida e o coração – um espectáculo para os deuses, para essas divindades que são ao mesmo tempo filósofas e com que deparei nos famosos diálogos de Naxos. No instante em que a náusea se afasta delas (e de nós!) – tornam-se gratas pelo espectáculo que o cristão lhes proporciona: o pequeno astro miserável, que se chama Terra, merece talvez, só por causa deste caso curioso, um olhar divino, uma simpatia divina... Mas não subestimemos o cristão: o cristão, falso até à inocência, está multo acima do macaco – uma conhecida teoria das origens torna-se, relativamente aos cristãos, uma simples cortesia... 
[Leio esse aforismo, após escrever 'Nietzschianismo'.]

'Anticristo', aforismo 16, Nietzsche

Uma crítica do conceito cristão de Deus compele à mesma conclusão. Um povo que ainda acredita em si tem também ainda o seu Deus próprio. Nele venera as condições que o tornam vitorioso, as suas virtudes – projecta o prazer que tem em si, o seu sentimento de poder, num Ser a quem por isso pode dar graças. Quem é rico quer dar; um povo orgulhoso precisa de um Deus a quem sacrificar... A religião é, nestas condições, uma forma de agradecimento. É um agradecimento a si mesmo: eis para que se precisa de um Deus. Semelhante Deus deve poder ser útil e prejudicar, deve poder ser amigo e inimigo – é admirado tanto no bem como no mal. A castração antinatural de um Deus para dele fazer um Deus unicamente do bem ficaria aqui fora de toda a esfera do desejo. Tanto se precisa do Deus mau como do bom: não é justamente à tolerância, à filantropia que se deve a própria existência... Que haveria num Deus que não conhecesse nem a cólera, nem a vingança, nem a inveja, nem o desdém, nem a astúcia, nem a violência, que ignorasse porventura os cativantes ardeurs da vitória e da destruição? Semelhante Deus não se compreenderia: então, para que o ter? Sem dúvida, quando um povo entra em colapso; quando sente esvair-se para sempre a fé no futuro, a sua esperança na liberdade; quando a submissão se lhe afigura de primeira utilidade e as virtudes dos servos se insinuam na consciência como condições de sobrevivência, então há também que mudar o seu Deus. Torna-se agora sonso, medroso, humilde, aconselha a «paz de alma», a ausência do ódio, a indulgência, até o «amor» aos amigos e aos inimigos. Moraliza constantemente, rasteja para a caverna de cada virtude privada, faz-se o Deus de toda a gente, torna-se simples particular, cosmopolita... Outrora, representava um povo, a força de um povo, tudo o que de agressivo e sedento de poder existe na alma de um povo: agora é simplesmente o Deus bom... De facto, não há para os deuses outra alternativa: ou são a vontade do poder – e enquanto o forem serão deuses de um povo – ou são a impotência do poder – e então tornam-se forçosamente bons...
[e eu reli esse aforismo DEPOIS de escrever o texto anterior.]

O amor e a revolta à Coca-cola

Ontem vi uma pichação sobre um anúncio da Coca-cola. O [a] interventor [a] rabiscava o "Amor", da campanha "Mais amor", e escrevia por cima, numa participação bastante autorreferencial, "Revolta". Várias interpretações começaram, a partir dessa interferência, a pipocar na minha cabeça. A primeira, é claro, fica para o fato de a mais emblemática empresa do que poderíamos chamar de capitalismo comportamental se aproveitar de um remake de ideologia hippie, adaptada aos nossos tempos, em que se afirmaria "all we need is love".

A campanha da Coca-cola mira na associação da sua marca com uma ideia de felicidade, de "viver positivamente", com a ideia de pensar só em "coisas boas". Mostra em seu site casos de superação, como se desse uma força para a grande transformação do mundo. Isso me lembra do professor de economia que eu tive na faculdade, um cínico neoliberal num mundo de estudantes idealistas de esquerda, que adorava falar que não concebia um mundo - ou um país - em que não houvesse Coca-cola, para desdenhar de qualquer possível avanço dentro do regime cubano. Mostra também como até o capitalismo virou - ou finge ter virado - de esquerda. Parece, assim, que até os maiores banqueiros devem querer uma sociedade mais igualitária. Só nos basta, então, esperar que o capitalismo, um dia, chegue ao Brasil.

De toda forma, a resposta do [a] nosso [a] revoltado [a] pichador [a] mostra que sempre haverá quem vigie o vigia. Ou seja, a contracultura sempre escapa das armas da hegemonia. Enquanto alguém estiver pedindo amor, outra voz - talvez menor, mais baixa, mas ainda assim insistente - vai pedir revolta. E vice-versa. É dessas dicotomias que, já dizia o velho Aristóteles, vivemos.

Porém ["ah, porém"], essa intervenção mostra bastante como vivemos em um mundo asséptico em que se pensa que é possível viver apenas uma face das moedas, sem querer encarar o seu oposto. Ou, em outras palavras, como se fosse possível viver o "amor" sem a "revolta". Como se um não fosse conectado diretamente ao outro, e a muitos outros sentimentos.

Tenho problemas com a palavra "amor". Acho que ficou desgastada por anos e anos de frases vazias, em que as pessoas repetiam como se fossem uma forma de entrar num mundo cor-de-rosa, em que tudo fosse feito de algodão-doce, e que as pessoas viveriam mergulhadas em MDMA. Não que esteja sugerindo que o "amor" seja algo sério, ao contrário. Sou partidário de Oswald de Andrade, que em sua pílula pescou que "Amor = humor". Mas, como diria outro poeta, se você "mora na filosofia / para que rimar / amor e dor?".

"Amor" é um sentimento guarda-chuva - para usar uma expressão do marketing, já que estamos falando sobre. Abaixo de suas varetas, há diversos outros sentimentos, que o compõem, inclusive a "dor", citado no verso do Caetano. Mesmo que ele, no provável momento de muita dor [lembrai do "Tristeza não tem fim / felicidade sim"], se pergunta como um filósofo, isto é, como esse cara que se diz tão inteligente, pode cair no conto do "amor", e, ainda pior, como ele se permitiu sentir a "dor" desse "amor", a verdade é que um e outro são inseparáveis, indissociáveis. E Caetano, que seria ferido pelas garras da ferina tigresa, entre outras garras, sabe disso.

Não estou propondo que as pessoas se encaminhem para trituradores de carne, como aqueles personagens do filme "The wall", sobre o disco homônimo do Pink Floyd, mas que aceitem toda a complexidade e a dimensão do "amor", ou desse sentimento imenso que existe e que vem recebendo o nome de "amor". Nele cabem a raiva, a revolta, o ódio, o tédio, a ansiedade, o nervosismo, mas também, a felicidade, a plenitude, a tranquilidade, a calmaria. Não é possível ter um sem ter o outro. É capaz de termos mais alguns sentimentos que outros, mas não dá para escolher, como num supermercado o que levaremos para casa. A "revolta" não é a Coca-cola tradicional que deixamos para trás porque engorda muito, para escolhermos a light.

Talvez fosse melhor substituir, momentaneamente, a palavra "amor", por uma outra, para dar um refresco a ela. E "amor" ou o que ela representa é tão grandioso que em seu lugar eu só consigo pensar em uma outra, também imensa, e também multifacetada: "vida". Então, na próxima vez que eu falar "eu vivo você", já sabe, não tem nada a ver com telefonia celular.

sábado, 16 de novembro de 2013

Coeficiente de emoção

Em um evento na PUC-Rio, há uma semana, assisti a uma palestra de Javier Toret, da Universitat Oberta de Catalunya, a mesma do Manuel Castells, e um dos grandes midiativistas [essa nova posição] do grupo Indignados, ou, como eles gostam de se autodefinir, 15-M, em referência ao 15 de maio de 2011 em que eles se instalaram na puerta del Sol, uma espécie de Cinelândia madrilenha.

Os indignados, para quem dormiu nos últimos anos, continuaram e impulsionaram o movimento internacional de contestação da forma como a política é feita em todo mundo. Aliás, se há algo em comum em todas as manifestações que atravessam, em menor ou maior escala, o globo [sem trocadilho] é essa insatisfação. Não, meu amigo brasileiro, você não é o único que reclama dos seus políticos. Pode ficar tranquilo, ou se sentir despreocupado de viver no pior lugar entre todos, que isso é comum. Mais comum, infelizmente, do que se pode imaginar.

O evento consistiu em uma série de palestras que tinham o gancho de mostrar que havia uma organização, sim, entre os aparentemente desorganizados que participavam de protestos como os que acontecem no Brasil desde junho. Só não era uma organização formal, ou uma organização como nós a conhecemos, reconhecemos.

Houve vários momentos curiosos e interessantes, como quando Tiago Pimentel, um sujeito de dreadlocks louros e forte sotaque paulista, dos coletivos de mídia Interagentes e Casa de Cultura Digital, citou uma das frases mais assustadoras - e verdadeiras - que se pode dizer sobre política: Segundo Deleuze, ele disse, não seria possível haver um governo de esquerda, apenas um governo mais permeado aos ideais da esquerda. É fácil entender o conceito, se levarmos em conta a proposta de mudança, revolução, transformação que estaria incluída dentro do conceito de esquerda, o que é totalmente diferente da imobilidade de um Estado. É de assustar, às vezes, escutar o óbvio.

Mas o momento mais assustador [para mim, ao menos] foi quando, durante a apresentação de Toret ele falou de uma das métricas que eles, do 15-M, estavam usando para aferir o impacto das manifestações durante os protestos em 2011 [aliás, esse é um detalhe que devemos levar conosco: estão há dois anos estudando as manifestações, já]: uma espécie de coeficiente de emoção das interações dentro das redes sociais.

O processo era o seguinte, se eu entendi direito: eles criaram um robozinho que vasculhava a internet para saber como as manifestações foram comentadas, que tipo de emoção estava sendo associada a ela. Se o cara dizia: "Odiei a manifestação", era catalogado como "ódio". Se o cara dizia "Adorei o protesto", como "amor" ou algo do gênero. E assim por diante. O primeiro e principal problema nessa metodologia é óbvio. A linguagem não consegue refletir de maneira correta todos os tons da nossa emoção. Um exemplo tosco e banal: se o cara escreve "A passeata foi foda!", qual é a emoção que está implícita aí?

Além disso, uma frase não quer dizer exatamente o que a pessoa estava sentindo. O fato de ter escrito que odiava a manifestação não demonstra que o seu autor realmente a odiou, pode ter exagerado no tom. Também não quer dizer que o que ele considera ódio é o mesmo que outra pessoa considera. Como, então, igualar essas duas frases dentro de um mesmo conceito totalmente abstrato?

Eu gosto bastante de discussões políticas, mas, para mim, este não é o fundamento do humano - apenas o fundamento da vida em sociedade. Para mim, haveria algo ainda anterior à política, que identificaria o humano, que eu estou chamando muito amplamente de humanidade, ou o pensamento sinuoso, e que, na minha mais que humilde opinião, não seria possível matematizar, i.e., transformar em dados, códigos para uma análise numérica quantitativa.

Naquele momento, eu percebi que aqueles homens à frente da sala razoavelmente cheia, que seriam uma nova esquerda do mundo, uma nova forma de se organizar politicamente, já não compartilhavam a mesma humanidade, ou o mesmo conceito de humanidade, que eu. Eles estão tão integrados com as máquinas que aparentemente perdem toda a eternidade que existe entre o 0 e o 1. Não é de assustar que, e novamente eu vou citar a mais que famosa e derradeira entrevista de Heidegger, o filósofo de Meßkirch tenha afirmado - na década de 1960 - que a filosofia tinha acabado e que o que ficaria no lugar dela era a cibernética. Se sempre fomos homens-máquinas, homens-tecnológicos, agora, estamos virando máquina-homem.

Eu sei que isso é um problema da metodologia, e que a filosofia tende a se afastar disso, ainda bem, mas não consigo ficar satisfeito, mesmo, com essa tendência de transformar o mundo em um código binário. O homem, ou o homem-humano, não pode ser reproduzido numa impressora 3-D.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Nietzschianismo

Buda não seria budista, Cristo não seria cristão, Nietzsche não seria nietzschiano. Os três tiveram suas obras extremamente reinterpretadas por seguidores, fieis, estudiosos, que, após a morte dos patronos, disputaram a hegemonia de ser o portador desta ou daquela verdade. E, acredito, nos três casos, eles jamais seguiriam um guru, ou uma receita de bolo que dissesse o que seria bom, qual seria o caminho a trilhar. Mas a verdade é que eles criaram formas de pensar que influenciaram  - e influenciam - gerações, séculos, milênios.

O caso de Nietzsche é o de menor impacto, obviamente. Mas é curioso que uma leitura, não necessariamente uma leitura no sentido mais estrito do termo, mas uma leitura de suas propostas seja a voz dominante no momento atual. Muitíssimo resumidamente, ele foi o cara que pendurou a placa na parede dizendo que Deus tinha morrido. E que, com isso, se inaugurava a era do além-do-homem, que seguia simplesmente a sua vontade de potência, e não mais um código de condutas. Ou seja, numa interpretação canhestra, ele inaugurou [ou anunciou, ou percebeu] a era da individualidade extrema.

Reparem, não foi Nietzsche quem matou Deus. O bigodudo apenas percebeu que Ele tinha sido morto, e quem o havia matado foram os homens."O louco então gritou: 'Para onde foi Deus? o que vos direi! Nós o matamos! Vós e eu! Somos nós, nós todos, os assassinos!'", como o próprio escreve lá no mais que citado aforismo d'"A Gaia ciência". Mas, como se vê no texto, o louco fica, com o perdão da redundância, louco com a morte de Deus. Como assim? Como matamos o Cara? Ou seja, Nietzsche não era a favor, em tese, da morte de Deus, ele era a favor da destruição completa da forma de pensar que se estabeleceu a partir do Deus judaico-cristão. Ou seja, Nietzsche, além de não ser nietzschiano, não era também cristão.

O alemão percebe, porém, que, com a morte do Cara, ou seja, com a perda de importância que esses códigos criados a partir de um ser invisível que sabe tudo, está em todos os lugares e pode tudo, seria provável que a humanidade, tão acostumada a ser mandada, caísse num imenso buraco, num vazio extremo, num luto. Era o que ele chamava de niilismo. E ele imaginava que alguns, entre todos, conseguiriam sair do buraco, exatamente porque seguiriam as suas vontades, os seu quereres, à medida do possível. Era a vontade de potência.

O que se deu com isso, porém? Com a morte de um grande ícone, que unia a todos, um grande fundo, que ultrapassava os limites da pessoa física, algo que nos fazia, de alguma maneira, iguais, apesar de todas as nossas diferenças, outros elementos iriam entrar no lugar Dele para substituí-lo. Daí, as paixões avassaladoras dos ingênuos, o capitalismo selvagem dos inescrupulosos, as utopias igualitárias dos idealistas. A lista é grande, mas o raciocínio é o mesmo: não há mais um sentimento, algo que envolva toda a humanidade em conjunto. Ou melhor, até pode haver, mas ninguém consegue enxergar o óbvio.

O caminho seguiu e esses deuses menores foram se fragmentando, mais e mais, à medida que o tempo passou, em direção ao que se vê hoje: uma sociedade inteira de indivíduos que quase não dividem qualquer sentimento em comum. Isso é um problema em si? Não, não necessariamente, mas o que se viu, como consequência dessa individualização extrema foi um processo de perda da capacidade humana. Nos tornamos, cada vez mais, outra coisa que não o humano que, talvez, nunca fomos, mas sempre imaginamos. Humanos são aqueles que se emocionam, ficam verdadeiramente felizes, tristes, chateados, ansiosos. Somos anestesiados por uma série de medicamentos, não só os de tarja preta, e perdemos a vontade. Exatamente a vontade. Ironia do destino, que nos levou a um destino irônico.

Daí, talvez, se encaixe o raciocínio de Heidegger, quando ele fala que só um Deus pode nos salvar. Claro que não um Deus cristão, alguém que manda e desmanda. Mas um sentimento que nos ultrapassasse e nos unisse. Que demonstrasse que, de alguma maneira, por mais que temos vontades individuais, que explodem a todos os momentos, nos direcionando para lugares em que nem sempre somos convidados, temos algo que nos faz igual. Humanidade? O fato de termos vontade? O que será? 

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Felicidades e tristezas em 'Orfeu Negro'

[Publicado originalmente aqui.]

É bastante representativo que a música mais conhecida fora da peça Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes, seja a que canta “tristeza não tem fim / felicidade sim”. Em todas as suas estrofes, a canção mostra como a felicidade é efêmera: gota de orvalho numa pétala de flor, pluma que o vento vai levando pelo ar. Curiosamente a música se chama "Felicidade", e é representativa porque resumiria o caráter da tragédia, que virou filme pelas mãos do francês Marcel Camus (sem parentesco aparente com o outro Camus, o Albert), com a trilha sonora assinada por Tom Jobim. Mas será que toda tragédia mostra que a tristeza não tem fim, apenas, no caso, a felicidade?

O filme de Camus, Orfeu negro, é falado em português e situado no morro da Babilônia, como se fosse uma espécie de Olimpo carioca, com o Pão de Açúcar de um lado, a praia do Leme do outro. Vinicius percebe isso e escreve na introdução da peça: “O morro, a cavaleiro da cidade, cujas luzes brilham ao longe”. Ele traz o mito trácio de Orfeu para a realidade dos negros e das favelas do Rio de Janeiro no fim da década de 1950, com direito a samba, carnaval e sensualidade. Novamente para comprovar isso, na introdução da peça, Vinicius sugere que “todas as personagens da tragédia devem ser normalmente representadas por atores da raça negra, não importando isto em que não possa ser, eventualmente, encenada com atores brancos”. Ou seja, não era uma cota, mas uma indicação de como o seu autor, o branco mais preto do Brasil, ficaria satisfeito. E, comprovando o nosso racismo velado, teria sido, segundo o site oficial de Orfeu, apenas na primeira montagem da peça, em 25 de setembro de 1956, com quase meio século de existência, que o Theatro Municipal recebeu um ator negro em seu palco. No caso, um elenco inteiro.

Para perceber a importância do herói Orfeu para a mitologia dos trácios – um povo que ficava exatamente na ligação entre o que hoje chamaríamos de Grécia, Bulgária e Turquia –, Voltaire, em seu Dicionário filosófico, o compara a Abraão, entre judeus, cristão e muçulmanos, a “Tot entre os egípcios, o primeiro Zoroastro na Pérsia, Hércules na Grécia” e “Odin nas nações setentrionais”. Sua história, diferente de outros mitos, não tem uma versão “oficial”, não aparecendo em Homero ou Hesíodo, por exemplo, mas já era conhecido no tempo de Ibicus (c. 530 a.C. ) e Pindar (522 – 442 a.C.), que o chamava de “pais das canções”. Em algumas fontes, se diz que Orfeu seria filho de Apolo e da musa Calíope (como a própria peça de Vinicius, que coloca como sua mãe Clio, a musa da História), em outras, esse parentesco não é citado. Há muitas referências a Dionísio, inclusive chegando a dizer que ele seria a hipóstase do deus grego, ou seja, sua realidade concreta, sua substância, sua “encarnação”. De qualquer forma, é curiosa a ligação com esses dois deuses (Apolo e Dionísio), principalmente após Nietzsche, em O nascimento da tragédia, os ter colocado em posições quase antagônicas, de um lado o belo, o perfeito, a verdade, a razão, do outro o instinto de força, de luta, de desequilíbrio. No meio, entre os dois, a música. É aí que Orfeu, o herói, se situa. É o ponto de convergência entre Apolo e Dionísio.

Morto por mulheres
Se não temos a certeza do texto oficial, podemos perceber que em todas as versões que se contam sobre o mito, há uma coincidência: Eurídice. É por ela que Orfeu se encanta, se apaixona, e é por ela que ele vai até o Hades, o reino dos mortos. Os dois estão juntos quando Eurídice foge da perseguição do pastor Aristeu, e, na fuga, pisa em uma serpente que a pica, e a mata.  Desesperado, Orfeu resolve usar a sua arte para trazê-la de volta à vida. Desce ao submundo, e encontra Hades que fica sensibilizado com a sua música, e com o seu sofrimento, e faz-lhe a proposta de trazer Eurídice ao mundo debaixo do sol. Hades aceita mas impõe uma condição: desde que, na trajetória, Orfeu não olhasse para sua amada. Mas o amor nem sempre é paciente. O desespero, a ansiedade e a insegurança foram maiores e Orfeu, antes de chegar de volta ao mundo dos vivos, se vira e a encara. Assim, desrespeitando a ordem de Hades, a perde para sempre. De volta ao mundo dos vivos, Orfeu foi morto – as assassinas variam, mas sempre mulheres – por aquelas que se sentiram desdenhadas e invejavam o amor de Orfeu por Eurídice. “Mas as Musas, a quem o músico tão fielmente servira, recolheram seus despojos e os sepultaram ao pé do Olimpo. Sua cabeça e sua lira, que haviam sido atiradas ao rio, a correnteza jogou-as na praia da Ilha de Lesbos, de onde foram piedosamente recolhidas e guardadas ” – explica La leyenda dorada de los dioses y de los héroes, da autoria do helenista Mario Meunier, citado na apresentação da peça de Vinicius.

O filme de Camus, que venceu a Palma de Ouro do festival de Cannes, além de ganhar o Oscar de melhor filme falado em língua estrangeira, segue esse mito. Orfeu (Breno Mello) é um motorneiro e um grande músico, um dos principais componentes da fictícia escola de samba do morro da Babilônia. Segundo a lenda em torno de si, é ele quem faz, com o seu violão, o sol se levantar todos os dias de manhã. É um sujeito alegre, simpático, por quem as mulheres do morro vivem suspirando, enquanto os homens o consideram um grande camarada. Mais atirada que as demais, Mira (Lourdes de Oliveira) consegue levá-lo a um cartório para que fiquem noivos. Mas o homem que os atende, como um oráculo, já vaticina: Orfeu sempre ficou, fica e ficará com Eurídice. E Eurídice (Marpessa Dawn) já estava lá. Tinha acabado de chegar ao morro da Babilônia, vinda do Nordeste, fugindo de um homem, fazendo as vezes do pastor Aristeu, que ela diz que lhe quer mal. Chega no início do carnaval e vai ficar na casa da alegre Serafina (Léa Garcia), que vai proteger o casal e criar situações para que Mira não perceba a aproximação dos dois. A partir daí, a história segue até o seu esperado fim.

O que Vinicius de Moraes (e depois Camus) fez com Orfeu foi seguir uma tradição da modernidade, a mesma que o irlandês James Joyce já tinha seguido ao visitar a Odisseia em seu clássico Ulysses. Eles trazem o mito grego para os dias de então, mostrando como eles são eternos, e adaptar determinadas passagens para cenários e situações da cidade em questão. Joyce com Dublin, Vinicius com o Rio, mas o Rio mais pobre que há. Além disso, Joyce também usou da linguagem que era mais cara aos anglo-saxões, a literatura, enquanto Vinicius quis misturar palavra, som e gestos no teatro, mostrando o caráter menos letrado do nosso povo, mas não menor em nenhum aspecto, por conta disso.

Na ida ao reino dos mortos, por exemplo, Camus teve a brilhante ideia de adaptar um dos principais símbolos que há no Brasil de ligação entre os vivos e os não-vivos. Após a morte de Eurídice, Orfeu fica vagando pela cidade cheia por causa do carnaval. Em seguida, é levado por um faxineiro que se apieda de seu desespero para um terreiro de uma religião afrodescente, onde acompanha um ritual de evocação de espíritos. O seu acompanhante sugere que ele cante, para chamar Eurídice de volta, e Orfeu obedece. O clima da cena aumenta, com som de atabaques crescendo de volume, várias mulheres vestidas de branco andando em círculos, como se quisessem entrar em transe, até que uma delas recebe um santo. Orfeu fica assustado, mas continua cantando, até que se ouve uma voz, a voz de Eurídice, vinda de trás de Orfeu. Ele fica ainda mais surpreso, não esperava conseguir encontrá-la. Eurídice diz que eles poderiam conversar, mas que nunca mais se veriam. Ele jamais poderia se virar para vê-la. Se fizesse isso, ela desapareceria para sempre. Desesperado e sem aguentar ficar longe da mulher que ama, Orfeu se vira e vê não Eurídice, mas uma mulher mais velha, que não tinha aparecido até então, e que logo depois, sai do transe. O espírito de Eurídice já tinha ido embora.

Ao voltar para o morro, depois de já ter encontrado, ao menos, o corpo de Eurídice, Orfeu, carregando o cadáver nos braços, é recebido por uma ensandecida Mira, que havia descoberto que estava sendo enganada. Ela ataca Orfeu que morre, ao cair de uma ribanceira, junto com Eurídice. O herói, na morte, se une à sua amada.

Além da felicidade
A história de Orfeu, como a grande maioria das tragédias gregas, mostra que não podemos escapar do nosso destino último, que é a morte.  Mas mostra também que até lá, até o suspiro final, podemos navegar nessas águas nem sempre calmas da maneira como conseguirmos. Nem sempre os ventos são a favor, mas podemos nos adaptar para tirar o melhor proveito disso. O que Vinicius e Camus fazem, com essa adaptação do mito trágico, é jogar luz ao caráter melancólico, além do galhofento, da cultura nacional.

Mostram que, além da felicidade, também é do nosso caráter, até por sermos humanos, a tristeza. Não dá para escapar dela. Essa afirmação pode parecer até estranha num momento como os tempos presentes, em que se busca o prazer de maneira desesperadora, como se viver sem prazer já fosse um sofrimento em si. Mas tristeza e felicidade são, de uma maneira misteriosa, interligadas. Assim como Apolo e Dionísio.

Certamente há momentos em que é complicado pensar que haverá outro carnaval, quando a quarta-feira de cinzas chega, como mostra uma das estrofes da música “Felicidade”, de Vinicius: “A felicidade do pobre parece / A grande ilusão do carnaval / A gente trabalha o ano inteiro/ Por um momento de sonho/ Pra fazer a fantasia / De rei ou de pirata ou jardineira/ Pra tudo se acabar na quarta-feira”. Falta um ano inteiro de tristezas, que parecem não ter fim.

Porém, é também certo que o próximo carnaval é mais aguardado e saboreado quanto mais cinzenta for a quarta-feira. É essa dualidade que faz com que ambos os lados tenham sabor. Se só tivermos contato com um deles, ele acaba se autodeprimindo, ficando sem forças, já que não haverá felicidade o suficiente para se manter para sempre alegre, ou para livrar de uma tristeza profunda. E basta-nos estar na vida para saber que ela sempre se movimenta. Como se a felicidade tivesse fim, sim, mas a tristeza também. Apenas não conseguimos enxergar esse fim, quando estavamos vivenciado um ou outro sentimento. Mas o simples fato de os sentimentos existirem, mostra essa dinâmica de um lado para o outro, como se fosse um pêndulo.

Apesar da grande tragédia, o fim do longa deixa uma pista para essa conclusão. Os dois meninos que acompanham Orfeu e Eurídice durante todo o filme, correm para tocar o violão de Orfeu e assim fazer o sol nascer – como o herói sempre fazia. O sol, de maneira completamente independente das nossas vidas, continua a se levantar. Mas nós podemos dar um sentido para ele – no caso, tocando a música que o fará despertar. Ao se levantar, o sol também nos mostra mais que uma indiferença para com todas as tragédias debaixo dele. Nos aponta uma proposta de vida: de que precisamos seguir, sempre. Mesmo nos momentos mais tristes.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

O início e o fim da era de Nietzsche

Já ouvi acusarem Nietzsche de ser um sujeito que queria apenas complicar em vez de explicar. Que queria arrumar confusão. Cujas ideias não se aplicam à sociedade. Um adolescente, imaturo. Alguém que não sabe ser contrariado. Em suma, um mimado. Porém curiosamente Nietzsche, talvez mais que a maioria dos filósofos, deve ser entendido dentro de um contexto histórico. Para percebermos que, talvez, não seja nada disso, é aconselhável colocar esse mesmo Nietzsche, que dizia que a História servia para muita coisa, além de criar culpa e remorso, dentro de um momento da passagem do tempo.

Assim podemos ver que ele estava lutando contra uma série de pretensas verdades que travavam os músculos das pessoas que queriam simplesmente viver. Ele queria libertá-las, e se sacrificou - sem o pedido de ninguém - por isso. Propôs novas formas de se acreditar na vida, que ele sustentava que eram melhores, mas que não dá para garantir mesmo que são, ou que funcionem para todo mundo. Criou uma nova forma de pensar que, sob um forte filtro interpretativo, contaminou totalmente as gerações seguintes, a ponto de agora, ser complicado concordar com ele. Ou seja, em outro contexto histórico, Nietzsche, que dizia que já nasceu póstumo, está fadado a desaparecer. E assim a roda da vida gira novamente.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Shiva, o deus de Nietzsche

Sempre me deixou encafifado aquela frase que Nietzsche atribui a seu Zaratustra no fragmento "Ler e escrever": "Eu só poderia crer num Deus que soubesse dançar". Principalmente porque antes disso, antes de sua obra-mor, ele já tinha anunciado a morte de Deus, na anterior, Gaia Ciência. Claro que o conceito de deus, que tinha morrido na Gaia Ciência não era o mesmo que Zaratustra-Nietzsche citou em seguida.

Se no livro anterior, ele estava abordando toda a falência de um modo de viver e pensar, que tinha sido baseado na moral judaico-cristã, que nos tinha dado os parâmetros do certo-errado, na frase de seu herói, ele está, muito provavelmente, fazendo uma citação. Está dizendo, não que ele gosta de dançar e está propondo que a dança se torne o parâmetro da vida, mas que, em primeiro lugar, a dança é sinal da vitalidade, de uma proposta da sensualização da vida, de um mundo em que o corpo está em primeiro plano, não atrás; e em segundo lugar, ele está falando de Shiva.

Shiva dançarino, em seu avatar Nataraja
Não é curioso que o homem que implicou com as religiões que ele encontrou - judaísmo, cristianismo, budismo - tenha falado essa frase no meio de seu livro mais famoso? Não há uma referência direta ao hinduísmo nesta passagem, nem a Shiva, mas Rüdiger Safranski, o cara que biografou apenas Schopenhauer, Nietzsche e Heidegger, escreve assim na página 212 da edição brasileira do livro sobre o bigodudo:
Para Nietzsche, com a morte de Deus se evidenciam a audácia e o caráter lúdico da existência humana. E um além-do-homem será então aquele que tiver a força e a leveza para penetrar no jogo sempre igual do mundo. O transcender de Nietzsche vai nessa direção: para o jogo como fundamento do Ser. O Zaratustra de Nietzsche dança quando atingiu esse fundo; dança como o deus hindu do mundo, Shiva. E o próprio Nietzsche também haverá de dançar nu em seu quarto, pouco antes do colapso mental, nos últimos dias em Turim. Isso a dona da casa observou pelo buraco da fechadura.
Nietzsche, seguindo essa hipótese, diz que acreditaria num deus apenas se ele fosse Shiva. Mas quem é Shiva, na mitologia hindu? É um dos deuses da Trimurti, a principal trindade do hinduísmo. Um dos seus principais atributos, um dos seus ícones mais famosos, é o lingam, uma representação do falo. Shiva também é o deus das artes e da yoga. Mas Shiva é principalmente o deus da destruição, na trindade. Brahma é o criador, Vishnu o mantenedor, e Shiva aquele que destrói. Não soa algo muito parecido com o cara que dizia filosofar com o martelo?

Para os hindus, a ideia de um deus que destrói não soa despropositada, ou pessimista, ou ainda desesperadora: eles pensam que é necessária a destruição para que a roda da vida gire, para que se possa, novamente, construir e se manter. Shiva é aquele que dá a chance para as novidades acontecerem. É aquele que deteriora a matéria orgânica para adubar a terra e deixá-la apta para produzir novas vidas. Não seria possível pensar novas existências sem cogitar as formas de outas existências para montar essa nova.

Na Índia, apesar de existir uma civilização culta e milenar, era muito difícil encontrar um prédio muito antigo. Mesmo em Varnasi, considerada pelos indianos a cidade mais antiga ainda existente, os prédios são velhos mais por causa da falta de cuidado que pela idade. As construções de séculos de existência são normalmente de origem muçulmana. Porque, para os seguidores de Shiva, Brahma e Vishnu, o importante é sempre renovar, recriar, reconstruir.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Eike, o homem que queríamos ser

No início do ano, antes de todo o derretimento, um jornalista do Wall Street Journal, amigo-de-amigo-de-amigo, veio conversar comigo sobre o que eu achava do Eike Batista. Melhor dizendo: ele queria saber por que as pessoas confiavam tanto nele. Fui pego completamente de surpresa, nunca tinha pensado nisso. Além disso, sou um completo ignorante no assunto economia, aquele que passa pelos cadernos lendo apenas as amenidades, e fugindo de qualquer assunto mais economês. Mas me veio uma resposta à ponta da língua e a deixei escapar: por causa da Luma.

Luma mostrou a quem pertencia em 1998, na Sapucaí
Assim que eu disse isso, uma história inteira se apresentou à minha cabeça, com início, meio e fim. Não sabia se fazia sentido na vida real, mas ela tinha uma lógica que praticamente me convenceu. Eike era o homem que nós brasileiros queríamos ser, e com quem as brasileiras queriam casar. Ele espelhava todas as nossas ambições, todos os nossos devaneios, nossas fantasias, anseios, desejos. É um homem bonito, que tinha enriquecido, segundo ele, às custas do próprio suor, um verdadeiro self-made-man brasileiro, e que, diferente do Lula, outro que se fez sozinho, fala até alemão - e com o cachorro. Lembre-se dos nomes dos filhos. Não poderiam ser Peri ou Macunaíma. Jamais. Era um deslumbre.

E Luma é um dos seus maiores símbolos. Durante anos, do fim dos anos 1980 até meio dos 2000, foi considerada a mulher mais desejada do Brasil. A rainha de bateria pelo qual as escolas duelariam, que os fotógrafos se matavam para pegar um ângulo mais inusitado. Qual não foi o impacto na psiquê coletiva quando ela, no auge de sua popularidade, apareceu de coleira com o nome de um razoável desconhecido chamado Eike? É alemão? Como se pronuncia isso? Áique? Na época, era mais fácil: ele se apresentava como "o marido de Luma de Oliveira". Para os brasileiros foi um recado claro: se ele conseguiu conquistar Luma, nada lhe é impossível. Muito deslumbre.

Claro que também ajudou a Eike o fato de ele ser filho de Eliezer Batista, o cara que foi o presidente da Vale em duas oportunidades, o que, para os brasileiros, dá uma outra garantia de ele não ser esse tipo de aventureiro que pede o nosso dinheiro e depois some. Tinha pedigree. É alguém que vai pedir "com licença", antes de sair. Ou seja, ele era um self-made-man, mas sem vandalismo. Nunca fora pobre. Tudo deslumbrante.

O implante do cabelo também deve ter pesado na sua imagem

Mas em todo conto de fadas há o momento em que o príncipe deve decidir entre si e um objetivo maior. É nessa hora que se percebe qual é a nacionalidade da história a se contar. Daí, a grande queda de Eike não teria começado nas bolsas, mas quando essa imagem de homem que todos nós queremos ser / ter (lembre-se de como os políticos, de Lula e Dilma, passando por Cabral até Paes, enchiam desavergonhadamente a sua bola!) ruiu. E, dentro dessa história da carochinha, esse marco também é claro: quando o filho atropela e mata um homem ao voltar de uma festa. Não adianta colocar a culpa na vítima, que estava bêbado, atravessando uma pista de alta velocidade fora da passarela. Thor estava acima da velocidade. É batom na coleira.

Para continuar com a confiança dos brasileiros, cabia ao homem mais rico do país, naquela hora, agir como um empresário, mas do tipo anglo-saxão, ético, distante, frio, progressista, que pensa no business acima de tudo - o que nos faz, nós, brasileiros, salivarmos de inveja. Mas ele desatinou. Se portou como um reles brasileiro pai de família, que tentou de todas as formas acobertar o crime e proteger o filho. A família é mais importante que a vida de outra pessoa? A família é mais importante que tudo? É isso, então? Se até podemos entender - e lá no íntimo aceitar - essa atitude pessoal de Áike, perdemos a confiança no empresário Eike.

Sua imagem de homem perfeito, que queremos ser quando crescer, um exemplo para o país, ficou indelevelmente manchada. Os brasileiros achamos que ele era mais um, que apenas teve mais sorte que os demais. Um rei do camarote que conseguiu enlaçar Luma, e sabia vender bem seux produtox. Não merecia nosso dinheiro.

Agora, como em um prólogo, há uma catarse coletiva entre os brasileiros, como se quisessem tripudiar do homem que os tentou enganar durante tanto tempo. Como se houvesse um alívio, misturado com raiva, porque ele prometeu que era possível ser brasileiro e rico, ao mesmo tempo, e quando não conseguiu concluir essa promessa, acabou com as esperanças de quem confiava nele para também enriquecer. Junto a isso, porém, ele também demonstrou que ninguém é completamente incapaz por não conseguir enriquecer. Até o homem que pegou a Luma não consegue ficar rico por muito tempo. Deve ser problema da peruca.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

'Breaking Bad' e o [mais um] crepúsculo dos homens

Capitulei e assisti à série que todas as pessoas disseram ser a mais sensacional produção para a televisão, mais até que "Avenida Brasil", em muito tempo: "Breaking Bad". Vi todas as cinco temporadas. Terminei ontem com a sensação de dever comprido e cumprido. Não posso negar que há momentos verdadeiramente incríveis no seriado, mas que ficam concentrados na primeira, início da segunda, fim da quarta e praticamente toda quinta. Ou seja, o miolo da produção é meio modorrento. De toda forma, valeu verdadeiramente a pena assisti-la por completo.



Para quem não acompanhou os cerca de 70 capítulos, nem quis ver o vídeo aí de cima, um diminuto resumo: Walter White é um pacato professor de química de uma escola pública do estado do Novo México, nos EUA, que completa a renda de casa com um emprego de meio-período como caixa numa lava-jato. É casado com Skyler, que está grávida de seu segundo filho, a menina Holly, que nasce na segunda [ou terceira?] temporada, e cujo primogênito, Walter White Jr. tem uma leve paralisia cerebral, que dificulta sua locomoção e sua fala. A irmã de Skyler, Marie, é casada com Hank, um policial da D.E.A., uma agência americana de combate ao tráfico de drogas. Esse é o núcleo central e familiar da trama. Walt vive um cotidiano sem grandes sobressaltos - ou melhor, sem qualquer sobressalto - até que... descobre que tem câncer no pulmão. A partir daí, ele decide mudar de vida, tentar ganhar a maior quantidade de dinheiro possível para poder sustentar sua família depois que ele partisse. Sua proposta, porém, é um pouco ousada demais: ele começa a fabricar com um ex-aluno, Jesse, metanfetamina.

Pronto, essa é a trama, a coluna vertebral da série. Em cinco anos, muitos outros personagens aparecem, muitas situações paralelas se desenvolvem, mas esse núcleo se mantém, mais ou menos inalterado, até o último episódio. A mudança do original tom de humor negro, em que você se pega rindo de situações escabrosas, para uma tragédia shakespeariana, como bem demonstrou sir Anthony Hopkins, um dos seus muitos fãs, talvez seja a principal transformação nesse tempo. E a qualidade dos atores, principalmente de Bryan Cranston, Walter White, uma versão contemporânea do rei Lear, o seu ponto mais alto.

O conhecimento avançado de Walt sobre química, o que muitas vezes lhe dava quase poderes super-humanos sobre as outras pessoas, me fez lembrar um pouco o MacGyver, acrescido do fator de vivermos, agora, em um sociedade em que aparentemente apenas o conhecimento científico-matemático é valorizado nas camadas médias da sociedade. Mas a principal referência, e é uma referência que sem querer muita gente fez, sem demonstrar que sabia que fazia, é "Sopranos" [que eu só vi a primeira temporada].

Considerada por muita gente boa a série que transformou as produções americanas para a TV em obras de arte, o seriado sobre o mafioso Tony Soprano, que vai para uma psicóloga porque não consegue cumprir suas funções criminosas, tem alguns pontos de encontro fundamentais com "Breaking Bad". O mais óbvio é a relação de um criminoso com sua família. O limite moral de uma pessoa é elástico? Se rompemos com as leis e os limites no âmbito público, também o faríamos na esfera privada? Ambas produções tentam dar respostas para isso.
Em cinco temporadas Bryan Cranston sai da esquerda para a direita

Porém, há uma segunda correlação mais sutil que me chamou mais a atenção: o tal crepúsculo do Homem. Em que momento um mafioso começou a ter dúvidas sobre o que fazer na condução do seu negócio? Como fazer um professor de escola pública não se sentir aviltado diante de uma vida sem qualquer tipo de desafio? Como aceitar um enfadonho cotidiano casa-trabalho-casa, sabendo que esse é o futuro que lhe foi reservado até sua morte? Como achar bom que o seu presente de aniversário de 50 anos é receber um handjob da mulher enquanto ela participa de um leilão pela internet de objetos sem valor algum?

O que "Breaking Bad" mostra é que vivemos em uma sociedade sem qualquer gosto verdadeiro. Não à toa há a piada do bacon vegetariano logo no início da primeira temporada. Ficamos tão cientificamente cuidadosos com a nossa sobrevivência que nos esquecemos que viver requer algum tipo de risco. BB exagera nessa dose para exatamente acentuar as características que mais marcariam nossa sociedade: o infinito tédio, o cinismo cotidiano, a ironia como forma de vida.

Se os dois casos têm papéis masculinos como protagonistas talvez seja porque nós, homens, sofremos mais essa queda do Olimpo. Porque nunca tivemos muito tempo para dúvidas e nossas cobranças eram de caráter muito mais claro. Agora, para efeito de comparação, assim como os homens sempre exigiram mulheres ao mesmo tempo lindas e inteligentes, chegou a vez das mulheres exigirem híbridos de poetas e pedreiros. O resultado são relações de alta expectativa e baixa segurança.

Quando finalmente Walter White assume uma voz de comando, típica da do homem-masculino-alfa, em que ele pode se identificar com um passado nem tão longínquo, em que ele tem dinheiro, carrão e todos os ícones que identificam o arquétipo batido dos portadores do cromossomo Y, ele percebe, porém, que ultrapassou um limite e que não é mais possível voltar. Mesmo que ele não quisesse, ele estaria para sempre conectado com o que ele criou. Como um animal primitivo, ele avançou sobre seu destino, aceitou seu instinto e seguiu em frente inconsequentemente. Como um animal primitivo, se esqueceu de uma das lições mais antigas que a ciência, via Newton, ensinou para a humanidade há quase 500 anos: a toda ação, há sempre uma reação de mesma direção, intensidade e sentido oposto. Mas isso não é exatamente um problema. Porque, às vezes, para viver é preciso também morrer.

sábado, 2 de novembro de 2013

Mercúrio retrógrado - ou o planeta que faz moonwalk

Mercúrio, fotografado pela Nasa, que agora está fazendo
o Moonwalk
Recentemente saiu uma notinha em uma coluna de jornal. Depois, comentários no Facebook. Papos virtuais e físicos. Todo mundo confirmando o mesmo sentimento: o momento está generalizadamente complicado. Sem exceções, todos estamos sofrendo bastante. E o culpado dessa catástrofe seria um único fenômeno: Mercúrio retrógrado.

Não, meu querido e sonhado leitor, este mui humilde escriba não capitulou e começou a acreditar em horóscopo quiçá em astrologia. Nada contra, só mesmo uma incapacidade física para a crença, de toda e qualquer natureza. Problema de hormônios, deve ser. Por que, então, falar sobre esse fenômeno relativamente comum, que nada mais é que uma simples ilusão de ótica, mas que, segundo as informações dos crentes, influenciaria negativamente todos os habitantes da Terra, principalmente no que condiz à comunicação?

Porque se o fenômeno não explica as contínuas desavenças que acontecem, ele, ao menos joga luz para o óbvio: houve um aumento da tensão. Não sei se na Terra, não sei nem se no Brasil, mas suporia com força no Rio. Aumento dos índices de violência são constatados, depois de anos de queda. Crimes de uma crueldade grande, como o fulano que teve a cabeça cortada, ou o garoto que foi baleado em frente ao Fórum. Fora os constantes assaltos, furtos, brigas, discussões desnecessárias, confusões que presenciamos diariamente.

Dias desse, depois de ver a disputa entre taxista e motorista de ônibus, e o lutador de MMA bater como por esporte em um trombadinha, fui acordado recentemente aos gritos de "vou te matar", proferidos pelo contido [pelos colegas] taxista que faz ponto na esquina em direção a um dos bêbados-semi-mendigo [não é exatamente morador de rua, mas vive na sarjeta] que habitam as redondezas. Não deu em nada o bate-boca, aparentemente, mas o clima ficou muito, muito nervoso.

Qual é a origem, qual é a razão, então, desse aumento de tensão - se ele se confirmar - já que não é o Mercúrio retrógrado? Seria o verão já apontando na esquina? Seria o calor esquentando também o sangue nas veias? Eu vou sugerir algo diferente: uma decepção e uma frustração coletiva. E, novamente, as manifestações que desde junho inflamam as ruas na tentativa de sacudir o restante da cidade são os principais exemplos disso.

Mas vou além. Aparentemente, houve uma decepção, uma frustração generalizada com a terra prometida. Quando falaram que teria havido uma diminuição na disparidade entre ricos e pobres, se pensou que isso seria um ótimo passo em relação a uma cidade mais justa. Mas não é assim que se sente. Com o policiamento reforçado em favelas, também acreditamos que a violência diminuiria. Igualmente, uma ideia que não encontra muitos adeptos, principalmente para quem mora fora da Zona Sul carioca. Pensamos que o policiamento de "pacificação" seria apenas uma pequena ponta do iceberg num projeto social muito maior, encabeçado pelo estado e apoiado pelo município - outro tiro n'água. Nos venderam que a Copa e a Olimpíada nos transformaria em uma cidade organizada, de primeiro mundo! - e até agora só sofremos as consequências dessa suposta arrumação, com o aumento de trânsito, os preços estratosféricos, a hoje famosa gentrificação. Parecia, enfim, que teríamos, após séculos de governantes que ignoravam as vontades populares, políticos sérios e justos no poder, e percebemos que, novamente e como sempre, as promessas eram vazias.

Essa decepção generalizada com a coisa pública gerou um sentimento imenso de frustração que as pessoas estão canalizando da maneira que conseguem: em direção ao outro. Já que ficou o clima de que não adianta mesmo reclamar dos políticos, porque eles nem se mexeram para fazer qualquer tipo de votação relativa aos pedidos mais gerais [como a reforma política, por exemplo, ou, no caso específico do Rio, a CPI dos Ônibus], a raiva está sendo jogada pelas janelas em direção a quem estiver passando. Como se fosse uma batata assando.

O Mercúrio deixa de ser retrógrado e volta a andar "para frente" em breve, no dia 10 de novembro, segundo os astrólogos. A decepção, não. Que essa raiva, pelo menos, seja direcionada para, senão outras manifestações gigantescas como as de junho, ao menos, a eleição do ano que vem. Que acontece daqui a 11 meses, quando Mercúrio estará fazendo seu moonwalk de novo.