segunda-feira, 26 de maio de 2014

Morango zen

Uma Parábola
Certa vez, disse o Buddha uma parábola: Um homem viajando em um campo encontrou um tigre. Ele correu, o tigre em seu encalço. Aproximando-se de um precipício, tomou as raízes expostas de uma vinha selvagem em suas mãos e pendurou-se precipitadamente abaixo, na beira do abismo. O tigre o farejava acima. Tremendo, o homem olhou para baixo e viu, no fundo do precipício, outro tigre a esperá-lo. Apenas a vinha o sustinha. Mas ao olhar para a planta, viu dois ratos, um negro e outro branco, roendo aos poucos sua raiz. Neste momento seus olhos perceberam um belo morango vicejando perto. Segurando a vinha com uma mão, ele pegou o morango com a outra e o comeu. "Que delícia!", ele disse. 
[daqui.]

domingo, 25 de maio de 2014

Heidegger e o futebol

Com a chegada da Copa do Mundo em menos de três semanas, lembrei de uma história curiosa envolvendo o sujeito que tem tomado minha atenção nos últimos tempos e o grande evento. Apesar do famoso esquete do Monty Python, mostrando que a única coisa que filósofos fariam num campo de futebol seria pensar [apesar de eu ter dúvidas em relação a Marx...], há relatos de como Heidegger, no fim da vida se interessava pelo velho e violento esporte bretão.

Na década de 1960 até a seguinte, Heidegger, já retirado da vida pública, se torna um "ancião respeitável", nas palavras de Rüdiger Safranski, um de seus biógrafos. Abranda sua severidade e se torna menos rude, prestando a atenção às coisas frugais da vida, como o futebol. Copio o trecho aqui da biografia, na tradução de Lia Luft que, se não me engano, já tinha encarado outras biografias que Safranski escreveu [sobre Nietzsche e Schopenhauer]:
Heidegger era agora um ancião respeitável, mas aquilo que fora rude e severo abrandara-se. Foi à casa de vizinhos para assistir a grandes jogos de futebol europeus na televisão. No lendário jogo Hamburgo contra Barcelona em começo dos anos sessenta, de tanto nervosismo ele derrubou sua taça de chá. O ex-diretor do teatro de Freiburg encontrou-o certa vez no trem e quis falar com ele sobre literatura e palco, o que não conseguiu porque Heidegger, ainda sob a impressão recente de um jogo de futebol, preferiu falar de Franz Beckenbauer. Tinha grande admiração pela maneira sensível como este manejava a bola - e tentava explicar plasticamente ao espantado ouvinte os refinamentos de jogo dele. Chamava Beckenbauer de jogador genial louvava sua invulnerabilidade em embates a dois. Heidegger emitia juízos de especialista pois em Messkirch [sua cidade natal] não apenas tocara sinos mas também chutara muito bem como ponta esquerda.
Curioso ele ter admiração exatamente por Beckenbauer, que é a "arma secreta" do time alemão na esquete do Monty Python, e jogar exatamente na ponta-esquerda, que, se respeitando as antigas relações entre posições no campo e números na camisa, seria a sua no time alemão, com a 11.



ps. Wittgenstein é austríaco, mas será que isso importa para os britânicos - principalmente levando em conta que ele fez sua carreira acadêmica na Inglaterra? Ainda bem que ele foi logo substituído, para não causar problemas para o time.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Paul Klee, 'Ancient sound'


Essa foi a obra, após uma exposição de Miró, que me fez gostar do abstracionismo. Tire, por favor, 15 minutos do seu dia e fique apenas olhando essa imagem até a mágica acontecer. Se preferir maior, clique aqui.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

O maior legado da Copa

Quando a presidenta pede pelo espírito hospitaleiro do brasileiro para recebermos bem os estrangeiros que virão para a Copa, ela dá mostras como os políticos tradicionais em geral não estão enxergando bem nesta mudança que acontece em nossas identidades. Desde junho do ano passado, estamos passando pelo processo - doloroso e tortuoso - do nascimento de novas formas de nos identificar como pertencentes a um mesmo grupo humano que atende pelo nome de brasileiros. Mas parece que muita gente não quer ou não consegue enxergar isso.

A gestação dessas novas identidades começou em um tempo indeterminado no passado. Uns dirão 12 anos; outros, 20 anos. Haverá aqueles que lembrarão seu 30º aniversário ano que vem. Não importa a data exata, assim como o nascimento, a gestação é um movimento contínuo. O próprio nascimento não tem data para acabar: 2014? 2015? 2016? 2018? 2022? Um dia vai acabar?

O que me parece inegável - e o que dá para sentir na pele - é que estamos trocando de roupagem. Não quer dizer que não vamos aproveitar adereços antigos, não é isso. Não deixaremos necessariamente de ser o país do futebol, por exemplo. Mas o movimento contra a Copa do Mundo deveria ser levado e muito em conta nessa nossa autoavaliação - inclusive, deveríamos relembrar sempre a nossa fracassada organização do esporte no Brasil.

Em uma palestra na Semana de Alunos da Filosofia da PUC-Rio, Bernardo Boelsums fez um paralelo bem criativo entre o nascimento do que seria esse país do futebol e a Copa de 1950. O pano de fundo era Heidegger, e a sua proposta de que, para se encontrar o ser de qualquer ente, ou seja, ter contato com a nossa existência máxima, mas apenas por um instante, em um quase lapso, termos que nos esvaziar por completo. Ou, numa expressão muito repetida de Heidegger "olhar o abismo".

Para Bernardo, a enorme euforia, o clima de já-ganhou, o oba-oba - quase justificáveis - que antecederam a derrota para o Uruguai no famoso episódio de Maracanã fizeram a nossa queda ser ainda mais esmagadora. Quanto maior a autoconfiança, maior o barulho ao estabacar-se. Ou, para citar uma frase original do futebol: só acaba quando termina.

O vazio que se seguiu, o silêncio que se ouviu após o gol de Ghiggia teria criado as condições para o país ser três vezes campeão em quase sequência [1958-1962-1970], com uma interrupção exatamente no momento em que o país novamente se achou acima do bem e do mal, em 1966. Clima, aliás, parecido com o que tivemos em 2006, com o tal quadrado mágico e a farra na Alemanha, por exemplo. O resultado de pouco trabalho e muita fama é sempre, mais ou menos, o mesmo.

Com essa Copa de 2014 e a ausência de empolgação genuína nas ruas - parece que só os meios de comunicação e os publicitários estão ligados na competição -, fica a suspeita de que pode até haver Copa, mas dá para imaginar que o Brasil, o país, que sairá desse corredor estreito será diferente daquele que entrará. Com ou sem o hexa.

Esses seguidos eventos de grandes proporções que acontecem no Brasil, além de um processo longo, mas ainda no início, de amadurecimento da própria nação, estão nos obrigando a refletir sobre o que é o país, o que é pertencer a essa nação, o que queremos e o que podemos fazer para alcançar o que queremos. Nas palavras de Heidegger, estamos pensando o que é o ser do Brasil - o que não fazíamos havia muito tempo. Esse é certamente o maior legado da Copa.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

O apoio à greve dos rodoviários

É muito difícil ter simpatia pela greve dos rodoviários no Rio. Parece que é um trabalho para masoquistas: como se fôssemos a favor daqueles que infligem o desconforto diariamente contra nós. E quem pegou - quem conseguiu pegar - um ônibus nesses dias de paralisação teve maior dificuldade de ser favorável aos rodoviários. Os motoristas pareciam ainda mais carregados nas piores características associadas ao seu trabalho. Talvez por estarem sem fiscais e sem uniformes, eles corriam ainda mais desesperadamente, só paravam fora do ponto, faziam manobras mais bruscas, gritavam e discutiam mais com os passageiros. Mas, se desejamos uma sociedade mais igual, sem tantos desníveis entre a elite e as classes abaixo, precisamos nos esforçar por alcançarmos essa simpatia.

Motorista de ônibus talvez seja a categoria mais cotidianamente odiada pela grande maioria das pessoas. Políticos são muito ausentes das questões diárias para serem lembrados com tanta frequência, e ainda despertam um certo tipo de reverência, principalmente pelos menos acostumados a celebridades. Policiais são odiados com mais frequência que políticos e com muito mais intensidade que motoristas de ônibus, mas ainda acho que a questão com os motoristas de ônibus é mais geral, atingindo a todos, quase sem exceção [o ex-governador Cabral, que anda de helicóptero, deve pensar que coletivo é alcateia de lobos].

Mesmo que a paralisação esteja, em tese, quebrando determinações judiciais, ou passando por cima do sindicato organizado, ainda assim, ainda dessa maneira, acredito que devemos ter alguma simpatia com a greve. Principalmente porque acredito que a lei deve correr atrás do tempo passado. Há um fato incontornável: os motoristas e trocadores estão em greve. Condená-los só fará a situação piorar, o abismo social tende a aumentar. O direito, e a Justiça como executora do direito, deveria tentar incluir os homens, não o inverso. Não é na canetada de um juiz, não deveria ser no medo, que uma greve deveria acabar.

Outro problema que os rodoviários enfrentam é uma suposta manipulação política de profissionais dos cargos públicos eletivos. Como se motoristas e cobradores tivessem se transformado em massa de manobra de políticos como Garotinho e / ou congêneres. Ou, como dizem, que a manifestação fosse "política". Há um erro de entendimento aí, na minha concepção.

Sempre nos esquecemos que mesmo palavras fortes como "política" ou "democracia" são, antes de fortes, palavras. Assim carrega muito das cargas que pudermos lhes impor. No caso em questão, a reclamação é pelo uso mais mesquinho da política, o das tramoias e maracutaias. Os rodoviários estariam, com a sua paralisação, incentivando a volta de Garotinho ao poder estadual. Retiramos, porém, desta forma, a capacidade de eles agirem por si só, sem um cérebro por trás. Seriam apenas bonecos, cujo títere mexeria as cordas para os fazer andar. Não sei se consigo acreditar 100% nisso.

Além disso, mesmo que eles estejam apoiando Garotinho, nos esquecemos que vivemos numa democracia e que eles têm o direito de apoiar quem eles quiserem. E, novamente, estaríamos pensando que, com essa atitude, os eleitores ficariam sensibilizados e votariam contra o consórcio Paes-Cabral-Pezão. E outra vez tirando a autonomia dos eleitores. Não sei...

Também não sou favorável do apoio baseado num argumento de pena. Eles ganham pouco, trabalham em situações completamente desfavoráveis, portanto têm mais que o direito de reivindicar melhores condições. E nós, numa posição de superioridade, autorizaríamos um pequeno sacrifício próprio para que eles possam melhorar de vida. Não é por aí.

Eu começo a tentar responder a questão usando dois argumentos. Primeiro: Ao se posicionar contra o cartel das empresas de ônibus eles estão atacando os principais culpados do problema que mais cotidianamente afeta a população do Rio. Pode-se pensar que a tática foi errada - ouvi de um amigo que a melhor proposta seria eles circularem com as roletas abertas, sem cobrar nada. Talvez fosse, realmente, mais efetivo, mas não sou eu quem decide a maneira como eles protestam, sou apenas um usuário do transporte que quer prestar solidariedade.

Perfeita ou imperfeitamente, eles estão atacando o centro dessa máfia, que atinge a todos nós. Dão um prejuízo imenso para esses empresários e, com a outra mão, demonstram a completa falência do transporte público sem alternativas, e totalmente dependente de um modelo incompetente. A atitude deles mostra como somos trouxas de aceitar como meio de transporte ônibus, controlados por empresários gananciosos que, segundo boatos fortíssimos, têm ligações escusas com as esferas do poder.

O segundo motivo é mais genérico, mas não menos importante: todo mundo tem o direito à greve. Aliás, com a chegada da Copa, vemos como esse direito está sendo exercido cada vez mais. A greve pode ser justa ou injusta, dependendo de que lado a enxergamos. Pode ser mais ou menos efetiva. Pode ser uma paralisação ou manifestações que comuniquem a insatisfação. Mas ninguém pode retirar esse direito da reclamação. Se houve um resultado claramente positivo das chamadas jornadas de junho foi a política, no sentido do viver a rua da cidade, voltar à pauta de todo mundo. O caminhar ainda é bastante claudicante, mas se há um jeito de nos encaminhar para um melhor entendimento ele passa por esse movimento.

Resumidamente poderíamos citar a frase erroneamente associada a Voltaire: eu discordo do que você diz, mas vou defender até a morte seu direito de o continuar dizendo. Não preciso concordar com os hábitos perniciosos da categoria para defender o seu direito de buscar os seus direitos. Porque eles somos nós, e nós somos eles.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

'O vazio' - 'Desironia'

Qual é a vantagem de se escrever mal? Poder escrever o que quiser, sem se importar com os eventuais e exigentes leitores. Aproveito essa minha sorte para recomeçar a contar uma ficção, que foi iniciada há anos, porque eu preciso terminá-la. Esse trecho abaixo é o capítulo chamado "O vazio". Para ler outros trechos, clique aqui.

***

Sinto um vazio imenso dentro de mim. Um vazio que não tem culpa, nome, rosto ou sensação. Apenas o nada, que se traduz numa angústia sem razão ou num tédio imenso. Não é bom nem ruim, apenas não é. É como se eu tocasse o que não existe, como se isso fosse possível. Corro para colocar qualquer coisa nesse vácuo, que puxa tudo à volta, como uma força de sucção, com uma pressão negativa. Coloco algo, mas logo esse algo é sugado e some e o vazio reaparece. Como se o buraco por onde sai todas as coisas fosse maior que qualquer coisa que eu colocasse ali. Há uma fome que não pode ser saciada, há uma voracidade que eu não sei controlar.

O tempo se transforma em um grão de areia que vai descendo vagarosamente pela ampulheta, mas que logo me afoga, e eu percebo que é mais um dia, é menos um dia. Eu fico apreensivo, e tento lutar contra isso – juro que tento – mas o buraco é maior que o meu corpo, e eu mesmo sou sugado e logo não consigo respirar e corro para tentar voltar à tona. Faço novamente o caminho, de colocar algo nessa sangria, tentando estancar a hemorragia, amarro forte, mas me vejo esvaindo, esvaziando, sumindo, desaparecer.

Não me cobro, não mais. Não participo da vida, da vida cotidiana, do ganhar dinheiro, do fazer as coisas normalmente. Vivo da renda que meu pai me deixou, um apartamento, que alugado paga as minhas parcas contas. Sou barato, sou quase de graça. Vejo o sol lá fora, acho bonito, mas não quero participar disso. Não tenho vontade. Não tenho vontade de nada.

A única forma em que me perco do tempo, em que o tempo sai de mim, em que ele não se mostra tão presente, tão real, volta para um lado detrás dos meus olhos, é esquecido numa prateleira que eu não sei bem qual é, é quando escrevo. Por mais falso que possa parecer. Eu escrevo e o tempo se transforma em elástico, perde a noção do seu tiquetaquear, do seu ponteiro de cada segundo que gira em torno do centro.

Me sinto ainda muito ferido, um animal com medo que quer se manter dentro da própria caverna na expectativa que o corpo se regenere, se isso for possível – desconfio que não é. Quando não estou na queda-livre da angústia, a sensação não é a do fim do mundo. Não é bom, mas o ruim que me aparece é mais parecido com uma refeição sem gosto, não de comida estragada. Eu estou com fome e a como e me sinto alimentado e continuo esperando, esperando o tempo passar, e passa tempo tão devagar, que eu vejo a poeira se escondendo pelos cantos e eu não tenho vontade de varrer, quero apenas esperar que vá. Depois de tanto tempo, com a ferida rasgada, com tanta hemorragia, já não sei se é possível.

Às vezes consigo substituir a angústia por um similar de pior qualidade: a ansiedade. A diferença é que a angústia é sem motivo, é isolada, acontece comigo sem qualquer razão de ser. A ansiedade sempre tem uma causa externa, algo ou alguém que me torna inseguro, que faz me sentir andando no Saara de areia movediça. Há dias em que eu prefiro me sentir ansioso que angustiado, já que ansioso, eu me engano, eu posso fazer algo. Eu sei por onde lutar, o que caminhar, que tipo de dança pedir. Não adianta. Não muda em nada o resultado. Parece que tudo o que eu faço é inútil, sem graça, sem gosto.

Só me resta fazer o que eu posso: viver. Com a maior dignidade que eu encontrar. É quase nenhuma, mas é o que eu tenho agora. Sou um bicho que não quer aparecer, que só espera  o que o porvir me reserva, sem qualquer esperança, nem expectativa. Com receio de outros ataques, com receio dos próprios pensamentos, das próprias lembranças. Que queria não sentir o que verdadeiramente sente. 

domingo, 4 de maio de 2014

'Festa' - in 'Desironia'

Qual é a vantagem de se escrever mal? Poder escrever o que quiser, sem se importar com os eventuais e exigentes leitores. Aproveito essa minha sorte para recomeçar a contar uma ficção, que foi iniciada há anos, ou muito antes disso, porque eu preciso terminá-la. Esse trecho abaixo é um pedaço do capítulo chamado "Festa". Para ler outros trechos, clique aqui.

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Que difícil contar uma história que dói por dentro só de revisitá-la. Será que eu vou ter forças para continuar?

Me deixe, então, antes de continuar, me deixe acrescentar aqui uma ideia para que a fumaça camufle um pouco o caminho principal: quando eu era criança, pequeno, menos de cinco anos. No máximo cinco anos... Não tenho essas lembranças tão frequentemente, mas estava lendo um livro que me disse uma frase que me lembrou disso. Estava mexendo na minha biblioteca e li essa frase, que eu não anotei, que eu perdi para sempre, que voltou para o silêncio dentro de um livro perdido no meio de outros. A frase desencadeou um pensamento em mim, me trouxe uma memória, e essa lembrança me fez encadear raciocínios, não sei se exatamente racionais, mas com alguma lógica, não necessariamente mundana, não necessariamente. Humana... Quando era pequeno... eu sempre me via, num futuro imaginado, utópico, sempre me projetava como um homem que teria contato com os grandes eventos – do planeta, do país, da minha rua, não importa, eram os grandes eventos, aqueles por que somos lembrados, aqueles que introduzem pontos-parágrafos, ou ao menos pontos, na história da humanidade – eu estaria presente nesses eventos, em eventos desse porte, em, ao menos, um evento assim, eu seria uma figura comum nesses momentos mágicos que são fotografados pela memória coletiva, que se torna referência para o futuro, que é lembrado, ensinado, repetido, decorado, eu estaria lá, seria uma testemunha ocular, mas, curiosa ou lamentavelmente, eu jamais seria – eu jamais me via como o principal ator desse teatro da vida real. Jamais. Seria o segundo em comando, o conselheiro, aquele que ajuda, que sempre recebe os agradecimentos, jamais quem recebe o prêmio. Eu seria o Robin, o doutor Watson, o Magro, o Dedé. Talvez porque eu sempre fui criado numa relação de orgulho e cobrança, bem a cara das forças armadas, que o mima quando você tem algum resultado positivo, mas corta qualquer esperança de se pensar fora da caserna, quiçá substituir o regime interno, ou acabar com a hierarquia. Não importa os motivos, ambas as atitudes – o mimo e a cobrança – podem ser, caso não acompanhados de perto, bastante decepcionantes. No meu caso, eu apenas os esqueci. Os esqueci para hoje, por meio dessa frase que eu não registrei, de um livro que eu perdi, ela, essa ideia, esse pensamento infantil brotou novamente: eu seria o segundo, o número dois de uma liderança. E o que foi a minha vida, se não isso? E o que é esse meu esforço, praticamente inútil, de escrever essa história em que sou no máximo um efeito colateral? E o que é a prática de escrever ? (Foi isso que eu pensei?) O que é escrever senão apenas diminuir a sua própria vida para contar a de outros? Você se tornar o número 2 – ou o número mil, pouco importa a diferença numérica – de um personagem notável – real, imaginário, isso fica a critério de qualquer um leitor. Você se torna o seu Sancho Pança, são João Batista, o escudeiro, o antagonista, o escada, aquele que está lá, mas que a sua presença não é essencial. Você é apenas um privilegiado. E, tendo tido esse privilégio, eu tento, talvez de maneira vã, reproduzir para o máximo de pessoas possível. Talvez seja inútil, porque eu posso me tornar, numa hipótese otimista, aquele livro que fica na livraria até um ser qualquer tropeça nele, o abre, lê uma frase boba, que o faz pensar em tantas coisas, que esse ser largue o livro de qualquer jeito e corra para um lugar para anotar o turbilhão que lhe invadiu a cabeça. Mas essa é a hipótese otimista. A verdade é que somos apenas coadjuvantes, quando muito, de um filme sem diretor, caótico, em que todos pensam que são protagonistas. Essa é uma metáfora batida, mas, vá lá, pode ser reutilizada, após uma bela lavada, uma adaptação aos nossos tempos em que o ego cada vez é maior, e a nossa representatividade beira a de extras num filme de animais da sessão da tarde.

Ah, as memórias. São peças de uma engrenagem que é puxada todas as vezes que um gatilho é disparado – e esse gatilho pode ser disparado por qualquer razão, qualquer dos nossos sentidos, qualquer citação, ou mesmo outra memória. Ela pode – e deve ser adestrada – mas jamais é inteiramente domada. Ela sempre tem espaços escuros, buracos negros onde guardamos o lixo, aquilo que consideramos, por algum momento, que não precisaremos no futuro, ou aquilo que não queremos ver novamente, ou aquilo que, de tão confortável, não merece fundir uma placa alegórica, que é onde as suas informações são guardadas. É nesse buraco-negro que está a maior parte de nossas memórias. É esse buraco-negro que é a regra da nossa memória, não a sua exceção. É esse buraco-negro que chupa o restante das nossas memórias, aquelas que foram momentaneamente iluminadas, para dentro, logo em seguida de serem utilizadas. E, essas partículas de lembrança, que ficam sempre em suspensão, que flutuam, como no espaço escuro lá fora, porque não há qualquer gravidade grave o suficiente para determinar um caminho óbvio, se perdem, ficam perdidas, como palavras dentro de um livro esquecido na prateleira mais alta da estante de uma empoeirada biblioteca trancada a chave, que sumiu. A memória armazena essas partículas e, quando o nosso processador precisa delas, joga luz para um determinado lado da memória, como se elas pudessem se agrupar automaticamente. Às vezes enxerga o que não quer. Às vezes, percebe associações surpreendentes. Às vezes, descobre bastante sobre si mesmo.

Não terá jeito. Terei que falar sobre Luísa. Tenho que admitir que essa minha postergação, essa minha justificativa, é apenas metade da verdade. A outra metade, uma metade que é mais pessoal, menos social, demonstra o quanto eu era naquela época. Terei que falar um pouco sobre mim – e isso não estava nos meus planos anteriores. Mas parece que será importante - para eles. Como se eu fosse, de alguma forma, o reflexo, eu tivesse algumas marcas dos outros personagens, esses sim, os protagonistas, em mim. Como se eu fosse a forma que fundasse, fundisse todos, que eu fosse o diapasão das suas vozes, que eu fosse o observador, o que registra, o sismógrafo, aquele que fica espantado e decide, porque percebe a exceção, deixar um relato para que as pessoas no futuro saibam – saibam, apenas saibam, saber, na sua mais simples forma.

Parece que estou dando voltas, voltas e jamais aumentando o meu raio. Não pense que eu escrevo isso tudo cronologicamente. Não consigo. Não traço uma linha depois da outra, como um relógio que só anda para a frente. Eu escrevo como a vida caminha: desordenadamente.

Mas... escrever sobre mim? Não vou nem prosseguir nessa questão, nem me delongar, vou enunciar a minha proposta: ser o mais simples possível. Me ater aos fatos – essas substâncias meio molengas, meio pegajosas, que se adaptam para entrar em qualquer espaço, tão maleáveis a ponto de não ter uma forma predeterminável. Ou aos fatos que eu me lembre. Ou aos fatos, do jeito que eu me lembre.

[...]

sábado, 3 de maio de 2014

Damon Albarn ataca [suavemente] de novo

Minha relação com Damon Albarn é tardia, mas não exatamente recente. Não fui um fã muito assíduo do britpop, ainda tinha um gosto bem mais pesado na época. Só fui o encontrar já na faculdade, e, depois, morando em Londres, ele realmente se transformou numa grande referência artística. Para ter uma ideia, o escolhi como tema de uma das pouquíssimas colunas que eu escrevi de lá. Minha expectativa então era alta quando soube que ele iria lançar um disco solo, "Everyday robots". E a primeira reação foi: é isso? Depois, com a audição mais cuidadosa, dá para afirmar: é isso. É exatamente isso.

Não é o primeiro disco que Albarn lança longe do Blur. Sem contar com os projetos paralelos, como Gorillaz, The good, the bad, and the queen, ou Rocket Juice - todos excepcionais - ou discos de óperas, ele já tinha gravado um álbum após sua viagem ao Mali, e um disco dentro de um quarto de hotel. Mas esse é, talvez, o primeiro disco que ele com o mesmo cuidado que ele se dedicava aos discos do Blur, por exemplo. E é essa a sua principal referência, como o Sílvio Essinger já havia notado, principalmente a fase "Tender".

Há também várias informações de que esse seria um disco mais intimista dele, em que ele falaria de sua infância ou de sua passagem pela heroína. Mas esse não é - nem pode ser - o principal ponto de um disco. Sou partidário da ideia de que a voz é instrumento para a música. Se ela é poesia também, melhor, mas não é condição para avaliação.

O que importa são os climas e os sentimentos que ele consegue despertar no ouvinte. E há ao menos duas, três ou quatro músicas que te levam totalmente, sem que você consiga oferecer resistência - como se quisesse. Pela ordem:

A primeira é "Lonely press play". Entra um clima soturno, com programação, para só vir a boniteza com o tecladinho de Albarn. Parece a trilha sonora para a geração que ficou impressionado com as relações tecnológicas mostradas em "Her".

Em seguida, vem "Mr. Tembo", a música mais solar de todo o disco, sobre um bebê elefante que foi adotado, com o seu ukelele é de uma alegria de manhã de domingo de outono carioca, quando o sol entra devagar, e o calorzinho vai aquecendo o dia. Para depois vir a voz de Damon e, principalmente, o coro, que coro!, de igreja negra americana. É de arrepiar.

A próxima obra-prima fica com "You & me", e como há uma mudança de trajetória da música logo após um solo de tambor de aço que faz você se perder dentro da música, e querer ser arrastado por ela, novamente.

Por fim, a última música: "Heavy seas of love". É assim que você se sente, após ouvi-lo. Dentro de um mar de amor, quente, confortável, calmo. Começa com a voz grave de Brian Eno, e entra, novamente, um coro enorme. É repeat nela.

Mas um time não faz só com craques. Se as outras não emocionam tanto, ou não emocionaram tanto até agora, não devem ser colocadas na categoria de ruins. E é isso que faz de Albarn, ou mantém Albarn, um grande músico - talvez o maior de sua geração.