quarta-feira, 30 de abril de 2003

Troca de palavras

Em certa hora, ficou somente eu e ela na mesa. Todo mundo teve que se levantar por um motivo ou por outro qualquer. Eu e aqueles grandes olhos azuis ali do meu lado. Aquela pele branquinha, aquele cabelo encaracolado negríssimo que brilhava, o cigarro, a fumaça os dentes amarelados pela nicotina, a bolsa de médico onde ela carregava tudo, e que sem querer tinha já metido o olho dentro. Eu tentando ser simpático, mas completamente intimidado pela segurança que ela demonstrava. Foi então que ela me perguntou;

Diz aí, o que você faz da vida?

O que eu faço da vida? Pensei em começar a contar a história da minha vida, a minha ascensão e decadência, meus triunfos e minhas decepções, mas percebi logo em seguida que isso não seria nada divertido, principalmente para uma mesa de bar. Passou pela minha cabeça que a pergunta poderia ser apenas retórica, ela queria preencher o espaço vazio que ficou quando todo mundo levantou e fez uma pergunta qualquer, uma daquelas “será que vai dar praia amanhã”, mas como ela não parecia ser o tipo que costumar ir muito à praia, fez de maneira diferente. Assim, responderia rapidamente um “Sim, acho que amanhã o sol vai esquentar”, só para também preencher o espaço, demonstraríamos como éramos civilizados e continuaríamos debatendo sobre amenidades por alguns instantes até que alguma alma caridosa viesse nos salvar. Porém fui impedido por um sentimento especial que emana lá de dentro da minha alma, a necessidade extrema de ser diferente das outras pessoas. Assim, tinha que responder algo, no mínimo, relevante. Mas, para ser algo que ela se lembre, teria que usar muitas palavras, coisa que, acho, não tinha nem tempo, nem ela estaria interessada. Certo momento me deu um estalo e resolvi ser um pouco poético e responder de maneira ampla e através de metáforas. O único problema, e ele veio colado na solução, era parecer aqueles bichos-grilo que tentam sempre entrar em comunhão com a natureza e com todos os seres que vivem a partir dela. A pergunta dela, que foi solta como uma pequena pluma, já estava quase chegando ao chão, eu deveria rapidamente dizer alguma coisa para ter mais tempo para pensar. E, por outro lado, com mais uma frase entre nós, poderia avaliar realmente o que ela queria como resposta. Foi então que soltei a brilhante;

Como assim, especificamente?

Ela bebia seu chope nesse momento e quase engasgou com a minha réplica. Conclui, a partir disso, que ela estava mais interessada com o espaço vazio mesmo. Fiquei imaginando o que ela tinha pensado, algo do tipo, Peraí, eu fiz uma pergunta simples, o que mais ele queria? Ao terminar de imaginar tal frase, vi que ela não necessariamente deveria querer apenas ser simpática. Havia ainda a possibilidade de demonstrar o seu interesse em mim de maneira sucinta, o que até aquele momento tinha sido descartado. Seria uma porta de entrada para um diálogo, ela começaria assim, ampla, e a partir dali, encontraríamos nossas semelhanças e conversaríamos sobre elas. Ela colocou o copo na mesa e arqueou as sobrancelhas.

Ué, o que é que você faz, ora? Trabalha, estuda...

Ela estava interessada no que eu fazia mesmo. Mas, não, eu não trabalhava, não estudava, não era nada. Minha existência se resume em sobreviver, ver uns filmes, assistir ao tempo passar, ler alguns livros, me entediar, procurar algum veneno antimonotonia, me embebedar, escutar algumas músicas. Nada demais. Nada que seja louvável ou que alguma pessoa se orgulhe. Pensei em dizer isso e deixar que ela chafurdasse em cima de mim. Mas, o tiquinho de orgulho próprio que ainda tenho me impediu e sugeriu que eu fugisse um pouco da realidade. Não era mentir, pois não diria nada que não fosse verdade, apenas a disfarçaria. Maquiagem, isso. Diria essas coisas que eu faço só que de maneira indireta. Tomei mais um gole da minha cerveja para dar mais um tempo. Duvidei que eu fosse eficiente em montar algum tipo de personagem tão rapidamente, e me tornaria ridículo na velocidade inversa. A cerveja desceu pela minha garganta e eu ainda engoli um pouco mais de saliva para demonstrar que estava com a boca cheia. Coloquei o sorriso número cinco de simpatia no rosto e decidi enfrentar a questão de frente. Seria tremendamente sincero, diria o que passasse pela minha cabeça na hora. Só assim, sendo o mais verdadeiro possível, tornando-me transparente é que poderia me sentir satisfeito, e, se ela não gostasse, estaria claro que não foi uma boa idéia dela me fazer este tipo de pergunta, da próxima vez ela deveria escolher melhor as palavras, e, é óbvio, nós não passaríamos dessa conversa. Tomei ar, deixei meu pulmão expulsá-lo vagarosamente e abri a boca mais uma vez para falar;

Eu não...

Vamos embora, já achei Carol. Ela estava no banheiro.

Laura voltara e me interrompera. Olhei para a menina e seus grandes olhos azuis repousavam tranqüilos nos de Laura. Sentia-se confortável, era perceptível, parecia que tinha conseguido passar pelo teste de ficar alguns minutos sozinha comigo. O que mais ela queria era levantar-se agora. Já tínhamos pago a conta, fiquei de pé na frente dela e assenti para Laura. Puxei sua cadeira, ela agradeceu e fomos embora. Sem voltar a conversar sobre nenhum tipo de assunto.




sexta-feira, 25 de abril de 2003

escrevi esse conto há muito tempo atrás. apenas dei uma retocada.


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gaivota

1

Ele estava sentado na cama segurando o revólver com a mão direita, limpando o cano com uma flanela antiga. Vestia apenas uma camiseta e uma cueca samba-canção de algodão amarelada pelo tempo.

O quarto de pensão antiga. Móveis com superfície arredondada de madeira escura. A cama com lençóis brancos hemerticamente dobrados. O travesseiro intocado. A fumaça sobe até encontrar com o ventilador.

Ele estava sentado na cama de frente para a cômoda de duas gavetas pequenas e mais três grandes onde guardou a pouca roupa que tem. No armário, a sua esquerda, deixa seu terno. Seu único e preto terno.

Em cima do móvel duas fotos, um cinzeiro parcialmente cheio, o cigarro aceso, um maço pela metade e sete balas de calibre 38. Fotos de uma mulher e de uma família. Ele os conhecia bem, tão bem que evitava olhar para os retratos, com medo de desabar sem nenhum tipo de segurança.

Ele estava sentado na cama. Alisava o cano do revólver como se quisesse purificá-lo. Os cabelos cuidadosamente penteados com gomalina, repartidos da esquerda para a direita. Cabelos curtos e extremamente pretos.

O banheiro ficava atrás dele. Azulejo branco encardido, cortina transparente e fosca na saída do box. A porta do quarto à sua direita, com maçaneta fina e alongada com traços arredondados. Escutava o barulho frenético do ventilador.

Ele não costumava fumar quando estava sentado na cama, mas a fumaça inundava o quarto. Olhava, agora, as fotos com olhos fundos e sem vida e acariciava o revólver prata com cabo preto de borracha dura para fazer o tempo passar.

Há pouco comprou o revólver. Há pouco tempo morava naquele quarto, vivia essa vida, há pouco pensou em resolver definitivamente o seu problema.

Ele estava sentado na cama quando pegou o cigarro e o levou na boca para sentir mais uma vez a mistura de alcatrão com nicotina. Deixou cair cinza no chão. Não reparou nem quis. Colocou a arma de lado. Devolveu o cigarro para o cinzeiro. Levantou-se em direção ao armário. Abriu a porta e se olhou no espelho.

2

Mais magro, mais branco, mais triste. Não tinha bigodes, não tinha esses traços na testa, essas rugas ao lado dos olhos. Ficou parado. Olhava os olhos sem nenhum brilho. Tentava olhar no fundo da sua alma. A verdade de dentro dos olhos, apenas a verdade.

Abriu a outra porta do armário para pegar o terno. A porta gritou de dor. Tirou o cabide com o terno. Colocou na cama sem amassá-lo. Procurou o cinto em uma das gavetas, retirou as meias, a camisa branca.

Voltou para a cama. Enrolou o revólver na flanela bege desbotada e o deixou em cima da cama. Contornou a cama em direção ao banheiro e ligou o chuveiro. Foi tirando a roupa e dobrando-a cuidadosamente em cima da privada branca. O barulho baixo do ventilador o deixava quase hipnotizado.

Entrou na banheira antiga e encardida, como a pensão. Muitas pessoas com muitas vidas haviam passado pela aquela banheira. Ele sem nem ao menos perceber isso. Ligou a água fria na tentativa de despertar. Em vão.

Deixou a água escorrer pelo corpo sem fazer nenhum esforço. Apenas pensava e lembrava, imagens povoavam sua mente e a razão cada vez mais caduca. Tomou o banho mais demorado de sua vida. Girou vagarosamente a torneira e desligou o chuveiro, olhando para os azulejos da sua frente. Abriu a cortina sem vontade. Pegou a toalha branca e a deixou cair sobre o corpo.

Saiu numa espécie de transe da banheira velha, com os cabelos molhados e desgrenhados, com a água ainda descendo pelo corpo. Olhou-se mais uma vez no espelho do banheiro. Procurava algo ou alguém, ou apenas coragem ou só a verdade. Olhava com olhares tristes, sem esperança, mas decididos.

Encaminhou-se para a cama onde ficara sua roupa. Pegou sistematicamente peças limpas de roupas íntimas de um branco extremo. Começou a se vestir. As meias, a calça, a camisa branca, o cinto, o sapato, a gravata, com nó, e o paletó. Abriu mais uma vez o armário. Ignorou o choro da porta. Pegou um pente. Olhou-se no espelho para delimitar o cabelo, com cuidado com todos os detalhes permitidos.

Voltou-se para a cama. Arrastou a mão direita entre o lençol e a flanela com a palma da mão voltada para cima para sentir o algodão do lençol misturar com a sua mão. Mas não sentiu nenhuma emoção, estava oco. A mão esquerda fechou por cima e ele levantou a arma protegida pelo pano. Colocou-a dentro de uma pasta. Encaminhou-se para a porta. E girou levemente a maçaneta para baixo. A porta rangeu nervosa.

3

Avistou o restaurante. O único que ele queria era aquele. Ele havia procurado por um restaurante deste em todos os dias dos últimos meses. Era bem modesto, com janelas de vidros grandes, porta de madeira, um pequeno corredor, mesas separadas e razoável espaço interno.

O restaurante ficava numa área bem discreta da cidade. Era freqüentado principalmente por turistas que circulavam perto do porto da cidade. Não era um restaurante ruim. Havia algumas especialidades que só ele se propunha a fazer. Como o prato de gaivota.

Ele tomou coragem. Nunca encontrara outro além deste que servisse gaivota. Demorou ainda um mês para tomar coragem e entrar no restaurante. Ele havia comprado o revólver logo após o acidente. Não sabia se o que ele acreditava como verdade era exatamente isso, a verdade.

Entrou no restaurante pela porta da frente. O mâitre veio recebê-lo. Ele pediu uma mesa discreta para duas pessoas. Uma no canto do restaurante, bem atrás da coluna de sustentação. Ficaria sozinho e impedia quem quer que fosse de avistá-lo de qualquer ponto de dentro do restaurante.

Sentou-se. Água mineral sem gás. O garçom não demorou e trouxe o menu. Pediu, apontando com o indicador direito, sem ao menos olhar o cardápio, o prato de gaivota. Gaivota ao molho de alcaparras. O garçom anotou o pedido e retirou-se.

A água chegou às 20 horas e treze minutos. Olhou o relógio. O garçom serviu em um copo com gelo. Levantou o copo. Bebeu um gole. Olhou o copo longo de vidro transparente. O restaurante era mal iluminado. A luz passava através do copo e tornava o ambiente mais claro. Olhou para a lâmpada. Olhou para o relógio. Vinte e vinte. Tomou outro gole demorado. Deitou o copo na mesa. Colocou os braços estendidos sobre a mesa com que para meditar. Olhou para o nada a sua frente e em sua volta.

Vinte e quarenta e sete chegou o prato de gaivota ao molho de alcaparras, fumegante. Tinha contado cada segundo que havia passado sozinho. A cada instante imaginava cenas diferentes uma das outras. Bom apetite. Pegou o garfo com a mão direita, a faca com a mão esquerda. Tirou o molho e as alcaparras de cima da carne, limpando-a com o maior cuidado possível para que não ficasse nenhum vestígio. Deu um corte generoso. Espetou com o garfo. Olhou aquela carne branca cozida presa na sua frente com a fumaça e o cheiro que via espalhar-se. Sabia que a chave de todas as suas perguntas se resumia a algo tão banal, tão próximo, tão indecifrável. Levou vagarosamente à boca e fechou os olhos. Sentiu o gosto forte das alcaparras e salivou inconscientemente. Começou a triturar a carne. Uma mastigada. Duas mastigadas. Três. Quatro. Cinco. Seis. Sete. Oito. Deixou aquele pedaço disforme repousar por alguns instantes em cima da língua. Abriu os olhos e a engoliu.

Respirou fundo. Esperou o corpo voltar a uma posição de repouso, sentiu o peito dilatar com a entrada do ar e diminuir de volume quando ele saiu. Olhava para frente, mas não via nada ali. Assistia a cena de meses atrás. Girou o corpo até pegar a bolsa. Abriu. Tirou a flanela. Desembrulhou e uma luz brilhou no cano prata. Segurou no cabo preto. A mão firme, o braço tenso, a cabeça distante, o gesto automático. Puxou o cão. Levou à cabeça. O cano espetado na fronte. Puxou o gatilho. Fumegante.

quinta-feira, 24 de abril de 2003

hearts of darkness

Tanto o original “Coração das Trevas”, de Joseph Conrad, quanto sua adaptação para as telas, “Apocalipse Now”, de Francis Ford Coppola, tratam do mesmo assunto: o comportamento de seres ditos civilizados ao entrar em contato com o mundo dos “selvagens”. Ou seja, a insanidade.

No caso do original literário, Willard é um comerciante inglês que deve ir para o interior da África buscar o traficante de marfim rebelde e insano Curtis. No filme, o Willard, de Martin Sheen, é um militar que deve buscar o coronel Kurts que enlouqueceu no meio do Vietnam. As duas obras narram a saga do herói ante o horror do desconhecido. E o fazem impecavelmente.

“Hearts of darkness” nasceu fruto direto do filme, meio que por acaso. Coppola pediu para sua mulher para fazer algumas imagens para a família em particular. Eleanor Coppola até admite que achava que o único intuito do marido era mantê-la ocupada durante os vários dias de filmagem que se seguir. O subtítulo do doc, porém, é uma amostra de como foram as filmagens: “O Apocalipse de um diretor”.

O filme diz logo de cara que a idéia de rodar uma adaptação do livro de Conrad surgiu antes para Orson Welles, no que seria sua primeira incursão como cineasta. Só que por motivos econômicos, a idéia foi engavetada. E ganhamos, assim, “Cidadão Kane”.

O primeiro problema enfrentado por Coppola foi convencer os estúdios de que um filme sobre o Vietnam seria uma boa. A guerra ainda era muito recente (o filme foi terminado em 1979 e os EUA tinham acabado de se retirar do Vietnam) e o público americano talvez não aceitasse um filme mostrando as desgraceiras dela. O diretor teve que usar todo o seu poder de barganha, conseguido através dos dois “Chefões”. Demorou, foi difícil para ele, teve que se comprometer com bilheteria, com retorno, com tornar o produto final mais palatável, mas conseguiu.

Escolheram as Filipinas para servir de locação. Entretanto, o país estava em plena guerra civil, tornando os dias de filmagens com helicópteros quase exercícios de sobrevivência. Reza a lenda que no dia de filmagem da famosa seqüência das Cavalgadas das Valquírias, guerrilheiros inimigos estavam a poucos quilômetros dali e só não bombardearam a locação por algum tipo de milagre. Fora que para usar os helicópteros, Coppola teve que pagar uma quantia absurda para o presidente-ditador das Filipinas da época.

O casting estava fechado desde o início das produções. Seria com Robert Duvall, Dennis Hopper, Marlon Brando e Harvey Keitel, no papel de Willard (fora ainda o novato Harrison Ford e o moleque de catorze anos Lawrence Fichburne). Porém, poucos dias antes de começarem a rodar, Keitel alega outros compromissos e desiste do projeto. Marlon Brando muda de idéia também, e pede um aumento astronômico no seu cachê já abusivo.

Coppola resolve o primeiro problema com sorte. Encontra Martin Sheen no aeroporto e o convida para fazer o papel, que aceita sem problemas. Com Brando o jeito foi estourar mais uma vez o orçamento inicial.

Apesar de levar a família para as filmagens (podemos ver todos os filhos dele, entre os quais os conhecidos Roman, com 10 anos na época e Sophia com quatro), o diretor está cada vez mais envolvido com o projeto e cada vez mais estressado. Filma-se de manhã, de tarde, de noite, de madrugada. Não param, varam horas na tentativa de conseguir a melhor cena. O “filmmaker” admite certas horas, nas conversas particulares para a mulher, gravadas sem que ele soubesse, que não tinha certeza de onde estava indo com o filme, de onde iria parar.

Na lendária seqüência inicial, onde vemos Willard no seu quarto de hotel barato, completamente bêbado, tocando “this is the end / my only friend the end”, a idéia original não era aquela. Martin Sheen estava absolutamente alcoolizado e mal conseguia ficar em pé, mesmo. Ele realmente quebra o espelho com mão e aquele sangue que suja seu rosto é de verdade. Sheen estava tão imerso no seu personagem que certa hora, ao perguntar para o diretor como era Willard em determinada cena, Coppola responde que era ele, Martin Sheen. O protagonista, que vivia bêbado, fumava três maços de cigarro por dia, não agüenta a pressão e tem um ataque cardíaco no meio do set. O filme pára pela segunda vez. (A primeira tinha sido ocasionada por uma tempestade tropical).

Voltam para o set depois de cinco semanas, para o ritmo anterior. Os atores secundários depõem admitindo que consumiam maconha para relaxar e anfetaminas para segurar o pique. Álcool, mais ainda.

Chega a parte final, onde Willard e Kurts se encontram. Já estão há mais de duzentos dias no set. Coppola diz claramente que está perdido, que realmente não sabe o que fazer. Entra em cena Dennis Hopper, o típico ator engraçadinho que quer motivação para todas as cenas. Coppola já não tem paciência para mais nada, quer acabar de filmar e ver no que vai dar. Os dois discutem muito e resolvem pouco. Quando, para piorar, chega Brando.

O antagonista não sabe qual é o seu personagem. Não tinha lido o livro, nem o roteiro. Não tem noção do que vai falar ou fazer. E recebe por dia de filmagem. Pressão por todos os lados em cima de Coppola, ele tem que terminar o filme, não pode estourar ainda mais o já explodido orçamento e ainda quer uma grande seqüência final.

Sua mulher sugere incorporar alguns elementos de um ritual dos filipinos nativos e ele adora a idéia. Aí nasce a cena da morte do boi. O diretor deixa Brando livre para criar em cima das falas de Kurts. Só que Brando demora mais de três semanas para entrar no clima da personagem Vivia brincando e fazendo piadas, para agravar o estado do diretor.

O diretor fala que a única coisa que importa é terminar o filme. Parece uma mistura de Curtis com Willard. O homem civilizado que entrou na selva. Já estava tirando dinheiro do próprio bolso para terminar, já era uma das mais demoradas produções e recebia diariamente críticas e piadinhas por parte da mídia especializada em relação às filmagens.

Somente dois anos e meio depois de terminar a fase do set ele consegue exibir o filme. E é consagrado mundialmente com prêmios dos mais importantes, como a Palma em Cannes e dois Oscars.

Com “Apocalipse Now”, Coppola terminou a fase dos grandes épicos dispendiosos para os estúdios. Nunca mais foi feito qualquer filme nessas proporções utilizando apenas objetos e cenas reais. O mundo já não era o mesmo depois dele, e a era da tecnologia havia chegado para mudar tudo.

Coppola nunca mais foi o mesmo também. Como se tivesse conseguido sobreviver da selvageria, mas mudado. Nunca mais produziu grandes produções nem nos brindou com obras-primas como essa. Talvez tenha ultrapassado o limite entre sua sanidade e o outro lado e o que viu não foi encorajador. Talvez para produzir outros filmes grandiosos como esse, deveria encarar uma viagem tão qual essa e ele não acha mais que valha a pena. Talvez não seja mesmo. Ele já faria da lista de melhores diretores de todos os tempos se só tivesse feito o “Apocalipse...”.

terça-feira, 22 de abril de 2003

woody allen - "rosa púrpura do cairo"

Quase toda obra, ou toda mesmo, do Woody Allen é permeada por alguns toques de nonsense. Em qualquer das fases criativas do diretor nova-iorquino, sempre aparece alguma cena surreal que não tem parentesco com a realidade. Porém essas imagens fantasiosas muitas vezes conseguem passar de maneira melhor a mensagem que ele quer.

Outro dado curioso em relação à obra do cineasta judeu é a associação com temas considerados difíceis e pesados, como o existencialismo ou a procura de sentido na vida. Mesmo que ele sempre venha a público, nas poucas oportunidades, defender sua condição de homem comum que adora beisebol e não perde um jogo dos Yankees.

E esse tipo de associação até pode ser facilmente explicada. Mesmo que ele não queira, seus filmes são obras bem acabadas de raciocínios simples, porém de uma originalidade ímpar sobre assuntos sempre, ou quase sempre, inusitados.

Retratar como é feito um filme não é novidade e vários cineastas de renome, e outros nem tanto, tentaram fazer isso. Sucessos e clássicos são fáceis de lembrar. Porém mostrar qual é a sensação que o cinema proporciona para o espectador é raro.

“A Rosa Púrpura do Cairo” fala exatamente sobre isso. Cecília (Mia Farrow) é a mulher oprimida pelo marido, sem esperança, desempregada que vive nos cinemas para ter algum tipo de ilusão e poder continuar a vida.

Os filmes funcionam como elementos entorpecentes para ela. Ela idealiza suas frustrações e anseios junto com a luz do projetor. Para ela, não existe nada melhor, mais feliz que a vida das personagens da telona.

Contudo, um dos personagens do filme que ela assiste pela quinta ou sexta vez, Tom (Bill Pullman), decide desvendar como é a vida ali fora do filme. Fica curioso por aquela menina que vem assistir em sessões seguidas as suas atuações e seus dramas e pula fora do filme. Típico do Woody Allen.

O motivo alegado é que é sensacional. Ele não quer mais ser guiado, quer decidir como será sua vida. Suas atitudes aqui fora continuam respeitando toda a estruturação desenhada pelos roteiristas, que ele confunde com deus, e desempenhada pelo ator que o interpretou. Assim, Tom é imprevisível, impulsivo e romântico até o último fio de cabelo.

Cecília e Tom se apaixonam, como era de se esperar. Ele é tudo o que ela quis na vida. Um homem perfeito, sem defeitos, sem problemas “e que tem o melhor beijo do mundo”, como ele próprio diz no filme.

O que é inesperado, e a cara de Woody Allen mais uma vez, é o encontro entre o ator que interpretou e a obra acabada. O ator, depois de perceber que Cecília é sua grande fã, também cai de amores por ela. E ela fica no impasse sobre com quem vai ficar. Com o limitado e perfeito, ou com o “de verdade”, como dizem a todo momento.

De lambuja, Allen nos proporciona algumas frases exemplares para martelar na cabeça após o fim do filme. Certo momento um coadjuvante, ao perceber que uma personagem havia fugido da projeção, diz que “quem está aqui fora quer entrar, e quem está lá dentro quer pular fora”. Podemos supor obviamente que o ser humano é um eterno descontente com sua situação, sempre tentando buscar algo diferente da sua realidade cotidiana.

Em outro momento, uma das personagens do filme que está sendo projetado diz que bastava ter a consciência que a realidade é um conceito para lá de relativo. Todos deveriam pensar que eles viviam na realidade e todos os de cá fora e que viviam na ficção. E depois, quem poderá negar isso?

Claro que esses conceitos não são o mote principal do filme que foca na idéia da projeção. Mas, Woody Allen preenche os espaços coadjuvantes de seu filme com idéias muito mais interessantes do que a maioria dos filmes que vemos por ai.

Talvez essa seja a sua receita para a produção. Misturar um pouco de nonsense com um tema inusitado, retratado de maneira longe da óbvia, com espaço para sacadas secundárias interessantíssimas. Claro que, fugindo da unanimidade, acredito piamente que ele faz isso tudo sem pensar muito, sem seguir essas regrinhas, ou ter consciência disso, apenas sendo sincero consigo mesmo e querendo contar uma boa história, nada de mais.

quinta-feira, 17 de abril de 2003

françois truffaut

A primeira vez que ouvi falar de “De repente num Domingo” foi em 1999, no início da faculdade, quando peguei uma daquelas listas de melhores do século da TIME americana que colocava o filme em segundo lugar. (por curiosidade o primeiro era o óbvio “Cidadão Kane”, do Orson Welles, e o terceiro era “Chinatown”, do Roman Polanski).

Duas coisas me surpreenderam, ser um filme de produção francesa numa eleição de americanos, e segundo, ser do Truffaut. Só agora, quase quatro anos depois consegui assisti-lo.

Truffaut é um sujeito curioso. Foi relegado a coadjuvante da Novelle Vague e viveu a sombra do (quase sempre indecifrável) Godard. Ele sempre foi considerado um autor que retratava o cotidiano, as relações conjugais, os dramas pessoais, ou seja, menor. Porém, ele manteve uma disparidade na sua obra impressionante.

O cineasta teve uma infância pobre, fazendo até pequenos furtos para, principalmente, ir ao cinema. Começou cedo a escrever sobre filmes na bíblia dos críticos, “Cahiers du Cinema”, e esculhambava as produções francesas da época cheias de pompa e empáfia, e muito distante do homem comum.

Chegaram para ele e perguntaram se ele sabia fazer melhor. Ele disse que faria. Então, meteu a mão na massa e saiu, assim de lambuja “Os incompreendidos”. Um drama altamente autobiográfico que conta a história do pequenino Antoine Doinel, o alter-ego de Truffaut, interpretado nos cinco filmes que existiu por Jean-Pierre Leaud, o queridinho da Novelle Vague.

“De repente num Domingo” não faz parte dessa coleção auto-referencial. É uma produção focada em outro dos gêneros que Truffaut mais explorou, o suspense. É notória a admiração do francês pelo mestre Hitchcock, e “De repente...” não deixa nada a desejar para o inglês. (Há um livro clássico que registra um longo bate-papo entre os dois e que se esgotou na editora há muito tempo. É o típico livro que quem achar pode comprar dois, porque um você me vende.)

Longe desse perfil, é bom lembrar que a Meg Rian e Sandra Bullock deveriam agradecer todos os dias para o baixote. Foi ele o “inventor” da comédia romântica, baseada em casais e relacionamentos homem-mulher, bem a cara das duas, com obras como “Domicílio Conjugal”.

Ainda dirigiu grandes produções e reconstituições de época, como “Adele H.” que conta a história da filha de Victor Hugo, a Adele do título; um triângulo amoroso para lá de imprevisível, Jules e Jim, lançado em vhs no Brasil; um dos melhores filmes para retratar como são os bastidores da produção de um filme, Noite Americana, também lançado em vídeo; e dezenas de outras histórias bem diferentes umas das outras.

O que torna o narigudo tão curioso para nós brasileiros é que apenas três filmes dele foram editados em vhs no Brasil (os dois já citados mais o último roteiro que ele deixou antes de morrer chamado “Ladra e Sedutora”, filmado por outro cineasta), e só agora se cogita remasterizar sua obra para dvd. Mesmo sendo mais palatável ao gosto médio do que Godard, ninguém nunca se interessou nele. Ou se interessou, como ouvi de um cara sobre o grupo estação, mas na hora de produzir as fitas, não levou o projeto a frente. Não me perguntem o motivo.

Para ver a obra do moço deve se rezar para algum festival de cinema ou tv que o homenageie (como aconteceu em 99, no próprio grupo estação), ou recorrer a fitas importadas, tendo que se virar para ler as legendas em inglês, ou pior, entender o francês original.

Truffaut morreu, se não me falha a memória, em 86 de câncer. Deixou uma obra sempre pontuada pela originalidade e na tentativa constante de fugir de clichês de gêneros. Quando, ao vermos um filme dele, achamos um, sempre lembramos que foi ele mesmo que o inventou.

quarta-feira, 16 de abril de 2003

não, não consegui consertar, tá uma merda e eu não sei como melhorar. se alguma alma caridosa souber como faço para os links subirem aqui, como faço para colocar comentários e outros serviços que vejo que estou defasado, aceito donativos...
agora que eu consegui consertar, dêem uma olhada no link aqui ao lado no saite do zé. acho que é, talvez, um dos mais divertidos sites de design que conheço. (apesar de só conhecer bem o dele... :o))
independência e solidão

Vi Alex pela primeira vez há tanto tempo atrás que nem sei ao certo quando foi. A minha primeira impressão foi de que ele era uma pessoa sozinha. Não sabia os motivos de eu pensar nisso nem os porquês dele ser desse jeito, foi apenas uma sensação que eu tive. E, pude comprovar recentemente, não estava enganada.

Foi numa reuniãozinha íntima na casa de um primo meu que mora no Rio que o conheci. Os dois trabalhavam na mesma agência e, acredito hoje, num misto de pena com coleguismo, meu primo o chamou para a festa.

Em termos sociais, Alex fugia do estereótipo do isolado. Conversava com várias pessoas, estava sempre amparado por grupos e parecia se divertir. Entretanto, algo nele me chamou a atenção. Parecia que para alcançar essa diversão que tanto demonstrava, ele deveria agir de maneira superior a todos a sua volta.

No dia seguinte, meu primo me disse que eles dividiram um apartamento por poucos meses quando ele resolveu sair de casa. E confirmou para mim que o seu comportamento era extremamente individualista. Quando chegava em casa do trabalho sentava no sofá e só levantava para ir ao banheiro ou dormir. Às vezes nem para isso. Raramente trocavam palavras e quando precisavam de algum tipo de comunicação, Alex optava por bilhetes nas geladeiras ou indiretas para o meu primo.

Na festa, ele veio conversar comigo. Fiquei um pouco intrigada com aquele homem de quase dois metros de altura, louro com olhos claros. Disse algo banal sobre o trabalho e logo quis saber sobre mim, quem eu era, por que estava ali, quem eu conhecia.

Então percebi que o seu jeito de se mostrar superior não vinha de tentativas de enumerar suas próprias qualidades, mas de ignorar completamente todas as pessoas que estavam fora de um círculo de relacionamento que ele mesmo elegia.

Escutei alguns comentários preconceituosos sobre a menina que aprontava os canapés e várias falas desdenhando o trabalho de pessoas da própria agência. Insistia em dizer que no dia que fosse o dono, nenhum incompetente trabalharia lá.

Para minha sorte, ele nutria uma certa admiração pelo meu primo e ficou bastante interessado quando disse que era de Porto Alegre. Disse que havia nascido lá, mas se mudara para o Rio para ter mais oportunidade de trabalho. Mas sua irmã ainda morava lá.

Não voltei ao assunto, nem ele falou mais sobre a sua família. Certa hora mandou uma direta sobre eu ir embora com ele para o apartamento dele. Agradeci o convite e recusei. Ele não mudou a fisionomia com isso, se colocava distante dali como se não fosse ele quem tivesse fazendo o convite e recebido uma negativa. Nada parecia o atingir.

Em poucos dias, voltei para Porto. Mas sempre pedia alguma notícia de Alex para o meu primo. Sentia uma mistura de ojeriza com pena dele. Meu primo me disse onde e como me comunicar com a irmã dele e eu liguei para ela. Expliquei minha curiosidade e marcamos de nos encontrar num café.

Cheguei um pouco na frente dela, sentei e a esperei. Luana não demorou e tomamos algumas cervejas para acompanhar o papo. No primeiro encontro já percebi como os dois eram diferentes. Ela era delicada, humana, carinhosa. Marcamos de nos encontrar novamente e nos tornarmos um pouco mais que amigas desde então.

Contudo, foi só depois de algumas semanas que eu comecei a fazer perguntas mais diretas sobre o Alex. Desde a primeira vez que mencionei o nome dele de uma forma mais inquisitiva, percebi sua sobrancelha levantar como dissesse que não havia muito para onde correr, ela deveria aceitar o irmão que tinha.

Ela confirmou a história de que Alex tinha ido para o Rio para procurar trabalho. Só que ela completou dizendo que ele não tinha ido para a casa da mãe deles, que morava com o novo marido em Copacabana. Alex fora morar com o meu primo. As duas pontas da história se encaixavam.

Perguntei o motivo disso e ela relutou em dizer, mas disse, que ele não falava com a mãe porque ela tinha abandonado a casa depois da morte do pai, para ir morar com o novo marido, deixando os dois, ele com dezoito, ela com vinte e um, sozinhos em Porto Alegre.

Foi nessa época que meu primo me disse que Alex tinha se casado, com uma menina do atendimento da agência e, logo depois, promovido a gerente de conta.

Fiquei pensando quem é que tinha aceito se casar com Alex, com todas as suas manias e seu desprezo pelos outros. Mas meu primo me garantiu que ele só tinha olhos para a menina agora. Não saía com mais ninguém, vivia em função dela, confia o rumo de sua própria vida a ela.

Cada vez mais entendia o comportamento de Alex. Voltei para o Rio mais uma vez para passar seis meses, e fiquei na casa do meu primo, por insistência dele. Pude ver com os meus próprios olhos como se dera a mudança no comportamento de Alex. Desde que sua mãe o tinha abandonado, vivia preso, estritamente fechado no seu mundo interior que, para ele, era a única forma de não depender de nenhuma pessoa. A menina tinha soltado essas amarras de Alex. Ele realmente parecia mudado.

Voltei para Porto com uma certa sensação de desconforto em relação ao Alex, mas decidi deixar para lá. Nesses seis meses nossos laços de amizade tinham se tornado mais sólidos e, agora, recebia notícias do Rio pelo meu primo e por ele, além de Luana.

De vez em quando ele me telefonava para dizer que tinha sido promovido mais uma vez, ou contratado por uma outra empresa num cargo melhor. Afirmava que o seu plano de ter uma agência sua estava cada vez mais próximo, precisava ultrapassar só mais uns poucos obstáculos. Essa sede de dinheiro me assustava, mas parecia alimentá-lo. Meu primo confirmava que ele fazia de tudo, de tudo mesmo, para subir no trabalho. Talvez ele não tivesse mudado tanto assim, pensei, talvez só tivesse mudado o foco das suas ações.

Quando finalmente conseguiu montar uma assessoria de marketing só para ele, deu uma festa no Pão-de-açúcar e enviou uma passagem para mim e uma para sua irmã. Viajamos para prestigiá-lo, mas na minha cabeça eu ficava imaginando qual seria a meta que ele se proporia. Agora, com menos de 40 anos, o que é que ele almejaria já que todos os seus sonhos tinham se realizado?

A festa foi impecável, com show de uma banda famosa ao vivo, com bebidas e comidas para saciar qualquer glutão, com gente famosa, cobertura da imprensa e Alex rodeado. Certa hora, ele se aproximou de mim e pediu para irmos para um canto conversarmos. Minhas expectativas se confirmavam.

Ele se apoiou no pára-peito, com aquela vista linda da Baia de Guanabara lá embaixo. Fiquei um tempo impressionada com o que via, quando ele começou a falar. Disse que não confiava em mais ninguém para dizer aquilo e, por mais que eu morasse longe, me considerava uma amiga. Sorri para agradecer, apesar de parecer que ele estava cego demais para enxergar qualquer coisa. Minha mulher está me largando, disse ele. Meu rosto caiu. Abracei-o, e ele se segurou para não chorar. Comecei a acariciá-lo nos ombros, na cabeça e pedia baixinho para ele se soltar, mas ele se segurava e me empurrou. Fungou uma, duas vezes, colocou a mão no nariz, agradeceu com o corpo trêmulo por eu o ter escutado e saiu na direção do banheiro.

Fiquei anestesiada todo o resto da festa. Alex não voltou a falar comigo, mas pude observá-lo em outros momentos. Estava cada vez mais agitado a medida que a festa passava. De vez em quando, voltava ao banheiro e meu primo só veio confirmar a minha suspeita.

Há mais ou menos oito meses, consegui um emprego estável no Rio e me mudei, junto com Luana, de vez para a cidade que sempre admirei. Pude, então, acompanhar a evolução da desgraça de Alex de perto. Porém, só contemplar. Por mais que eu quisesse ampará-lo, ele se isolava de todo mundo que tentava se aproximar.

Ele aparece freqüentemente nas colunas sociais como um dos grandes empresários do Rio de Janeiro. Elegeu o trabalho como sua única função no mundo. Mas sei que sua realidade é bem diferente dessa imagem de ser bem resolvido que ele tenta passar.

terça-feira, 15 de abril de 2003

Queiramos ou não, “Matrix” será um dos marcos do cinema na virada do milênio. E eu assino embaixo. O filme já entrou na categoria dos que eu perdi a conta de quantas vezes assisti, junto com outros díspares como “Advogado do Diabo”, “Clube da Luta” ou “Noite Americana”.

Podem alegar que ele tem um excesso de cenas de luta, um tanto quanto desnecessário para a mensagem principal que quiseram passar, ou que o roteiro não inova muito, narrando apenas a eterna busca pelo messias, assunto retratado desde os tempos bíblicos. Mas é inegável, até para o mais cético dos críticos, a inovação técnica e estética proporcionada pela obra dos irmãos Warchowski.

A quantidade de plágios consentidos e referências não autorizadas de “Matrix” em peças publicitárias, clipes, curtas e outros longas é incontável. A seqüência inicial já se tornou um clássico. Foi responsável por uma das primeiras campanhas de promoção megalomaníaca da história dos estúdios, se não a primeira. Influenciaram a moda e até o mercado de telefonia celular.

Mas o que me interessa realmente são alguns diálogos que podem ser pescados durante a projeção que, se não explicam o mundo que vivemos, ajuda a pensar sobre.

Para começar, “Matrix” é uma pergunta sobre o que vemos diariamente é a verdade ou apenas a projeção daquilo que queremos ver. Assim ficamos na dúvida sobre a nossa sanidade visual e sobre a veracidade de tudo a nossa volta. Não seria tudo apenas nossa imaginação para protegermos da realidade? E, principalmente e mais amplo, o que é essa tal de realidade que vivemos?

Certo de que o nosso mundo é tudo uma farsa, Neo, o personagem de Keanu Reeves, pergunta o porquê de não terem feito, então, uma farsa perfeita, onde todos nós fôssemos nórdicos bem nutridos e sem problemas de subsistência. A resposta é desconcertante. Morpheu (Laurence Fishburne), avisa para ele que haviam tentado outras vezes a perfeição, mas a humanidade tendia a destruição e a desgraça.

Junte essa informação a uma outra pinçada de um diálogo de um dos agentes com Morpheu. O agente diz que despreza os seres humanos e explica que o comportamento destrutivo e parasita do humano nada tem de parecido com o dos outros mamíferos, mas com o de outro ser vivo, o vírus. O incrível é que, por mais ficção científica que possa parecer o filme, essas afirmações transbordam realismo a ponto de assustar.

No campo pessoal, na saga do herói para salvar o mundo e se transformar no escolhido, tem um dos diálogos que mais me agradam. Neo duvida da sua capacidade, mesmo tendo sido apontado por Morpheu como sendo “o cara”. Para dissolver esse problema, ele, Neo, vai conversar com um oráculo.

Longe dos estereótipos, o que tudo sabe e tudo vê é uma mulher negra de cabelos brancos que cuida de criança super-dotadas. Neo e a Oráculo conversam e ele pergunta se é o escolhido, no que ela responde que não se pode dizer se ele era o escolhido. Que ele deveria sentir isso. Mas se ele quisesse uma resposta, essa era não, ele não era o escolhido.

Lembro que quando vi pela primeira vez, com 17 anos, fiquei um tanto quanto assustado e incrédulo com essa idéia de que eles iriam fazer um filme de messias sem o dito cujo. Seria para lá de surpreendente.

Entra a parte final do filme e Neo tem que enfrentar a batalha decisiva, aquela que parecia não ter poderes para tal, aquela que ele deverá ser testado ao máximo, oh... Neo entra de cabeça, mesmo pensando que não era o tal moço escolhido. Percebemos, com o passar do tempo, que, contrariando o que a Oráculo havia dito, ele era realmente o cara. Ele sente isso.

Morpheu estava certo nas suas expectativas e diz para Neo que a Oráculo só disse o que ele precisava ouvir para conseguir se sagrar como o messias.

A Oráculo funciona com aquela voz da consciência que escutamos diariamente que nos diz não seremos ninguém, porque se tivéssemos a plena certeza do resultado do futuro, sentaríamos no chão e esperaríamos cair do céu. Ou, em linguagem popular, não sabendo que era impossível, foi lá e fez.

O filme lida muito bem em contar a história do “destino versus livre arbítrio”. Afirma com bastante convicção que até temos uma certa margem de manobra, mas as grandes decisões independem da nossa vontade. Pode gostar ou não, aceitar ou desdenhar, mas, da forma como é posto, é impossível não entender o ponto-de-vista.

segunda-feira, 14 de abril de 2003

Durante uns bons anos me martirizei por não ter fé em nada. Considerava-me um vazio, por ser apenas essa carcaça que me envolve. Chegava a ponto de invejar os fanáticos religiosos, já que eles tinham algo porque viver e para que continuar vivendo.

Essa necessidade de algum tipo de fé era um sintoma direto da minha total e irrestrita falta de amor por algo. Amor do tipo mais irracional que existe, aquele que não obedece nenhum tipo de lógica. Quando se tem o raciocínio como bíblia, você tende a ter algum tipo de trava a gostar infinitamente de alguma coisa, nem que seja por alguns instantes. Tudo deve ser medido. Uma chatice que não se cura só com pensamento.

Passei pela fase romântica e idealizava dias e noites as meninas perfeitas. Elas deveriam ter todas as qualidades que eu quisesse e esqueceriam de ter os defeitos que são tão comuns às pessoas. Só faltava, na minha cabeça, que ela fosse uma princesa ou coisa que o valha.

Depois desisti desses rótulos e só esperei por alguém. Claro que já estava contaminado por anos de idealização e foi-me difícil deixar de ser deveras exigente. Hoje não espero nada do campo romântico. Já me dou por satisfeito de ser um solteiro convicto e acho até grandes vantagens nisso.

Houve também a era das culpas pelo mundo. Típica atitude juvenil. Culpa-se tudo a volta. E, claro, a si próprio também. Não se deve fazer nada de prazeroso porque nada tem sentido. Deve-se, apenas, encasular-se e esperar o fim de todo esse sofrimento. Infundado.

Foi nessa época, mais ou menos, que o sentimento da falta de fé foi mais forte. Me sentia oco porque não acreditava em nada. Dessa forma, nada faz sentido também. Se nem acreditamos no amanhã, por que devemos esperá-lo?

Então o máximo que me permitia era viver num eterno estado de humor irônico e sarcástico contra tudo. Se nada faz sentido o que eu tenho a ver com isso? – tenho certeza que algum filósofo famoso já disse isso e penso que a idéia seja um plágio involuntário.

Hoje, continuo achando que nada faz sentido. E continuo com a idéia de que não posso, nem nunca poderei, dar um sentido imenso para nada. Já ouvi em botecos que o que vale é procurar esse sentido e tentar aproveitar o máximo, através de uma busca genuína e inócua, de prazer. Claro que ainda não entendi direito o que era essa tal “busca inócua e genuína”, mas também não ficarei quebrando minha cabeça para achar sentido nisso.

Já ouvi dizer que “ignorance is bliss”. E de certa forma concordo. Porém, o inverso não deve se aplicar necessariamente. A ansiedade de procurar uma resposta pode realmente fazer um buraco no seu estômago que dói, dói muito.

Como não achava sentido em nada, pensei em fugir. Outra típica atitude juvenil. Já que não pode vencê-lo fuja. Como se o bicho-papão não corresse sempre atrás de você, onde quer que você esteja.

Tinha escolhido Porto Alegre, uma cidade que adorei ter passado cinco dias. Ou seja, através de cinco dias cheguei a conclusão de tudo o que eu tinha que fazer para dar um sentido na minha vida.

Não quero dizer que tinha sido imprudente, mesmo porque certas horas a imprudência nada mais é que a maior qualidade que se pode ter, mas não acredito que me mudar de lugar faça as dúvidas irem embora e as respostas chegarem.

Ou até podem. Aliás, esse tipo de desejo – de me mudar para tentar aplacar essa busca por respostas – ainda me dá algum tipo de esperança. Já que eu acredito que essa mudança pode me dar alguma alento, mesmo não tendo nada que comprove, logo tenho fé.

O incrível é que até para ter fé – o máximo da irracionalidade a que o homem pode chegar, portanto o mais perto da emoção – recorro a expedientes teóricos.

Isso tudo para dizer que nessas últimas semanas li no jornal uma entrevista com o Walter Carvalho, fotógrafo de oito entre dez produções nacionais para o cinema. E ele disse algo que me tocou fundo. Afirmou que, se ele tinha algum tipo de religião, era o cinema.

Na hora me deu um estalo. Era óbvio que eu substituía essa minha vida emocional com doses cavalares de cinema, literatura, música. Ali poderia me expor ao máximo. A sala escura é o meu templo, a tela branca onde se projeta a imagem, meu altar, os diretores, meus santos. Sou devoto de Woody Allen e Françoise Truffaut. Acho Alfred Hitchcock divino e não há nada mais profético do que o legado de Ingmar Bergman. Isso para ficar na igreja cinematográfica.

Logo depois, me disseram que as representações artísticas iniciaram-se como fruto de culto a divindades. Então me lembrei de alguma aula que deveria ter assistido e que preferi ir beber cerveja. Porém, devo ter lido algum texto sobre isso, pois a idéia não me era tão escandalosa. Aliás, fazia bastante sentido.

Além de representar cenas do cotidiano, de retratar a História, a arte também era associado ao divino, ao misticismo, ao xamã ou pajé que cuspia fogo e se pintava.

E por uma “coincidência”, a maioria das respostas que encontro sobre qualquer das perguntas que ainda tem respostas para serem dadas, vem dessas artes que me atingem.

Sei que não encontrarei nem um quinto das respostas que procuro. Mas, saber que também tenho minha religião, e é compartilhada por ninguém menos que o Walter Carvalho, me dá uma certa sensação de conforto. Pode até ser meio ignorante, mas é reconfortável.

terça-feira, 8 de abril de 2003

Ao rever “A.I. Inteligência Artificial” várias questões passam pela cabeça. A primeira a passar na minha foi uma velha rixa entre roteiristas e diretores sobre a paternidade do filme.

“A.I”, para quem não sabe, nasceu de uma idéia do Stanley Kubrick de adaptar um conto de ficção científica, assim como ele tinha feito com o seu “2001”. Porém, mestre Kubrick (provavelmente um dos maiores diretores de todos os tempos) dizia que com a tecnologia disponível nas décadas de 70 e 80 era impossível transpor para as telas toda aquela civilização futurista, baseada na robótica e informática. Foi postergando, postergando até que quando desengavetou o projeto, com apenas algumas páginas rascunhadas para o roteiro, estava prestes a ir para o céu dos cineastas. Então observou ao seu redor e apontou para a única pessoa que ele achava apta a tocar esse filme, Steven Spielberg – talvez por causa de seu “Contatos Imediatos de terceiro grau”, ou por “E.T.”, nunca se saberá ao certo.

O que é certo é que Spielberg, o mais cinéfilo de todos os diretores americanos relevantes e vivos, não deixaria nunca passar essa oportunidade. Aceitou de pronto trabalhar com o diretor de “Laranja Mecânica”, “Doutor Fantástico”, “Lolita”, “De Olhos Bem Fechados”, “Nascido para Matar”, “Barry Lindon”, “O Iluminado” etc. Na versão final, a quase totalidade do roteiro foi escrito pelas mãos do Spielberg, já que o mestre havia falecido recentemente. Mesmo assim, ao final do final, dá para apontar os dedos do tutor em algumas cenas de “A.I”.

No entanto, essas cenas são escassas. E, no âmbito geral, o clima do filme está mais próximo dos de Spielberg – quase sempre pontuados por produções com um viés infantil, com mensagens morais, de finais felizes – do que de Kubrick – infinitamente mais sombrio, mais desesperançoso, nebuloso e sutil.

Há pessoas que dizem, com uma certa ponta de verdade, que as partes kubrickianas do filme são sensacionais de sufocantes. E as que Spielberg mexe são leves demais para o filme que se propõe.

E “A.I” não é, nem poderia ser, leve. Trata de assuntos um tanto quanto complexos e filosofais demais para ter um raciocínio raso. De uma maneira simplista, quer apenas resumir do que é feito o ser humano e qual seria a diferença básica entre um homem e uma cópia perfeita dele.

Como todos filmes de ficção calcados em comparação homem versus máquina, sugere que o limite entre os dois está na capacidade do homem em formular sonhos e acreditar neles. Em criar situações que não podem ser comprovadas, que não são táteis, e crer que aquilo pode ser tão real quanto a realidade. Em duas palavras, ter fé.

Como se sabe, o ato de ter fé consiste numa reação não racional, portanto, considerando apenas dois campos distintos de atuação do humano, emocional. Fazendo a ligação direta, o que difere o ser humano do robô é a capacidade do homem de ter emoções.

Até ai, morreu Tancredo. Nada difere dos filmes que propõe alguma discussão sobre esses dois espécimes terrestres. Até “Exterminador do Futuro II”, um filme que tinha outros motivos para se preocupar, fala sobre isso.

O que é mais interessante no filme, para apimentar essa discussão, é que eles colocam um robozinho garoto que consegue alcançar esse tipo de pensamento abstrato. Então, pelo raciocínio do filme, ele teria ultrapassado o limite que divide a máquina do ser orgânico.

No filme, no entanto, David, o pequeno robô, vive a procura de uma certa fada azul que o transformaria em um garoto de verdade, já que – ele pensa – sua mãe somente gosta do seu filho “natural”. O fato de ele não ser orgânico sobrepuja o fato que ele pensa, age e se parece muito com uma criança comum.

Não há uma explicação para o fato de David se comportar exatamente como uma criança “normal”. Linhas de comandos que determinassem atitudes próximas às infantis são viáveis, mas em nenhum momento do filme isso é sugerido. Se esse raciocínio fosse o correto, David não conseguiria formular pensamentos abstratos, mas, pelo contrário, teria mapeado alguns tipos de comportamentos próprios do lado emocional. Para usar exemplos do filme, o ato de almejar algo fora da realidade, a atitude de ciúme contra um igual que pode roubar o seu lugar, a sensação de falta de originalidade quando ele descobre vários robozinhos iguais a ele e outras estariam dentro dele através de algum tipo de raciocínio lógico, como uma resposta programada a estímulos. Mas não. O filme se propõe, realmente, a embaralhar a diferença entre o homem e a máquina.

Aliás, em uma das seqüências mais spielbergianas do filme, a do show de destruição de robôs, David só consegue se salvar por parecer bastante com uma criança verdadeira e ter atitudes identificadas unicamente com meninos.

Contudo, não é cem por cento certeza afirmar que Kubrick faria um “A.I” melhor do que Spielberg, pois é impossível ter uma certeza absoluta sobre isso, já que o diretor-mor nunca mais poderá filmar nesses planos. Porém, podemos exercer nossa capacidade que comprova sermos humanos e imaginar um filme com todos os cacoetes do mestre. Principalmente um filme que nos passe mais ainda a sensação de terror, tão a cara de Kubrick, que sofremos quando estamos atrás de algo que nunca alcançaremos.
Primeira prova

Quando amanheceu pôde ter certeza de que não iria fazer um lindo dia de sol. Levantou-se da cama, já que não tinha dormido, ansioso para saber se sua encomenda tinha chegado. Sabia que o carteiro passava de manhã e desceu para esperá-lo na portaria. Iria queimar o tempo com o jornal. Ou com um café na padaria.

Foi no banheiro e viu os olhos fundos, as olheiras aparentes e a barba por fazer. Ignorou os detalhes e apenas molhou o rosto na pia. Colocou um moletom cinza de mais de vinte anos que ficava pendurado no cabideiro do quarto e desceu sem nem ao menos pentear o cabelo.

Perguntou para o porteiro se o carteiro havia passado, mas eram pouco mais das sete horas e ele só passaria próximo das nove. Resolveu então matar o tempo como programado. Sentou-se no balcão e dobrou as folhas do diário na sua frente. Apesar de estar colado no seu nariz, não conseguia armazenar nenhuma informação que lia. As frases entravam através dos olhos, mas se perdiam em algum lugar antes de serem decodificadas no cérebro.

Sua mente estava presa ao pacote com todos os originais que havia enviado para a editora do seu primeiro livro de contos. Esperava para esses dias a resposta da editora. Mandara a cópia única por correio por uma questão de segurança, tinha medo que alguma página, ou informação extraviasse pela Internet. E porque a editora não recebe nada que não seja papel.

Ficara enfurnado em casa escrevendo meses a fios, desenvolvendo temas que ele achava interessante. Saía apenas para comprar comida, voltava e trabalhava mais nos contos. Tinham que ser sucintos, repetia para si mesmo numa voz mental. Deviam ser inteligentes, fugir das obviedades, com um ponto de tensão e um desenlace surpreendente que deixasse quem o lesse pensativo após o término.

Tinha se suprido de uma dúzia de autores que ele considerava referências. Era averso a textos empolados, para ele deveriam ser palatáveis tanto pelos mais altos dignitários da língua, como para o mais novo alfabetizado. Não se considerava um pessimista, porém suas mensagens raramente eram de um mundo melhor. Seus heróis podiam morrer no início do conto, ou sobreviver até o infinito, para contar a história numa repetição eterna. Via-se como um ultra-realista que não aceita nenhuma expectativa da vida que não pudesse ser comprovada. Não esperava o pior de nada, apenas não esperava.

Tinha experimentado diversas técnicas narrativas aprendidas ao longo das leituras. Tinha completa noção do que deveria fazer para se diferenciar. Ao ler algumas publicações mais recentes, conseguira isolar o que era um autor contemporâneo. Brincou com hipertextos para ser ressaltado como um da era da tecnologia, aquele que tem uma linguagem rápida, com cortes parecidos com um vídeo-clipe. O ritmo tinha se tornado a parte mais importante do formato. Narrativas que tinham como cenário a cidade grande, com seus contrastes sociais, sua violência latente e a podridão da carne humana que se sente o cheiro nas esquinas. O nonsense como personagem, o fantástico como costume, o inesperado como cotidiano, a visão blasé.

Voltara a chover. Toda as noites, nos últimos dias, tinham chovido. Não conseguia dormir direito. Matava uma garrafa de vinho tinto por noite para ver se se derrubava. Mas nada. Os personagens que criara povoavam sua mente, voltavam como que para conversar com ele. O protagonista sem nome que também vivia insone e sonhava acordado com um massacre na cidade ficava ao lado dele, tomando gim puro olhando para o seu autor e fumando um cigarro que nunca acabava. A mulata que tinha vindo para a cidade grande para tentar a sorte como dançarina, deitada no sofá da sala, ora chorando, ora se entregando para o seu protetor sem nenhuma vontade. O viúvo metódico que decidira acabar com a vida por saudade da mulher, morta em situação obscura. Abria o armário com a mão direita, pegava a arma prateada com a esquerda, colocava-a em cima do pano cinza que cobre o móvel, buscava as balas, rodava o tambor, mirava ao lado do ouvido e escutava-se o estampido.

As horas não passavam. O relógio insistia em ser vagaroso e ele não agüentava o cheiro da padaria pé-de-chinelo que costumava freqüentar. Resolveu andar pelo quarteirão para passar o tempo. A chuva fina e o vento forte que vinha do mar fazia com que as poucas pessoas que estavam a essa hora na rua, andassem apressadas e com as cabeças baixas. Ele preferia assim. Quando os troncos das árvores viviam úmidos por causa das chuvas constantes. Ou quando as pessoas andavam somente pela extrema necessidade pelas ruas, com as ruas mais vazias, ou com a praia deserta. Sentou-se em frente ao mar para ver se conseguia livrar um pouco o pensamento. Ficou ali parado, olhando o mar, as pequenas ondas que iam e vinham e observou um homem deitado num banco longe do seu. O homem levanta-se, tira a roupa e vai na direção do mar. Joga de lado a camisa, a calça, o cinto, os sapatos, entra na água, até desaparecer e não volta. Exatamente igual a um dos seus personagens.

Foi para a areia, ninguém junto dele em toda a extensão da praia, caminhou até o final e voltou. Não tinha nada para fazer, experimentara todas as formas de fazer com que o horário do carteiro chegasse, mas ele insistia em demorar a passar. Voltaria, mesmo que ficasse na portaria, sentado nos degraus da escada de acesso. Em poucos minutos, estava exatamente assim, mexendo no cabelo como um cacoete, olhando para os próprios pés, observando o movimento das madames com os seus cachorros, dos carros, táxis e ônibus que passavam em frente ao prédio. Às nove, pergunta novamente ao porteiro o horário das entregas, e era nove mesmo, poderia estar um pouco atrasado, não acontece sempre, mas de vez em quando, quem irá saber.

Uma eternidade depois, chega o homem das cartas. Entrega o pacote ao porteiro e vai embora. Ele levantara-se para acompanhar a evolução daquele pequeno homem com uniforme amarelo e sentira uma pontada fria na altura estômago. Tinha plena convicção que essa espera tinha sido outra vez sem motivos. Não existia nenhuma certeza de que naquele dia o seu pacote chegaria. Todos os enormes envelopes em cima do balcão do porteiro e ele com toda a certeza de que deveria ter revisado mais algumas vezes os originais, que eles não eram bons suficientes para serem publicados, não se diferenciavam de nenhum outro que tinha lido, era apenas uma reunião de idéias repetidas. Era esse o motivo deles não terem nem lido o que tinha enviado. Obviamente não interessava publicar alguém desconhecido e igual, exatamente igual a um medalhão da editora.

O porteiro separava as correspondências e nunca o balcão ficou a tanta distância. Parecia que deveria atravessar quilômetros para alcançá-lo. O porteiro era apenas um ponto dentro de todo o imenso campo de visão. Via tudo muito escuro e de longe. Forçava a vista frisando a testa, mas era ineficaz. Inspirou todo o ar que coube em seus pulmões, trancou-o dentro deles e caminhou com todo o corpo emborcado para a frente. O porteiro segurava sua carta com uma mão e sorria. Ele nem percebeu o sorriso, nem agradeceu e subiu as escadas sem temperamento para esperar o elevador.

Agora já não pensava em mais nada. Queria apenas saber o que tinha ali dentro. Abriu de uma vez o envelope e viu uma carta que leu de uma vez só. A carta era assinada pelo responsável por novos autores e dizia que a editora não iria publicar o material. O responsável achou o texto frio e distante. Parecia apenas um exercício de formatos, sem nenhuma preocupação com emoções verdadeiras. O autor tinha completo domínio narrativo, mas era incapaz de falar sobre seres humanos, pasteurizando-os. Viviam emoções requentadas, de segunda mão, mesmo que distantes dos clichês. Contudo, denotavam que eram emoções emprestadas de outros.

Ele nem teve forças para jogar a carta longe. Não sabia o que fazer a partir de então. Deitou-se na cama e tentou por alguns instantes parar de respirar. Não conseguiu chorar também, nem transparecer nenhuma emoção mais forte. E, depois de alguns instantes de completo branco mental e tonteira no raciocínio, conseguiu concatenar algumas idéias e descobriu que, por mais cruéis que as palavras tinham sido, elas retratavam perfeitamente o que ele era nesses últimos tempos. Isolara-se nesse apartamento, depois de abandonar tudo da vida, vivia de uma pequena mesada da família e decidira tornar-se escritor sem ao menos tentar qualquer outra forma de humanidade primeiro. Não se lembrava da última vez que se apaixonara, quando chorou, ou tido uma conversa por mais de quinze minutos com uma pessoa diferente. Abriu a janela, observou a quantidade de apartamentos que havia no prédio que morava e percebeu que não conhecia ninguém. O telefone estava sem tocar há dias e ele nem sentira falta.

Voltou-se, pegou o papel da editora e jogou pela janela. Falou como que conversando com alguém, Amanhã vou dar um jeito nisso. Hoje, vou viver uma vida normal, começando pelo meu sono. Disse isso e deixou o corpo desabar na cama, dormindo logo em seguida.

segunda-feira, 7 de abril de 2003

passei a última sexta feira revendo e refazendo os três contos aqui de baixo. os dois primeiros postados tiveram pequenas correções de rumo, explicando fatos outrora ambíguos ou obscuro. já o último, que publico somente agora, sofreu quase uma operação plástica. porém, o gene inicial ainda existe. (não sei porque ainda escrevo essas notas esclarecedoras)

Rio de Janeiro, 31 de maio de 1998
Joana, minha linda Joana,

Não se assuste com esta carta. Provavelmente nós nunca mais nos veremos. Porém, sem sombra de dúvida, ainda penso em você todo o tempo que tenho.

Não quero que você chore pelos cantos. Não quero me sentir mais triste por ter lhe proporcionado essas culpas. Gostaria que você só lembrasse de mim quando pensasse em todas as coisas boas que passamos juntos.

Eu sei que foi efêmero. Mas, durante esses três meses eu vi que você se divertia e você gostava e você me queria. Foi uma paixão consumista, como você me disse inúmeras vezes.

Para mim, porém, cinco anos passaram e ainda tento reavivar cada segundo que vivi ao seu lado. Passo vinte quatro horas de um dia remontando todos os pedaços de outro qualquer que passei junto de você.

Lembro perfeitamente daquela noite, por exemplo, de quando passamos pelo Elevado do Joá, na volta da festa no cume de um morro de Guaratiba. Você me pediu para parar o carro, ali em cima, só para ver o sol nascer. Perguntei com um sorriso se você havia enlouquecido, e você respondeu com todo o seu rosto, com todo seu corpo que sim, que estava louca, completamente insana.

O sol meio alaranjado saía de dentro do mar, o céu ainda um pouco escuro, e eu abraçado na sua cintura em cima daquela ponte, como que flutuando sobre as ondas que ressonavam nas pedras. Com a cabeça no seu ombro direito, senti o seu cheiro que se misturava ao da maresia e não pude, nem quis, conter a minha contaminação pela sua insanidade.

Não consigo esquecer também do dia em que você me ligou para conversarmos, dois dias antes do seu aniversário. Fiquei paralisado ao telefone, sentado na minha cama lhe esperando. Antes de você entrar, sabia o que diria. Não pude falar nada porque as palavras não vinham à boca, paravam na garganta. Sentia meus braços dormentes, minha cabeça pesada e nem percebi quando você saiu. Fiquei parado ali o resto da minha vida.

Foram três meses que valeram por toda a minha vida. Três meses que me forneceram combustível suficiente para prosseguir. Bendita a hora que você quis dar um tempo com o seu marido. Porém, deveria supor que não seria eterno.

Não, não me arrependo, não arredo pé em nenhum centímetro do que fiz, das atitudes que tomei, de tudo o que aconteceu. Se pudesse, as faria quinze vezes seguidas. Se algum tipo de deus me propusesse mais uma única noite com você, e outras tantas de desgosto, eu aceitava, eu aceitava e não tenho dúvida que eu aceitava.

Desde muito novo, sonhava com alguém igual a você. No dia que a conheci, quando peguei aquela taça de vinho e você estava ao meu lado e começamos a conversar, porque você começou a conversar comigo, porque eu havia pego a última taça do vinho tinto, e você o preferia ao branco, realmente me belisquei, como num filme de comédia.

Em seguida fui me olhar no espelho e fiquei ali parado, querendo penetrar em meus olhos, descobrir o que ou quem estava por detrás deles. Afirmei para mim que quando voltasse, você não estaria ali. Mas, para a minha sorte e incredulidade, você ainda me esperava.
Ficamos num canto. A festa ocorria em algum lugar longe dali e eu me embebedava de cada palavra, de cada gesto, de cada detalhe seu. Discutimos sobre nossas vontades, nossos desejos, nossos ídolos. Falamos sobre os nossos álbuns preferidos dos Beatles, o meu Revólver, o seu Sgt. Pepper´s. Comentei sem pretensão sobre Borges, e você disse que também o venerava. Fiquei algum tempo atônito por isso, sem compreender o que de fato você tinha dito, porque ninguém nem conhece o argentino. Então percebi, nossos gostos eram similares, você se parecia comigo.

Larguei o meu carro na festa e voltei com você de carona. Entramos na sua garagem e eu, idiota e infantil como sempre fui, tentei lhe roubar um beijo. Você colocou o indicador nos meus lábios, como que pedindo silêncio, e eu me envergonhei. Pedi desculpas, mas você, sempre você, minha perfeita Joana, respondeu sorrindo que não havia problema.

Ah, Joana, minha linda e maravilhosa Joana. Saí da sua casa e fui andar no outro lado da rua, na praia de Botafogo, louco para que minha vida acabasse naquele momento. Tinha completa noção do ápice a que tinha atingido. Me ajoelhei na areia, na beira da água, com aqueles dois morros na minha frente e os barcos dentro da baía, fechei meus olhos para lembrar de você, da sua silhueta, do seu perfume, da sua pele, dos seus olhos e para guardá-la na eternidade dentro de mim...

Nesses últimos cinco anos, pensei muito em nós dois. Imaginei situações que não aconteceram, vivi com você, e, mesmo que não soubesse, a namorava. Não há como negar que você é a única mulher que eu conheci e que vou conhecer.

Não a culpo por ter ido embora. Sei que, se houve algum culpado, esse sou eu. Eu que já sonhava com você mesmo antes da primeira vez que nos vimos. Eu que a idealizava, eu que já a conhecia.

Eu lhe criei e você se encaixou a imagem e semelhança. A minha imagem e semelhança. No fundo, no fundo, você era eu. Você tinha os gestos que eu esperava que você tivesse. Se eu era destro, você era canhota, se aparecia uma pequena marca no lado direito do meu rosto, você a tinha do lado esquerdo. Eu sou você quando me olho no espelho.

Nós somos opostos complementares. Por isso, perfeitos. E não pode haver perfeição neste mundo. Descobri isso nos últimos cinco anos. Nós destoamos, brilhamos de outra maneira, temos outro perfil.

Esse é o motivo. Então, não se culpe nem por um instante. Não tem a ver com você. Eu é que não posso viver num mundo onde não se aceita a perfeição.

Queria apenas me despedir de você, de mim mesmo, de nós dois. Queria só dizer pela última vez o que você é para mim. Não estou triste porque sei que se houve algum momento em que estivemos juntos, ele já existiu para sempre. Sei que vivemos a eternidade e vamos vivê-la juntos novamente. Eu sei disso.

Um beijo como todos aqueles que você sonhou e se realizaram ou não.

Adeus,

r.

sexta-feira, 4 de abril de 2003

como um segundo capítulo do conto abaixo...

Passado e futuro

No mês que ia completar quarenta anos, Henrique Dias sentiu que deveria fazer uma retrospectiva de sua vida. Estava há anos sem encontrar com a maioria dos amigos. Olhou para fora da casa que morava, observou o morro com mata ainda virgem que crescia logo no final da vista e se permitiu lembrar do seu passado.

Ainda sabia que seu grupo de amigos fora imenso, e por vários anos, bastante unido. Conheceu alguns antes da faculdade, mas a maioria datava do período na estadual. Faziam todos os tipos de programas juntos, e preferiam viajar sozinhos a deixar que outras pessoas entrassem no grupo. Eram unidos, coesos e definitivamente, excludentes.

O que motivou essa lembrança repentina de Henrique foi o encontro com Gabriel Feitosa, um amigo seu de anos, que o visitara um dia antes. Gabriel sentara-lhe ao lado e falara-lhe sobre como iam todos os amigos, onde eles estavam, o que faziam. Gabriel, um dirigente de uma ong famosa, como disse em outra oportunidade, passou toda a tarde com Henrique. Falava ao seu lado, coçava a barba longa e castanha, ria e contava histórias sobre o destino dos amigos. Quando anoiteceu, foi-se embora.

Os dois tinham se tornado amigos quando Henrique se interessou por uma amiga de Gabriel, no início da faculdade. Chamava-se Daniela, e era uma menina esguia, morena, de cabelos negros cortados rente à cabeça. Ela era um pouco mais velha que Henrique e ele não se sentia a vontade para se aproximar. Gabriel os apresentou em uma festa e os dois descobriram que moravam próximos um ao outro. Falaram de detalhes da vida dos dois que eram muito parecidos – ambos os pais tinham morrido na mesma semana, oito anos antes de se conhecerem – e acabaram saindo da festa juntos.

Junto com Gabriel e Henrique, andava João Gustavo, um filho de um empresário de uma grande indústria. João Gustavo era o mais expansivo dos três. Mesmo sendo bastante baixo, chamava mais atenção por não conseguir ficar quieto por mais de alguns instantes. Era um completo aficionado por música e na época da faculdade, entrou numa banda para ser o baterista.

O grupo de amigos ainda possuía o Barata, um negrão enorme que era o mais meticuloso de todos, Sadi, um filho de libaneses que desde pequeno se interessou por cinema, Carlinhos, um moreno baixo que gostava de discussões sobre política e fazia parte do centro acadêmico, Déb, uma gordinha que adorava teatro e se dizia atriz, e Mônica, que começou a faculdade, mas, dizia, não gostava do curso - entretanto foi a que teve melhor desempenho ao final. Havia outras meninas, outros amigos, alguns que só passaram temporadas, mas Henrique só se lembrava direito desses.

Henrique tinha uma mania quando ainda estudava. Ele imaginava o futuro de cada um dos amigos, como eles se virariam ou qual seria realmente a profissão de cada. Ele suspeitava que todos iriam ser pessoas realizadas, venceriam no que quer que escolhessem, pois, apesar de ter pouco envolvimento com o resto das pessoas do mundo, sabia que todos eram mais inteligentes que a média. Não que eles se gabassem, não, apenas sabiam que trabalhariam em qualquer área, onde quer que desejassem.

Depois que Gabriel foi embora, Henrique se apoiou no umbral da janela e chorou copiosamente. Ele sentia saudade de todos e sentia a falta da segurança que era pertencer a um grupo. Henrique se sentia tão sozinho ultimamente que povoava a cabeça com abstrações vindas de qualquer lugar, principalmente da televisão. Nesse dia, resolveu mexer no passado.

Desde sempre Henrique teve certeza que Gabriel seria uma pessoa importante. Gabriel abria mão de tudo para lutar pelos seus ideais. E ele os tinha muito bem traçado na cabeça. Falava que queria uma família. Queria ter filhos, aproveitar a vida, queria desistir de toda a tristeza, dizia que éramos obrigados a sermos felizes. Era em torno dele que eles se equilibravam.

Daniela ficou com Henrique por três anos. De certa forma, Henrique apagava o brilho dela. Ela quase não demonstrava o que pensava quando perto dele com vergonha de parecer idiota. Em todas as conversas, ela se escondia sob o título de namorada do Henrique. Os dois foram os únicos casais que duraram. E casais eram formados e desfeitos a todo tempo, entre eles. Sem sombra de muito erro, pode-se afirmar que todos se namoraram.

Sadi participou do núcleo de cinema na faculdade e logo conseguiu emprego dentro de uma produtora famosa. Fazia a parte de pesquisa. Começou a estudar o maquinário, a parte técnica, aprendeu mais por fora em alguns cursos e, hoje, dirige seus próprios filmes. Já ganhou prêmios em vários festivais.

Na cabeça de Henrique, dentro de um grupo assim tão homogêneo, para todos terem sucesso, ele imaginava que alguém, por mais predestinado que fosse, deveria fracassar completamente. Isso seria uma forma de aplacar a fome do arquétipo de grupo, costumava recitar para Gabriel. Este apenas ria e perguntava de brincadeira quem então seria essa pessoa. Apesar de nunca responder, Henrique imaginava que este era João Gustavo.

Em todas as conversas que abarcassem música, João Gustavo era a palavra definitiva. Era o que mais procurava, o que mais se interessava e o que sempre tinha a opinião mais sensata. No entanto, quando entrou para a banda, Henrique teve certeza que ele seria perfeito para o papel de fracassado. A banda não daria certo, como acontece com a grande maioria delas, e seria tarde para poder voltar atrás. João Gustavo acreditava piamente no seu sucesso e ficou anos lutando para a banda ser promovida. Mas, quando completou trinta anos, percebeu que não adiantava mais.

Barata conheceu Mariana no final do curso. Os dois se encontraram nas aulas de verão de fotografia. Barata casou-se com Mariana e se tornou fotógrafo profissional. Déb foi para a televisão depois de participar de uma peça muitíssimo famosa. Hoje roda um filme com Sadi. Carlinhos trabalha como assessor de algum político famoso e Mônica fez mestrado e doutorado e dá aula na estadual, no próprio departamento. Henrique sorriu ao ouvir isso, mas Gabriel não percebeu.

Daniela é assessora de empresas estrangeiras que querem montar escritórios aqui. Ela fornece informações sobre as condições do país e quais são as áreas mais rentáveis. Depois que Henrique e ela se separaram – Henrique dizia que tinha enjoado dela – ela conseguiu um emprego e estudou num mestrado voltado para negócios. Ela quase não se encontra com os demais.

Henrique lembra que ele tinha sido o primeiro a ganhar dinheiro entre todos os amigos, mesmo sendo o mais novo. Tinha entrado numa consultoria muito parecida com a que Daniela trabalha hoje, mas tinha largado quando percebeu como era o vício de poder que existia dentro das grandes corporações.

Com o final da banda, João Gustavo se viu perdido, desiludido. Tinha passado a vida inteira acreditando que faria sucesso, que seria conhecido, famoso. Com trinta anos, viu que não era nada além de um desempregado. Henrique escutou impassível sobre João.

Antes de terminar o curso, Henrique desistiu. Largou emprego, faculdade, namorada e tentou a vida de uma maneira que ele sempre tinha imaginado. Ele queria ser escritor. Escrevia contos diariamente, enviou alguns roteiros de curtas para a produtora que Sadi trabalhava, se enveredou pelo teatro. Ficou dez anos vivendo de sub-empregos para tentar sustentar a vontade de escrever. Nunca conseguiu nada.

João Gustavo já tinha um filho para criar quando resolveu bater na porta do pai e pedir ajuda. O pai, através de conhecimentos, conseguiu que ele trabalhasse numa gravadora como descobridor de talentos. No início ele deveria ouvir as diversas fitas que chegavam na empresa e decidir qual seria escolhida para uma triagem mais aprofundada. Com o tempo, conseguiu angariar melhores posições e hoje é um executivo importante dentro do mercado fonográfico. Tem uma família de três filhos e se sente totalmente realizado. Nem de longe lembra aquele João Gustavo que conhecemos, disse Gabriel.

Ao ouvir as últimas frases, os olhos de Henrique se encheram de lágrimas e o amigo descobriu que deveria ir embora nesse momento. Suas histórias pareciam magoar mais do que ajudar. Sabia que não devia emocionar mais o amigo que estava ali catatônico há quase dez anos. Tinha desistido completamente. Levantou-se, abraçou o amigo e disse que voltaria na semana seguinte, como sempre fazia. Na cabeça de Henrique só vinha a certeza que sua profecia estava correta. Alguém deveria ser um fracasso, mas esse alguém não era João Gustavo.

quinta-feira, 3 de abril de 2003

the computer strikes back
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Ele acordou com uma idéia para um conto. Sentou-se no computador, começou a digitar cada letra para formar as palavras. Pensou na personagem principal. Deveria ser um garoto. De vinte e poucos anos. Um desiludido com toda a sua curta existência, por mais inverossímil que isso possa parecer. Alguém que já tinha passado por grandes empresas, tinha trabalhado arrumado, com roupas engomadas. Tinha tido dinheiro no bolso e saía quando quisesse. Já teve as mulheres mais desejadas, na hora que tivesse disposto, bastava um telefonema. Tinha experimentado tantas e tamanhas emoções diferenciadas que perdera o gosto. Percebeu, pouco antes de completar vinte anos, que nada disso conseguia fazê-lo feliz.

Começou a se culpar por nunca ter batalhado para atingir nada. Antes, era apenas seguir a rotina de desejar e esperar. Como se uma fada ordinária, dessas de contos, escutasse seus pedidos e os trouxesse embalados através da janela. Martirizava-se, era realmente digno de tudo o que tinha? Olhava para o lado, conseguia ver alguém que possuía algum tipo de dote parecido com o dele, só que conseguido com luta, com suor, e quase o invejava. Dizia para si, o outro vale o que é, sou apenas um sortudo.

Nada além de sorte. Era disso que tinha certeza. Nunca precisou ser posto a prova, nunca precisou competir. Se não fosse o melhor, era um deles. Nunca fez esforço nenhum para alcançar algo. Era um mimado pela vida.

Lembrava do primeiro emprego. Conseguiu logo no início do curso, dentro de uma agência ligada à faculdade. Vários candidatos sentados numa sala espaçosa com olhares apreensivos que trocavam um com o outro. Pareciam todos calouros. Foi chamado para uma entrevista, uma mulher de trinta e poucos anos e um garoto afeminado de mais ou menos vinte cinco. Dias depois descobriu que deveria comparecer para mais uma dinâmica em grupo. A angústia inicial não tinha ido embora totalmente, mas ele já tinha certeza, lá no fundo, que a vaga era dele. Sabia que as pessoas que o haviam entrevistado tinham gostado dele. Logo após o último encontro, a previsão se confirmou e ele ficou alguns dias relutando. Queria saber o real motivo de ter sido chamado. Não se achava nada superior aos outros candidatos. Duvidava da sua eficácia e não tinha como, ou coragem, para perguntar a verdade.

Lembrava da primeira namorada, que não diferia muito do primeiro beijo. Uma menina veio falar com ele sobre a intenção de uma prima que gostaria muito de dar-lhe um beijo. Ele, envergonhado, quis saber qual menina era. Ao constatar que ela era bonita, de cabelos lisos e louros, de rosto redondo, claro e com sardinhas, ele aceitou. Depois de pouco tempo, percebeu que estava completamente enjoado, não agüentava mais olhar para o rosto delicado da menina. Logo um conhecido mais velho começa a sair com ela. Ele hoje sabe que ela ainda não se curou de toda a crueza como ele a tratou. Ela tenta falar com ele, como se nada tivesse acontecido, como se pudessem ser amigos, mas ele percebe que ela não quer isso. Apenas o seu lado racional, aquele que ainda nos mantém intactos na terra por impedir que briguemos por pedaços de pão ou por vagas em estacionamentos, diz para ela que deve se manter em ambiente amigável, diz que ela deve ter um bom convívio com todos a sua volta. Parece, para ele, que há horas em que ela queria apenas pará-lo e perguntá-lo o porquê de tudo o que aconteceu. E ele não teria nada para responder. Apenas ficaria estático sem palavras, olhando para ela, com vontade de se desculpar, mas sem nenhum remorso na alma.

Antes de começar a faculdade e decidir todo o rumo da vida, teve que optar por uma carreira. Não queria, mas tinha certeza que qualquer área em que atuasse seria bem-sucedido. E não agüentou por muito tempo essa responsabilidade. Optou, aos dezessete anos, época a qual o que sabemos da vida se resume ao caminho de casa para o colégio e o número do telefone de meia dúzia de meninas, por ser criativo, ganhar dinheiro e ser venerado. No meio do caminho, houve alguns imprevistos que só ocasionaram uma pequena mudança de perspectivas. A opção de ser criativo foi posta para fora, seria apenas rico e venerado. Ele abraçou a idéia, pensando que algum dia poderia voltar a criar. Em pouco tempo já tinha todo o caminho traçado para subir todos os postos necessários para o orgulho da família.

Descobriu que para conseguir vencer nesse tipo de vida, deveria desistir da liberdade de escolha. Durante anos de sua vida, deveria apenas assentir com a cabeça a qualquer das escolhas de seus superiores. Por pouco tempo conseguiu suportar. Olhou para seus superiores, e havia superiores em cima deles, e mais superiores e não vislumbrava como acabar com isso. Desistiu.

Culpou a todos, se sentiu intocável e passível de julgamentos de valores. Todos se matavam para comprarem felicidades embaladas em supermercados. Parecia que não corria sangue nas suas veias, eram incapazes de desafiar a ordem pré-estabelecida.

Passou uma temporada de lua-de-mel num grupo de amigos que se juntaram para produzir um site. Ganhava pouco, ele pensava na época, mas era divertido poder andar nas ruas do centro sem muita necessidade. Ou poder conversar sobre qualquer assunto dentro da redação. Trabalhava pouco, sempre com um fone de ouvido, sempre dialogando pela Internet, sempre alheio a sua volta.

Sentiu-se um mercenário, mas aceitou a proposta de volta para o mercado de trabalho formal. Queria comprovar pela última vez para si mesmo que aquilo não era a sua vida. Dessa vez não se levou a sério e pôde encontrar valores dentro da companhia. Se antes não entendia como aquelas pessoas podiam ser felizes dentro de um sistema tão claustrofóbico, tão pequeno e míope, agora ficava um pouco mais confortável ao conhecer pessoas de verdade.

Foi então que desistiu de vencer. Mesmo com menos de vinte anos, chegou a conclusão que por esse lado da vida, não chegaria a mais nenhum lugar que lhe proporcionasse prazer. Como se todas as suas células de alegria já tivessem sido gastas.

Renegou tudo o que tinha conquistado, retirou-se para um exílio metafórico, como um deserto para meditar, e ficou ali, cozinhando sob o sol escaldante. Largou o emprego, desistiu de relacionamentos, esqueceu de amigos. Ficou em casa sozinho, num quarto enorme que supria todas as suas necessidades. Não saía de casa para nada, nem para comprar comida, nem para ver o sol, nem para andar pela vizinhança. Ficava dias sem pronunciar uma palavra, e o único trajeto a que se permitia era da cama para o banheiro e a aventura da volta. Nesse pouco tempo de vida, sentia-se repleto de experiências frustrantes e distantes do seu ideal de vida.

Lia todos os livros que havia acumulado nas andanças pelos sebos do centro da cidade. Escrevia versos tortos para depois queimá-los ou rasgá-los. Esperava ansiosamente que alguém ligasse para ele para resgatá-lo desse poço, mas quando algo parecido acontecia, ainda recusava. Ninguém foi insistente o suficiente para conseguir fazer mudá-lo de atitude. Foi então, num dia qualquer, que, ao acordar, teve a idéia para um conto.

quarta-feira, 2 de abril de 2003

estou sem computador - novamente - em casa. mas ainda consigo escrever em papel...

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pseudo

indigno sou eu
que finjo escrever
poema
onde nem ao menos
consigo rabiscar
um verso com vontade

disfarço minha
total incapacidade
transvestindo
essas linhas
num híbrido
que não sou capaz
de identificar
- e julgo poucos
capazes,
pela impossibilidade
da obra

uma mistura
do formato
sem formalismo
muito pelo contrário,
com uma fluência
e linguagem da esquina
com algumas
cerejas escondidas

referências tortas
e mal acabadas
e todo o trabalho
pesado da decodificação
já iniciado

às vezes posso
enxergar
as linhas que regem
meu corpo
coladas de alto a baixo
nessas publicações
com uma caligrafia vasta
representativa e variada

tudo para
um dia alguém
observar e
falar que se
tratava de alguém
medíocre
com pseudo - intenções

basicamente
um pseudo qualquer coisa.

>>
cidade bela

nesse confuso ano
que parece, agora,
se iniciar
um estranho mal
coletivo
me aflige de maneira
inesperada

a falta de segurança
para exercer o meu direito
de ir e vir

vivemos na dependência
de um poder inexistente
ou passível de humores voláteis

nossa proteção
se chama sorte
e somos apenas
peças numa roleta.
estatisticamente,
um dia nosso número
será sorteado

enquanto isso
escutamos e presenciamos
relatos
cada vez mais próximos
mais amigos
de feridas profundas
ocasionadas pelas farpas
dessa convulsão

os culpados
não possuem rostos
ou carteiras de identidade
para unitariaza-los
fazem parte da
massa disforme
e perdida
e desesperançosa
que clama e urge
uma mudança mais rápida que a imediata
nessa malha que nos veste

por isso
os que aindam
podem sonhar em sobreviver
os que têm problemas
diferentes dos da simples existência diária
esgueiram-se
pelas frestas e curvas
da nossa bela cidade

bela cidade
que não sobrevive
apenas desse adjetivo.