terça-feira, 8 de abril de 2003

Ao rever “A.I. Inteligência Artificial” várias questões passam pela cabeça. A primeira a passar na minha foi uma velha rixa entre roteiristas e diretores sobre a paternidade do filme.

“A.I”, para quem não sabe, nasceu de uma idéia do Stanley Kubrick de adaptar um conto de ficção científica, assim como ele tinha feito com o seu “2001”. Porém, mestre Kubrick (provavelmente um dos maiores diretores de todos os tempos) dizia que com a tecnologia disponível nas décadas de 70 e 80 era impossível transpor para as telas toda aquela civilização futurista, baseada na robótica e informática. Foi postergando, postergando até que quando desengavetou o projeto, com apenas algumas páginas rascunhadas para o roteiro, estava prestes a ir para o céu dos cineastas. Então observou ao seu redor e apontou para a única pessoa que ele achava apta a tocar esse filme, Steven Spielberg – talvez por causa de seu “Contatos Imediatos de terceiro grau”, ou por “E.T.”, nunca se saberá ao certo.

O que é certo é que Spielberg, o mais cinéfilo de todos os diretores americanos relevantes e vivos, não deixaria nunca passar essa oportunidade. Aceitou de pronto trabalhar com o diretor de “Laranja Mecânica”, “Doutor Fantástico”, “Lolita”, “De Olhos Bem Fechados”, “Nascido para Matar”, “Barry Lindon”, “O Iluminado” etc. Na versão final, a quase totalidade do roteiro foi escrito pelas mãos do Spielberg, já que o mestre havia falecido recentemente. Mesmo assim, ao final do final, dá para apontar os dedos do tutor em algumas cenas de “A.I”.

No entanto, essas cenas são escassas. E, no âmbito geral, o clima do filme está mais próximo dos de Spielberg – quase sempre pontuados por produções com um viés infantil, com mensagens morais, de finais felizes – do que de Kubrick – infinitamente mais sombrio, mais desesperançoso, nebuloso e sutil.

Há pessoas que dizem, com uma certa ponta de verdade, que as partes kubrickianas do filme são sensacionais de sufocantes. E as que Spielberg mexe são leves demais para o filme que se propõe.

E “A.I” não é, nem poderia ser, leve. Trata de assuntos um tanto quanto complexos e filosofais demais para ter um raciocínio raso. De uma maneira simplista, quer apenas resumir do que é feito o ser humano e qual seria a diferença básica entre um homem e uma cópia perfeita dele.

Como todos filmes de ficção calcados em comparação homem versus máquina, sugere que o limite entre os dois está na capacidade do homem em formular sonhos e acreditar neles. Em criar situações que não podem ser comprovadas, que não são táteis, e crer que aquilo pode ser tão real quanto a realidade. Em duas palavras, ter fé.

Como se sabe, o ato de ter fé consiste numa reação não racional, portanto, considerando apenas dois campos distintos de atuação do humano, emocional. Fazendo a ligação direta, o que difere o ser humano do robô é a capacidade do homem de ter emoções.

Até ai, morreu Tancredo. Nada difere dos filmes que propõe alguma discussão sobre esses dois espécimes terrestres. Até “Exterminador do Futuro II”, um filme que tinha outros motivos para se preocupar, fala sobre isso.

O que é mais interessante no filme, para apimentar essa discussão, é que eles colocam um robozinho garoto que consegue alcançar esse tipo de pensamento abstrato. Então, pelo raciocínio do filme, ele teria ultrapassado o limite que divide a máquina do ser orgânico.

No filme, no entanto, David, o pequeno robô, vive a procura de uma certa fada azul que o transformaria em um garoto de verdade, já que – ele pensa – sua mãe somente gosta do seu filho “natural”. O fato de ele não ser orgânico sobrepuja o fato que ele pensa, age e se parece muito com uma criança comum.

Não há uma explicação para o fato de David se comportar exatamente como uma criança “normal”. Linhas de comandos que determinassem atitudes próximas às infantis são viáveis, mas em nenhum momento do filme isso é sugerido. Se esse raciocínio fosse o correto, David não conseguiria formular pensamentos abstratos, mas, pelo contrário, teria mapeado alguns tipos de comportamentos próprios do lado emocional. Para usar exemplos do filme, o ato de almejar algo fora da realidade, a atitude de ciúme contra um igual que pode roubar o seu lugar, a sensação de falta de originalidade quando ele descobre vários robozinhos iguais a ele e outras estariam dentro dele através de algum tipo de raciocínio lógico, como uma resposta programada a estímulos. Mas não. O filme se propõe, realmente, a embaralhar a diferença entre o homem e a máquina.

Aliás, em uma das seqüências mais spielbergianas do filme, a do show de destruição de robôs, David só consegue se salvar por parecer bastante com uma criança verdadeira e ter atitudes identificadas unicamente com meninos.

Contudo, não é cem por cento certeza afirmar que Kubrick faria um “A.I” melhor do que Spielberg, pois é impossível ter uma certeza absoluta sobre isso, já que o diretor-mor nunca mais poderá filmar nesses planos. Porém, podemos exercer nossa capacidade que comprova sermos humanos e imaginar um filme com todos os cacoetes do mestre. Principalmente um filme que nos passe mais ainda a sensação de terror, tão a cara de Kubrick, que sofremos quando estamos atrás de algo que nunca alcançaremos.

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