quinta-feira, 3 de abril de 2003

the computer strikes back
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Ele acordou com uma idéia para um conto. Sentou-se no computador, começou a digitar cada letra para formar as palavras. Pensou na personagem principal. Deveria ser um garoto. De vinte e poucos anos. Um desiludido com toda a sua curta existência, por mais inverossímil que isso possa parecer. Alguém que já tinha passado por grandes empresas, tinha trabalhado arrumado, com roupas engomadas. Tinha tido dinheiro no bolso e saía quando quisesse. Já teve as mulheres mais desejadas, na hora que tivesse disposto, bastava um telefonema. Tinha experimentado tantas e tamanhas emoções diferenciadas que perdera o gosto. Percebeu, pouco antes de completar vinte anos, que nada disso conseguia fazê-lo feliz.

Começou a se culpar por nunca ter batalhado para atingir nada. Antes, era apenas seguir a rotina de desejar e esperar. Como se uma fada ordinária, dessas de contos, escutasse seus pedidos e os trouxesse embalados através da janela. Martirizava-se, era realmente digno de tudo o que tinha? Olhava para o lado, conseguia ver alguém que possuía algum tipo de dote parecido com o dele, só que conseguido com luta, com suor, e quase o invejava. Dizia para si, o outro vale o que é, sou apenas um sortudo.

Nada além de sorte. Era disso que tinha certeza. Nunca precisou ser posto a prova, nunca precisou competir. Se não fosse o melhor, era um deles. Nunca fez esforço nenhum para alcançar algo. Era um mimado pela vida.

Lembrava do primeiro emprego. Conseguiu logo no início do curso, dentro de uma agência ligada à faculdade. Vários candidatos sentados numa sala espaçosa com olhares apreensivos que trocavam um com o outro. Pareciam todos calouros. Foi chamado para uma entrevista, uma mulher de trinta e poucos anos e um garoto afeminado de mais ou menos vinte cinco. Dias depois descobriu que deveria comparecer para mais uma dinâmica em grupo. A angústia inicial não tinha ido embora totalmente, mas ele já tinha certeza, lá no fundo, que a vaga era dele. Sabia que as pessoas que o haviam entrevistado tinham gostado dele. Logo após o último encontro, a previsão se confirmou e ele ficou alguns dias relutando. Queria saber o real motivo de ter sido chamado. Não se achava nada superior aos outros candidatos. Duvidava da sua eficácia e não tinha como, ou coragem, para perguntar a verdade.

Lembrava da primeira namorada, que não diferia muito do primeiro beijo. Uma menina veio falar com ele sobre a intenção de uma prima que gostaria muito de dar-lhe um beijo. Ele, envergonhado, quis saber qual menina era. Ao constatar que ela era bonita, de cabelos lisos e louros, de rosto redondo, claro e com sardinhas, ele aceitou. Depois de pouco tempo, percebeu que estava completamente enjoado, não agüentava mais olhar para o rosto delicado da menina. Logo um conhecido mais velho começa a sair com ela. Ele hoje sabe que ela ainda não se curou de toda a crueza como ele a tratou. Ela tenta falar com ele, como se nada tivesse acontecido, como se pudessem ser amigos, mas ele percebe que ela não quer isso. Apenas o seu lado racional, aquele que ainda nos mantém intactos na terra por impedir que briguemos por pedaços de pão ou por vagas em estacionamentos, diz para ela que deve se manter em ambiente amigável, diz que ela deve ter um bom convívio com todos a sua volta. Parece, para ele, que há horas em que ela queria apenas pará-lo e perguntá-lo o porquê de tudo o que aconteceu. E ele não teria nada para responder. Apenas ficaria estático sem palavras, olhando para ela, com vontade de se desculpar, mas sem nenhum remorso na alma.

Antes de começar a faculdade e decidir todo o rumo da vida, teve que optar por uma carreira. Não queria, mas tinha certeza que qualquer área em que atuasse seria bem-sucedido. E não agüentou por muito tempo essa responsabilidade. Optou, aos dezessete anos, época a qual o que sabemos da vida se resume ao caminho de casa para o colégio e o número do telefone de meia dúzia de meninas, por ser criativo, ganhar dinheiro e ser venerado. No meio do caminho, houve alguns imprevistos que só ocasionaram uma pequena mudança de perspectivas. A opção de ser criativo foi posta para fora, seria apenas rico e venerado. Ele abraçou a idéia, pensando que algum dia poderia voltar a criar. Em pouco tempo já tinha todo o caminho traçado para subir todos os postos necessários para o orgulho da família.

Descobriu que para conseguir vencer nesse tipo de vida, deveria desistir da liberdade de escolha. Durante anos de sua vida, deveria apenas assentir com a cabeça a qualquer das escolhas de seus superiores. Por pouco tempo conseguiu suportar. Olhou para seus superiores, e havia superiores em cima deles, e mais superiores e não vislumbrava como acabar com isso. Desistiu.

Culpou a todos, se sentiu intocável e passível de julgamentos de valores. Todos se matavam para comprarem felicidades embaladas em supermercados. Parecia que não corria sangue nas suas veias, eram incapazes de desafiar a ordem pré-estabelecida.

Passou uma temporada de lua-de-mel num grupo de amigos que se juntaram para produzir um site. Ganhava pouco, ele pensava na época, mas era divertido poder andar nas ruas do centro sem muita necessidade. Ou poder conversar sobre qualquer assunto dentro da redação. Trabalhava pouco, sempre com um fone de ouvido, sempre dialogando pela Internet, sempre alheio a sua volta.

Sentiu-se um mercenário, mas aceitou a proposta de volta para o mercado de trabalho formal. Queria comprovar pela última vez para si mesmo que aquilo não era a sua vida. Dessa vez não se levou a sério e pôde encontrar valores dentro da companhia. Se antes não entendia como aquelas pessoas podiam ser felizes dentro de um sistema tão claustrofóbico, tão pequeno e míope, agora ficava um pouco mais confortável ao conhecer pessoas de verdade.

Foi então que desistiu de vencer. Mesmo com menos de vinte anos, chegou a conclusão que por esse lado da vida, não chegaria a mais nenhum lugar que lhe proporcionasse prazer. Como se todas as suas células de alegria já tivessem sido gastas.

Renegou tudo o que tinha conquistado, retirou-se para um exílio metafórico, como um deserto para meditar, e ficou ali, cozinhando sob o sol escaldante. Largou o emprego, desistiu de relacionamentos, esqueceu de amigos. Ficou em casa sozinho, num quarto enorme que supria todas as suas necessidades. Não saía de casa para nada, nem para comprar comida, nem para ver o sol, nem para andar pela vizinhança. Ficava dias sem pronunciar uma palavra, e o único trajeto a que se permitia era da cama para o banheiro e a aventura da volta. Nesse pouco tempo de vida, sentia-se repleto de experiências frustrantes e distantes do seu ideal de vida.

Lia todos os livros que havia acumulado nas andanças pelos sebos do centro da cidade. Escrevia versos tortos para depois queimá-los ou rasgá-los. Esperava ansiosamente que alguém ligasse para ele para resgatá-lo desse poço, mas quando algo parecido acontecia, ainda recusava. Ninguém foi insistente o suficiente para conseguir fazer mudá-lo de atitude. Foi então, num dia qualquer, que, ao acordar, teve a idéia para um conto.

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