segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Salada-mista

Seu neto passou correndo com uma velocidade absurda. Flash. Afundado numa poltrona de couro marrom, enquanto o fim de setembro faz um confortável frio lá fora de casa, Andrés observa sua neta Mona indo atrás dele, de Pedrinho, na mesma velocidade. Flash. Já passaram. Voltam agora, na mesma velocidade. Flash. Balançam os bracinhos ao lado do corpo para dar mais impulso. Estão brincando de pique? Ainda se brinca de pique? Correm em volta dele. Pedrinho fugindo e rindo, Mona, caçando o primo mais novo e gargalhando. Têm quase a mesma idade. Pedrinho tem 6, ele acha, enquanto Mona é um pouco mais velha, 7 anos. Ele acha. Não sabe direito. Faz tanto tempo, são tão diferentes. Não consegue se lembrar. São tão pequenos, tão pequenos, são tão iniciantes numa vida que vai ser rápida para eles. Flash. Correm, como se não houvesse qualquer outro motivo na vida. Riem, despreocupadamente, riem com todos os dentes à mostra, com todos os sabores e sons, riem perdidamente, gostosamente. Sente um pouco de inveja deles, principalmente de Pedrinho. Não consegue evitar. Flash. O som das risadas se afasta, esmaece, vira eco na memória. Sente inveja não da capacidade de movimentação do menino tão novinho que ainda tem dobras nos braços gordinhos. Não é da velocidade. Andrés gosta de ficar parado. Aprendeu a se aceitar preguiçoso, depois de velho. Do que ele sente inveja de Pedrinho, então? E antes que consiga raciocinar, já tem a resposta, a resposta que ele tem vergonha de ter, que ele não queria saber, que ele não queria sentir. E ele não sabe por que ele tem vergonha e não se lembra um momento em que não teve vergonha. Como se todos os seus movimentos fossem cuidadosamente pensados em prol de outras pessoas, de quem o observa, como se ele sempre quisesse agradar as pessoas. Até hoje. Como se ele quisesse ser amado, apenas.

Ele sente uma vontade de ser Pedrinho, é isso. Não consegue evitar esse raciocínio, e ele vem mais forte e Andrés entorta o rosto, aperta as mãos enrugadas, como se tivesse tomado um remédio amargo. Ele quer viver uma vida sem os limites que lhe foram impostos, como Pedrinho, duas gerações mais novo, conseguiu – está conseguindo. Não ter que ser nada, apenas viver. Apenas correr, fugir, rir, rir despreocupadamente – será que já riu dessa maneira? Flash. Não se lembra, não tem essa memória – sem que isso quisesse dizer nada para ninguém. Sem que seus gestos fossem interpretados exatamente por quem deveria apenas acolhê-lo. Sente uma dor no meio do peito, como se o coração estivesse congelando. Uma dificuldade de respirar. Uma tristeza que o invade por completo, descendo da cabeça para o restante do corpo. Começa a inspirar com mais força, para tentar obrigar o corpo a se controlar, a si mesmo, porque tem medo do que pode acontecer caso não se segure, e expirar descensuradamente, para dar a chance do corpo também ter a sua vontade respeitada. O processo não funciona e sente o corpo tomar o controle e ele fica sem ar. Começa a piscar os olhos com dificuldade. O sangue desce do corpo e entre uma piscadela e outra já ele não está mais sentado, mas correndo, correndo pela casa, como Pedrinho, não é Pedrinho, mas um menino da idade de Pedrinho, um pouco mais velho, e a casa não é aquela que ele estava e ele já não pensa como o sexagenário de cabelos brancos Andrés, mas como a criança que Andrés foi, um dia, há muito tempo.
Andrés corre atrás de uma prima, um pouco mais velha. Ele ri, ri como não imagina que um dia pudesse ter rido, e corre desbragadamente. Flash. Não sabe se quer encontrá-la, qual é o objetivo de correr, apenas corre. De vez em quando se esbarram, já que a sala onde correm não é tão grande, mas continua a correr porque quer correr e porque correr o faz rir, é um objetivo em si. Quando se cansam, a prima sugere irem para fora brincar. Ela mora em uma rua sem saída, e os pais de ambos os autorizam a ir. Andrés vai de mão dada com a prima, como se precisasse de alguma proteção maior. Ele é um menino lindo, que já demonstra o adolescente e o adulto exuberante que vai se tornar. Pele morena como um índio, cabelos pretos escorridos, olhos negros, profundos, como se guardassem o segredo de todas as perguntas. Mesmo jovenzinho, tem um corpo sólido, que atrai a atenção e a curiosidade de mulheres de todos os tamanhos e idades. Ele não se importa muito com isso, não pensa nessas coisas, e nem repara quando as mães de seus amiguinhos passam a mão em seus cabelos finos, empapados de suor. Ele só pede para que o soltem para ele voltar a brincar. Mas elas o agarram e o enchem de beijos que ele faz questão de limpar antes de correr, para o desespero das balzaquianas.

Lá fora, a priminha encontra o grupo de amigas que mora nas casas e ruas vizinhas. Estão todas brincando de elástico e, ao vê-los, vão em sua direção. Ele as conhece de vista, lembra delas, principalmente de uma pequena menina que tem a sua cor, o rosto delicado e os cabelos castanhos anelados, que ele sente algo diferente, mas que não sabe direito dizer. É como se ela tivesse um rosto que lhe trouxesse um prazer, mas que também causasse uma dor, leve, mas constante, só de ser contemplado. Ele não sabe o que é e evita olhá-la, porque não quer que essa sensação estranha o envolva, mas ele a olha, não resiste e a olha de vez em quando e sente esse misto de prazer e de dor misturar no baixo ventre e fica nervoso, e se senta na escada enquanto a prima abraça e beija todas as amigas.

“Andrés, você conhece as minhas amigas?”, ela pergunta para ele, como se cumprisse uma etiqueta social recém aprendida, mas que na verdade tinha intenções bem arquitetadas. Ele balança a cabeça afirmativamente sem querer pronunciar qualquer palavra, mas querendo de alguma maneira participar daquele ambiente. Ele tinha um misto de atração e repulsa dentro dele. Forças combinadas e antagônicas que o impediam de fazer qualquer movimento brusco. Um sorriso lhe estampou o rosto, sem que ele pudesse controlar, logo o sorriso que ele achava que era feio porque mostrava os seus dentes que ele não gostava de mostrar, e que fechava os olhos e transformava sua cara em algo que não era reconhecido.
“Vamos brincar?”, a prima pergunta novamente, dando as mãos para as amigas, formando uma roda, sem esperar que Andrés responda qualquer coisa, mas ele, obediente, sempre um bom menino, novamente balança a cabeça, positivamente, mas com menos força, com as forças antagônicas exercendo mais pressão sobre o menino que queria apenas não estar passando por aquela situação, mas que também queria passar por aquela situação, enquanto as meninas pulam, em roda, e cantam alguma cantiga que não saberia dizer, repetir ou cantar jamais.

Assim como começaram elas também param de rodar, com a prima já deixando de ter o protagonismo, com uma menina mais velha, mais magra e mais alta falando em seu ouvido, algo que ela sorri, sem querer mostrar qualquer detalhe, mas já mostrando, e pergunta a Andrés se ele queria brincar de salada-mista.
O menino fica sem palavras num instante e no instante seguinte também mas no terceiro instante ele fala que sim, menino bom, menino obediente, que jamais provocou qualquer problema, é tão amável com todos, sempre respeita, sempre é o melhor aluno, melhor do colégio, tão inteligente, sim, ele brincaria mas que não podia valer a salada-mista. Não podia valer o beijo na boca, o menino de 6, 7, 8 anos está sentado na escadinha à porta da casa à beira da rua sem saída e fala pela primeira vez que não quer, não brinca se tiver salada-mista, e a menina alta e magra diz que sim, que tudo bem, que não vai haver salada-mista e logo fala com a prima, no ouvido, cochicha, e logo as duas estão novamente sorrindo, e elas todas agora cochicham em ouvidos e ele sabe o que vai acontecer, já imagina, mas não tem certeza, e tem dúvida e fica novamente paralisado, não quer fugir, não quer sair dali, mas também não quer ficar, não tem direito suas vontades claras, não sabe bem o que fazer, só sabe que não quer salada-mista. É excluído, mas ainda se sente parte daquilo.

“Começa comigo”, diz a prima e ele fica pensando no que vai acontecer, as outras meninas, a mais velha, fica atrás da prima, mas a outra alta, e a bonitinha ficam, e uma outra, mais novinha, se sentam do lado dele, que se espremeu nos degraus da escada para dar espaço para as outras meninas. A mais velha tapa os olhos da prima, diz algo no ouvido e começa perguntando: “é esse?, é esse?”, e a prima apenas responde, “não, não”, e a amiga alta passa por Andrés que sente um alívio imenso, como se tivesse sido libertado, e ela chega na menina bonitinha e a prima diz: “sim”. “Pêra, uva ou maçã?”, “Pêra”, responde a prima e vai dar um exagerado aperto de mão, que balança o corpo das duas meninas. O coração de Andrés dispara e ele, ainda mais ansioso, com vontade de sair, mas algo o prendia, era como se suas pernas não mais obedecem a ele, como se houvesse havido uma divisão entre o que ele queria e o que o corpo exigia, sentiu um pequeno formigamento em todo o corpo, quando a grandona, depois de novamente cochichar no ouvido da bonitinha, começa a perguntar “é esse? É esse? É ESSE?”, e ele não sabe, mas ele sabe, ele imagina, mas ele duvida, e ele logo, e é logo escolhido. Sem muita demora. Sem muita explicação. Sem muita escolha. O coração está em todo o corpo e ele espera a resposta e ele não sabe, mas ele sabe e ele deseja, mas ele tem medo, ele tem uma parede de medo na sua frente, ele tem uma série de regras a respeitar, ele é um menino bom, e ele escuta, sem pergunta, mas houve a pergunta, e ele não a ouve, ele só ouve a resposta e a resposta, com o dedo apontado para ele, o dedo indicador da mão esquerda, enquanto a mão direita tapa os olhos da outra, da bonitinha, e ele ouve a resposta que ele sabia, mas não sabia, que ele já tinha ouvido, mas ainda não tinha sido pronunciada, “salada-mista”.

As pernas que estavam mortas tomam vida e ele sai correndo em direção à casa, apavorado. Entra pela porta, que estava entreaberta, e vai em direção a alguém, algo que o pudesse consolar, alguém que lhe entendesse que a regra foi quebrada, que não foi isso o combinado, não poderia ter salada-mista, e ele não encontra ninguém na sala que ele goste, e ele continua correndo e não demora nada e ele já está na cozinha e encontra a mãe e a perna da mãe e ela a agarra, e enfia o rosto na perna da mãe, como se quisesse entrar, sumir, voltar para um lugar que ele nunca tinha querido deixar. As meninas vêm atrás dele pedindo, exigindo que ele volte, porque elas estavam brincando e ele tinha abandonado a brincadeira bem na sua hora, e ele tinha que aceitar, e ele não quer tirar o rosto de dentro da perna da mãe, que está sentada, tomando uma cerveja amarelo transparente, ele não quer tirar o rosto daquele conforto, daquela seda, da mãe com os seus cabelos encaracolados, e ele quer apenas que elas vão embora, não quer discutir, não concorda com elas, elas estão roubando, mas elas têm que ir embora, enquanto a algazarra aumenta ele sente uma mão no ombro, uma mão grande, de um adulto, e reconhece a mão e vê que era do pai, uma mão grande, de homem, de carinho e dureza, que ele lembra do pai, de uma cena quando ele estava muito doente, de uma doença que ele nunca guardou o nome, era novo e teve essa doença e só conseguia ficar quieto com calma quando o pai chegava em casa, e ele se lembra de um dia em que passou toda a tarde chorando, pedindo o pai que chegou quando o céu já estava escuro e ele reuniu as últimas forças e correu e pulou no pescoço do pai que o agarrou, e falou para ele ficar calmo, que já estava tudo bem, que já tinha passado, e ele soluçava de choro, e aos poucos se acalmou e dormiu no ombro do pai, e ele agora soltou a mãe e aceitou a mão do pai que estava tocado pelo álcool, mas o menino não sabia, e ele, o pai, tinha uma figura que impunha respeito, com os seus bigodes dos anos de antigamente, bigodes que todos os homens que impõem respeito usam, e ele se abaixou para ficar na altura do garoto, que estava soluçando novamente, sem chorar, a mãe o libera sem falar qualquer frase ou palavra, e ele se vira para o pai, já morto de vergonha por passar por essa situação, não consegue largar totalmente a mãe, segura a perna da calça, mas se vira para o pai, que está com o cenho fechado, inquieto, nervoso, como se algo tivesse saído de maneira errada, e ele tinha que consertar, ele tinha que ser o pai ali, tinha que ensinar o filho, tinha que mostrar o que é o certo, e o que é errado, dar um parâmetro para que o filho se apoie durante toda a vida, e então o pai mira nos olhos da criança, consegue captar a atenção da criança, há um silêncio em todo o ambiente e, então, o pai fala abruptamente: “se você não for lá, você é viado”.

O menino agarra novamente a perna da calça da mãe, e afunda mais do que nunca a cabeça na perna dela. Não sabe o que fazer, ele era viado?, mas viado não são aquelas bichas afetadas, aqueles homens que se vestem de mulheres, aqueles errados, invertidos, estranhos, bizarros, misturados, aquelas pessoas más? Se eu não for lá fora, se eu não beijar essa menina, se eu não quiser isso, eu vou me transformar em viado? Eu vou ser uma pessoa ruim? Meu pai não vai gostar mais de mim?

“Deixa o menino, Osvaldo”, diz a mãe, sem muito interesse, enquanto continua a conversar com alguém à sua frente que ele não sabe quem é.

O que eu devo fazer?, se pergunta Andrés e fica congelado, como não queria ficar, queria ter vontade de ir lá fora, agora ele queria, queria ir lá fora e beijar a menina, como o pai disse que ele teria que fazer, porque se ele não beijar ele vira viado. E ele não quer ser viado, ele quer ser igual ao pai, ele quer ser homem, homem que gosta de mulher, não quer gostar de homem, e ele volta para si, e está chorando, e está chorando miúdo, mas ninguém repara nele e ele quer que alguém o abrace, e ele quer que ninguém repare nele, ele quer que alguém o ajude, mas que ninguém perceba que ele está chorando, e ele fica ali, chorando, chorando, sem fazer barulho, com o rosto quente, vermelho, suado, choro misturado com suor e baba que sai da boca. As meninas desistem dele e voltam para lá fora, o pai tenta retirá-lo da mãe que o mima muito, o puxa, uma, duas vezes, mas a mãe repete para deixá-lo ali e o pai desiste, contrariado, pensando muito, quieto, com dúvidas, nervoso, inseguro, será que... meu filho... pode... não quero... não vou deixar... não o meu filho...


O menino afunda, afunda e afunda a cabeça na mãe e sem perceber desperta de volta ao sofá de couro marrom escuro, enquanto Pedrinho e Mona correm pela casa e se agarram e rolam no chão. Flash. Andrés se olha e pergunta se alguma coisa teria mudado se ele tivesse beijado a menina – qual era o nome dela? Não se lembra. Se pergunta se ele teria sido outro homem, se teria sido menos homem, se teria sido mais livre, ou mais acorrentado, teria tido uma vida mais simples, um parâmetro mais óbvio, se ele tivesse sabido o que era o certo, se não tivesse despertado tão cedo e descoberto que ele estava sozinho, diante do mundo, que não apresenta caminhos, que o mundo é um imenso deserto sem sol no céu para saber onde nasce o horizonte. Não percebe as respostas, mas sente uma sensação quente de quem fez o que poderia ter feito. Sente um orgulho, um pequeno orgulho da sua atitude, e sorri, sozinho, se levantando.

domingo, 29 de setembro de 2013

Pela 'Barba...' do Galera: a livre vontade e o fado

Como toda obra de arte, "Barba ensopada de sangue", de Daniel Galera, pode ser interpretada de inúmeros ângulos, além de não ser isenta de pontos menos brilhantes. Geralmente, ambos os fatores estão conectados, o que especificamente é o caso. 

Assim como seu protagonista sem nome, Galera também tem [ou teve] barba
e também gosta de nadar
As descrições do cotidiano do personagem principal, um jovem gaúcho que não é nomeado em todo o livro, às vezes pecam pelo excesso de, exatamente, cotidiano. Há uma necessidade muito grande, e às vezes exagerada, de situá-lo no tempo e no espaço. Penso, por exemplo, no aparentemente alongado comentário sobre as eleições municipais do pequeno município de Garopaba, que dão vontade de bater de ombros.

Mas esse exagero descritivo - que abarca não apenas os gestos cotidianos, mas também as feições dos personagens e ambientes, que caem inevitavelmente em momentos poéticos que podem desagradar os menos ligados a uma forma de contemplação não referencial - faz completamente sentido dentro de um contexto em que o personagem principal tem uma doença que o faz esquecer completamente os rostos das pessoas que ele conhece em questão de minutos.

Aliás, esse ponto cria para o autor um excelente problema narrativo, já que ele vai ter que descrever as personagens com o maior nível de detalhamento possível para poder registrar, para o seu personagem, a identidade das pessoas em um outro formato de linguagem.

Identidade. Esse é um dos grandes temas deste livro de Galera - o escritor mais gaúcho dos paulistas. Como sabemos quem somos? Somos identificados com um nome, com um rosto, com um passado, com nossos antepassados, com nossos movimentos, com a nossa formação acadêmica, com nossos gostos, com nossa forma de rezar, com um tique? Esse assunto pode - e deve - ser interpretado por páginas e páginas, com excelentes exemplos do livro.

Vou optar por falar sobre um outro aspecto que também permeia todo o livro, talvez não explicitamente, e que também pode ser vivido fora das páginas do livro. Um assunto que cala mais fundo na minha forma de ver o mundo. Quem é que segura o timão de nossas vidas? Há o livre arbítrio ou estamos todos fadados a seguir adiante um plano desenhado por um Destino?

Peço licença para tergiversar rapidamente. Aos 17 anos, Nietzsche escreveu o seu primeiro texto que pode ser considerado como filosófico. É um ensaio curto que se chama "Fado e História" [daí eu ter usado no parágrafo passado "fadados"]. Como é apresentado, o pequeno artigo vai tratar de uma maneira ainda bastante simples, e sem a raiva dionísica que vai pintar todos os seus futuros escritos, temas que Nietzsche vai pensar a vida toda: religião, doutrina cristã, Deus, moral, eterno retorno etc. Mas como o título adianta, o texto fala muito e principalmente sobre "fado" e "história".
[N]a medida em que o homem é arrastado nos círculos da história universal, surge essa luta da vontade individual com a vontade geral; aqui se insinua este problema infinitamente importante, a questão do direito do indivíduo ao povo, do povo à humanidade, da humanidade ao mundo; aqui se acha também a relação fundamental entre fado e história. A mais elevada concepção da história universal é impossível para o homem; mas o grande historiador, tal como o grande filósofo, torna-se profeta; pois ambos fazem abstração dos círculos interiores para os exteriores.
Para logo em seguida perguntar: "Não nos vem tudo ao encontro no espelho de nossa personalidade?"

É, como se percebe, a discussão entre livre arbítrio e destino. Ou, como uma personagem importantíssima, mas praticamente ausente, fala no finzinho do livro de Galera: "Ou existe livre-arbítrio ou não existe. Se o ser humano é um agente livre, se temos escolhas, podemos ser responsabilizados. Se não existe, se o universo é predeterminado pelas leis da natureza e tudo não passa do resultado do que aconteceu logo antes, aí ninguém tem culpa do que faz. Nem rancor nem perdão fazem sentido."

A resposta do protagonista, que se acha um inculto nadador, é digna deste jovem Nietzsche: "Quero dizer que as duas alternativas me parecem erradas. Ou as duas tão certas ao mesmo tempo. Duas respostas certas pra pergunta errada." E umas linhas abaixo: "Sei que não existe escolha e que mesmo assim a gente precisa viver como se existisse. Só isso."

As palavras parecem complementar as do filósofo ainda imberbe: "A vontade livre aparece como aquilo sem vínculos, arbitrário: é o infinitamente livre e errante, o espírito. O fado, porém, é uma necessidade, se não quisermos acreditar que a história do mundo é um sonho incerto, as indizíveis dores da humanidade são invenções, e nós mesmos joguetes de nossas fantasias. Fado é a infindável força de resistência contra a livre vontade; livre vontade sem fado é tão pouco concebível como espírito sem real, bem sem mal. Pois só a oposição cria o atributo...".

O que ambos estão demonstrando em seus discursos é a inocência que é pensar a vida apenas como títeres de um grande arquiteto do mundo, de um escritor cansado que já escreveu o épico de nossas vidas e que agora assiste a tudo deitado no seu sofá, entediado. Porém, não há como trazer para o homem, esse homem comum, de todos os sexos, o poder de todas as decisões, porque há limites claros entre o que ele pode e o que ele não consegue fazer. Pensar que o homem substituiu Deus em seus atributos é levar a vida seguindo a ideologia da Xuxa, quando ela afirmava que "querer é poder". O que não é nem aconselhável, quiçá desejável.

Os dois também estão dizendo que há uma combinação, que pode ser vista como cruel entre esses dois elementos, mas que deve ser encarada com coragem quase estoica. Mesmo que não tenhamos todas as possibilidades de ação, que sejamos forçados por circunstâncias a tomar determinadas atitudes, devemos encará-las como nossas responsabilidades. Devemos enfrentar suas consequências, não com a culpa cristã que arrasta correntes como assombrações, mas o peito aberto que os mitos gregos enfrentavam sua sina, após terem sido avisados por deuses amoralistas que voltavam para o Olimpo logo em seguida.

Nietzsche diz ainda da necessidade de ligação entre esses dois elementos, em como só haveria a possibilidade de existência com os dois elementos. Na ausência de um, o outro também pereceria, e na ausência de ambos [caso isso fosse possível], provavelmente - e agora especulo - ambos renasceriam com outro formato, outro nome.
Na livre vontade está para o indivíduo o princípio da singularização, da separação do todo, da absoluta irrestrição; mas o fado torna a colocar o homem em ligação orgânica com a evolução geral, e o obriga, na medida em que busca dominá-lo, ao livre desenvolvimento de forças contrárias; a livre vontade absoluta, sem fado, transformaria o homem em Deus, o princípio fatalista em um autômato.
Em última análise, sempre temos escolhas. Mas nem sempre as escolhas foram escolhidas por nós mesmos. Mesmo em um restaurante de prato único, pode escolher não comer nada. Mas como Nietzsche - esse já o maduro e bigodudo de "Genealogia da moral" - diz, "o homem preferirá ainda querer o nada a nada querer...".

O livro de Galera sugere, talvez de uma maneira muito fatalista, que sempre estamos no meio do nosso devir rumo a um futuro possível, quase provável, e que nos traz, vez por outra apenas, a possibilidade de nos surpreender. Mas diferente de se colocar como vítima de um mundo cruel que só trouxe opções negativas, o protagonista sugere abraçar o seu fado, como abraçou o seu passado, que o constrói. Talvez demonstrando que entre o instantâneo presente, o futuro imaginado e o passado que se apaga com os rostos, há uma ligação mais forte que podemos apreender cotidianamente em nossa pobre e limitada linguagem.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Contra a ironia

O autor de um enunciado irônico se distancia daquilo que ele mesmo diz, no ato de dizê-lo. Pense numa discussão em que alguém, em vez de argumentar a favor ou contra os diferentes pontos de vista, apenas ironize aquilo que é dito. De certo modo, essa pessoa não está apenas se colocando fora da discussão, pairando acima da disputa como se fosse superior a ela, mas também permanece fora das próprias frases que pronuncia, pois é impossível saber aquilo que ela realmente pensa sobre o que é dito. Enquanto quem argumenta de alguma forma se coloca no que diz, pois a frase define sua posição diante do assunto, quem ironiza se mantém numa zona difusa. Ainda que a ironia sugira que o que é dito não é aquilo que se pensa ou quer dizer, isso que é dito tampouco é diretamente refutado. A ironia não estabelece argumentos, mas sim um jogo, no qual as posições mais distintas (e duras) são transformadas numa matéria maleável, a ser manipulada livremente.   
Para Foster Wallace, o deslizamento irônico no limite inviabiliza qualquer relação humana significativa, porque as pessoas se manteriam guardadas, protegidas, em alguma medida de fora ou acima do que dizem, fazem, são. Ao não se comprometer com nada, a não ser com o próprio movimento, a ironia acabaria por reiterar uma lógica de consumo superficial, tratando o diverso como igual, fazendo de tudo uma matéria comum e descartável, mero pretexto para a paródia e o escárnio.
 Miguel Conde, escrevendo sobre um dos pontos que mais me interessa em David Foster Wallace.

The happiness of being sad, by Louis C.K.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Beatriz Sarlo, Borges e os russos

Talvez tenha sido coincidência, uma série de acontecimentos que levou à crítica cultural argentina - apresentada como a maior intelectual latino-americana - Beatriz Sarlo ficar conosco durante tanto tempo. Para falar a verdade, não foi tanto tempo assim. Apenas um dia e meio, mas foi intenso. Tivemos ao menos três conversas longas, inclusive uma grande entrevista que vai sair na "Revista de História da Biblioteca Nacional" em algum momento. E falamos de muitos assuntos: Brasil contemporâneo, mercado editorial, racismo, música, Vinicius, subjetividade, cinema argentino independente, Lula, Antônio Candido, história, literatura e, claro, Borges.

Sarlo é autora de Borges, un escritor en las orillas, um livro em que ela mostra todo o caráter argentino do escritor que é muito conhecido pelo seu cosmopolitismo. Em um grande resumo, ela explica que Borges consegue criar uma chave de interpretação para o seu país - mais ou menos como Roberto Schwarz, de quem ela é muito amiga, fez com Machado de Assis em Um mestre na periferia do capitalismo.

Isso a catapulta à maior conhecedora / especialista de Borges do mundo? Improvável saber. Não há uma escala para medir isso. De toda forma, ela é a mais famosa pensadora argentina, abordando um dos principais temas da Argentina. Porque, como ela diz, "nenhum argentino chega a Borges", ele já está lá. Daí, pudemos conversar vários aspectos borgianos, mas um, que sempre me intrigou, foi o principal para mim.

É curioso que um escritor onívoro como Borges tenha deixado de lado toda uma tradição literária importante, como é inegavelmente a russa. Não há em seus comentários quase nenhuma citação a Dostoiévski. Nunca li nada dele sobre Tolstói, ou mesmo Tchekhov - outro contista como Borges.

"No conjunto de livros de Borges que está na Biblioteca Nacional da Argentina", contou Beatriz, "Só há um livro de Dostoiévski, com poucas anotações, e um de Tolstói, com nenhuma marcação. Nada de Tcheckhov", diz ela, lembrando que Borges gostava de escrever, com a sua letra miúda, nos livros que lia.

Sempre interpretei essa aversão de Borges pelos russos - aversão que me influenciou bastante - como uma diferença de temperamento. Borges, muito influenciado pelos pragmáticos e aventureiros anglo-saxões, não teria muita paciência com os sofredores e profundos eslavos. Era uma questão de gosto, simplesmente. Beatriz confirmou.

"Alguns contos de Dostoiévski, porém, eu acredito que ele poderia gostar, se tivesse lido", explicou ela, deixando claro que eram contos específicos. "Mas eles não estavam traduzidos quando ele estava vivo ainda." E foi então que ela contou algo que eu senti com bastante similaridade: a tradução antiga para o espanhol, via o francês, era horrível. Pomposa, exageradamente barroca. Açucarava o que não precisava de doçura. Mais ou menos o que havia no Brasil, antes da razoavelmente recente onda de traduções direta do russo aqui.

Beatriz contou que ela mesma só entendeu Dostoiévski quando leu uma tradução feita por uma russa-alemã que nasceu na pátria de Fiódor e cresceu na de Goethe e que, segundo ela, é excelente. Borges, que lia em alemão, também não teve a sorte de ter essas traduções. Dei mole e não anotei o nome da senhora tradutora que fez o milagre, mas segundo Beatriz, que aprendeu o alemão com quase 60 anos, vale a pena encarar mais uma língua, e logo que língua!, para ler essas traduções.

Ano que vem, Beatriz, ano que vem.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Subjetividade

De posse da ideia de que vivemos em um mundo cada vez mais ególatra, o escritor decidiu botar no papel um conto que não passasse por ele, que não fosse, em nenhum momento, uma descrição de sua subjetividade. Escolheu, para começar, escrever na terceira pessoa do singular. Usar o divino e impessoal “ele”. Ou seria melhor “ela”, já que ele é homem – assim como seria o personagem? Sentiu a primeira dificuldade, porque não se sentia à vontade para escrever sobre uma mulher, exatamente porque não era uma mulher e porque, então, não sabia muito bem como as mulheres se comportam. Mas imaginou que a proposta era, por isso mesmo, escolher algo que não fosse ele. O caminho a trilhar seria obviamente desconfortável. Seria, pois, mesmo já se contrariando, e inseguro, uma mulher.

Uma mulher. Nova? Velha? Não poderia ser da sua idade, essa idade mediana, medíocre, que todo mundo hoje em dia tem, os 30 e poucos anos. Mais nova, então? Mais nova e mostrar os novos desafios enfrentados pela geração anterior a ele, que não são exatamente àqueles que ele enfrentou. Mas seriam assim tão diferentes? Será que as pessoas – meninos e meninas de 20 e poucos – são mais seguros do que ele foi? Será que eles têm mais certezas, vislumbram objetivos mais claramente? Ou será que ele – e toda a sua geração – já demonstrava claramente o abismo que a geração seguinte iria se meter. Ou ainda: não seriam essas as dúvidas de todo mundo quando passa por essa fase da vida?

Por que não, então, uma garota de 15 anos? – mas e qual seria o dilema dessa menina? Há a necessidade de se saber algo para poder se escrever uma história. Ou a proposta aqui é exatamente isso, não saber nada? Ele pensou também em uma senhora de 70 anos, mas então ele já imaginou toda uma vida para ela, culminando numa reflexão do passado. Menina de 15 anos, então. E um calafrio já passa por sua espinha, dessa personagem que ele não tem ideia de quem seja, mas que vai se construindo de uma maneira completamente diferente do que ele é. Mas isso vai ficar artificial? – se pergunta, e não sabe responder. Lembra-se que não tem qualquer controle sobre as reações.

Chegou a pensar em profissões. Qual seria a profissão dessa personagem. Luana, aparece em sua cabeça um nome. Por que Luana? Porque ela seria muito sonhadora. [E então passa por sua cabeça todas as luanas que ele conheceu, e o que elas vão pensar caso leiam isso, e se elas vão imaginar que foram inspiradas nela, ou foi uma espécie de homenagem, ou, ainda, gente que conhece uma luana e que conhece o autor dessas linhas, e tentar traçar paralelos, quando na verdade foi só e apenas um nome que surgiu sozinho, explodindo no meio da cabeça dele, mais nada.] Mas sendo sonhadora, ela pensaria mais em si do que num conjunto, não? Ou não: isso não teria qualquer relação, o ato de pensar e o ato de ser egoísta ou altruísta – altruísta não é uma boa palavra. Não é exatamente altruísmo. O ato de fazer, agir apenas em prol dos outros, dizem, nem existe verdadeiramente, já que todo ato altruísta seria no fundo egoísta, porque o prazer proporcionado aos outros daria o prazer para quem praticou tal ato. Mas não é isso. É uma necessidade de não guiar a vida nem essa narrativa por um sentimento isolado, único, que divide o mundo entre eles e “eu”. Uma proposta que houvesse um sentimento em comum – não comunismo, no seu sentido mais comum, mas algo que ultrapasse o indivíduo. Transcendesse a simples pessoa, a física.

Luana – o que Luana quer ser quando crescer? Qual é o seu sonho? Ela já tem angústias de futuro? Ela se deprime em relação aos problemas do mundo? É possível viver sem ignorar, em alguma parcela, todas as tragédias do universo? É possível viver apenas para o mundo?

Nesse momento o escritor pensa que essa sua proposta de fazer algo completamente antissubjetivo [o que não é exatamente um sinônimo de “objetivo”, ele faz questão de frisar, assim como egoísmo e altruísmo não são antônimos] seria só uma forma de aprofundar sua neurose obsessiva. Sua vontade de controlar todos os movimentos, de criar um mundo próprio em que ele, ao fim, seria uma espécie de Deus, que ditasse as regras. Ser igual a ele, ou o completo inverso, ambos os lados demonstrariam não a “Verdade” das questões que ele quer levantar, mas apenas suas neurose, que tem a mania de controlar todos os seus passos, como um anti-herói  [no sentido de ser o oposto do herói] psíquico, que dita as regras tal um ditador.

Contadora, Luana gostaria de ser uma contadora. Qual é a profissão mais sem glamour que existe? A profissão que só existe em função dos outros e que você nunca terá o papel principal? Já se falou muito sobre vendedores de seguros, engenheiros e toda uma gama de profissões exatas que não são valorizadas num momento em que todo mundo é artista, do designer ao mestre cuca, passando por traficantes de drogas. Um contador jamais será artista. Um contador é o apagar de sua vontade em função de um bem maior. É fazer só o trabalho chato. É pensar no todo, jamais em si, apenas. Mas aí ele lembrou que seu pai fora contador. Seria uma forma de falar de si disfarçadamente? Ele lembra que jamais escreveu sobre o pai. Não tem muita memória sobre ele. Continua ou não continua a pensar – e escrever, ato contínuo, automático – no pai? Não pode. Regras são regras. São obsessivamente regras. Há limites, mesmo auto-impostos, e que não devem ser quebradas. Por quê?, se pergunta e não sabe responder.

Já titubeia. Tem a certeza de que não há a possibilidade de se escapar do subjetivismo. Mesmo quando se opta por falar de assuntos que são aparentemente diversos da sua vida, eles são, também, sua vida. De alguma maneira bem estranha.

Luana vai ser sensitiva. Viajar no tempo. Quer ser astronauta. Não, astronauta, não, porque ela se tornaria famosa, “artista”. Ela viaja no tempo mas não pode falar com ninguém sobre isso. Ela é mutante? Estou escrevendo uma história dos X-men?, se pergunta o escritor. E logo em seguida se lembra de como já tinha ouvido essa indicação de como ele deveria parar de escrever sobre o próprio umbigo.

Aliás: deve-se publicar? Melhor que publicar: deve-se publicizar? Não estamos falando sobre uma editor, um livro ou uma revista, mas colocar em seu blog. Mas isso não é uma forma de promover o ego, tentar ser alimentado por uma curtida virtual, saber que ele não está sozinho de alguma maneira? Mas se isolar num mundo, perdido, quieto, também não é se prender numa jaula desnecessariamente?

Seria a resposta uma tentativa de se impor, com todos os mecanismos que se encontra, que se tem à mão, então? Ou seja, colocar sua subjetividade sobre a dos outros? Não, ele duvida. Há um limite, há uma barreira que é a da convivência. Vivemos em uma sociedade e, enquanto tal, temos que respeitar certas regras. Para o bem de todos.

Lembra-se de quando fez uma viagem para uma terra exótica – e evita colocar o nome da terra exótica porque não quer se expor e então se pergunta se esse seria o limite da subjetividade, quando não se sabe mais onde fica a divisão entre o que você quer mostrar e o que você não quer – e se pergunta, confuso, ainda tentando salvar o experimento, se Luana gostaria de viajar – e não consegue responder porque Luana é uma menina que ele não conhece, mas que ele pode conhecer, ele se responde e percebe que já há um diálogo dentro de sua cabeça entre dois personagens diferentes que não concordam em quase nada, e que, de uma maneira binária controlam sua vida. Luana gosta de viajar. Mas isso é o inverso do que ele poderia esperar de uma menina que quer ser contadora. Ela quer ser contadora ou apenas é uma solução que ela acha que é mais fácil? Luana quer sobreviver e acredita que é mais fácil estudar contabilidade, ou sonha – sonha! – em ser contadora? Ninguém sonha em ser contadora. Ou sonha? O ato de sonhar, nesse caso, não seria um correlato para almejar e, aí, seria uma forma de egoísmo, fantasiado de altruísmo, como pensamos?

Ele lembrou novamente da terra exótica. Leu o início do parágrafo anterior e teve vontade de falar sobre a terra exótica novamente, mostrar que o “amor”, ou como quer que se chame os sentimentos com conexões mais fortes, as sensações mais eternas, as ligações feitas com adamantium [só para ficar no campo semântico mutante], são aquelas em que há a necessidade de se abrir mão de si, em algum grau, não em todo, em prol do outro – e esse outro não precisa ser outra pessoa. Pode ser essa terra exótica, um trabalho, um esforço.

Claro que isso não é uma regra. Não é apenas abrir mão de si, e sempre. Deve haver algum tipo de recompensa. Esse objeto pelo qual vamos abrir mão deve nos dar algo que queremos muito. Mas devemos ter que lutar, ultrapassar algum obstáculo que parecia intransponível em outros níveis. E não pode ser eterno, também, esse abrir-mão, muito menos essa atitude deve ser profundamente irremediável. O “eu”, a subjetividade, vai arranjar um jeito de gritar. Se pisarmos muito em nós mesmos, mesmo que o “outro” nos dê – continue a nos dar – aquilo que queremos, mesmo assim, se não dermos espaço para nós mesmos respirarmos, algo escapole. Salta num escuro e fica ali. Mesmo que não se locomova, mesmo que não saiba como agir, como se movimentar nesse mundo novo, ficamos ali, parados. Perdidos. Mas o “eu” se mostra. Isso não há como negar.

O “eu” não tem todas as respostas. Nem “o outro”. Nem a soma das duas coisas. Não há no mundo respostas o suficiente para tantas perguntas que se faz. As perguntas se amontoam, enquanto as respostas vão aos poucos, como num modelo de chave e fechadura, se encaixando. O processo é lento e deve-se ter paciência.

Luana é católica, devota de são Francisco de Assis. Ela tem um gato e dois cachorros. Pensou em ser veterinária, mas nunca suportou ver sangue. Como o escritor. A oração que ela mais gosta, ela pensa que é de são Francisco de Assis, naquela passagem em que ele fala “Ó Mestre / fazei que eu procure mais / consolar, que ser consolado / compreender, que ser compreendido / amar, que ser amado / Pois é dando, que se recebe / Perdoando, que se é perdoado “. O escritor não entende muito bem isso. Exatamente por isso escolheu essa passagem. Ele – que é ateu – prefere uma outra oração, de quem ele não sabe bem a autoria, nem as próprias palavras. A oração pede sabedoria, para três atitudes: consertar o que pode ser consertado; aguentar o que não pode ser consertado; saber a diferença entre ambos. Sabedoria. É o que nós aprendemos da vida.

domingo, 15 de setembro de 2013

A música, a maior das artes

Mas por que a música? Por que a música é considerada por muita gente como a forma de arte mais importante? Bem, vou tentar dar a explicação do Schopenhauer, que eu acho interessante.

Tá meio desanimado, Schop?
Antes, porém, temos que lembrar que a definição de arte - e todas as suas subdivisões - é das coisas mais complicadas de se fazer. Então dizer o que seria arte e, dentro disso, o que seria a música, e o que caracterizaria de arte uma música é um trabalho praticamente infinito. Daí, vamos deixar isso como dado e passar à frente.

Voltando a Schopenhauer. A mais famosa e importante obra do alemão, como se sabe, se chama "O mundo como vontade e representação". Grossíssimo modo diríamos que ele seguiu a tradição metafísica de Kant, em que divide o mundo em dois aspectos, aquilo que podemos conhecer [no caso, a representação], e o que não temos como conhecer a totalidade [o que Kant chama de coisa-em-si e ele de vontade]. Há diferenças entre os dois aspectos, principalmente porque Schopenhauer tem pitadas de filosofias orientais e volta também a Platão, vez por outra. Mas com isso dá para seguirmos adiante.

Portanto, o mundo é dividido entre as coisas físicas, que são as representações, que, por sua vez, são as representações da vontade dessas coisas. E a vontade é a força interior, a essência, o impulso original de todas as coisas. Pois bem.

Para Schopenhauer, a música é a única entre as artes que não carrega a representação dada a priori. Se pensarmos que estamos falando de uma música orquestral, sem qualquer letra, não temos uma imagem mental com a sequência de acordes. Literatura, artes pictórias, teatro, dança, em tudo há um caráter de representação. Quando escrevemos "amor", pintamos uma rosa, subimos num palco caracterizados de palhaço, executamos uma pirueta, estamos passando uma informação que já tem uma série de informações associadas a ela.

A música, não. Apesar de durante anos ter se pensado que haveria acordes proibidos, ou acordes diabólicos, não há uma ligação entre um determinado trecho de música e um sentimento dado. Não sabemos - e eu não entendo nada de música para saber o tamanho da besteira do que vou falar a seguir - qual é a sensação que um dó seguindo de um si bemol vai causar no ouvinte. Assim, a música seria o mais próximo da vontade, já que ela não precisava ser representada. Era a vontade em seu estado mais próximo do puro.

Talvez hoje, após tantas e tantas avalanches musicais, já tenhamos desenvolvido uma certa memória musical e associemos determinadas músicas a sentimentos específicos. Principalmente depois que as letras se tornaram onipresentes e obrigatórias. Daí, algumas bandas são deprês, outras festinha. Outras são hippies, outras viajandonas. A lista de climas do AllMusic mostra o quão diversos esses sentimentos podem ser. Portanto, talvez, hoje, essa proposta de uma música sem influência não funcione mais.

Mas não é curioso que a música, ainda hoje, seja a parte da arte mais valorizada? Que outra arte tem festivais do tamanho de um Rock in Rio, só para ficar no exemplo mais à mão? Mesmo que as indústrias do cinema e dos jogos eletrônicos sejam maiores, não há qualquer comparação com a adoração que se tem com os astros da música. Uma idolatria que, se me permitem, é quase religiosa.

Além disso, a música não pede licença para contaminar o ouvinte - o que é diverso das outras artes que exigem uma dedicação, mesmo que mínima, do espectador. Quantas e quantas vezes nos pegamos cantarolando uma música que não gostamos oficialmente? E dançando aquela música constrangedora? Ou sendo tomados por uma apresentação que não dávamos nada?

Eu suspeito que a música nos conecta com um pedaço de nós que nem sabíamos que ainda existia. Nos tira de nosso controle mental, abre nossas mais ferrenhas defesas e nos mostra a nós mesmos. Além disso, todas as artes tentam [ou deveriam tentar] voltar ao estado da música. Um poema, uma peça, um quadro, tudo tem que ser ou tender ao musical. Porque, para mim, a música é o estado original de todas as artes.

sábado, 14 de setembro de 2013

E se Nietzsche fosse brasileiro?

Quando eu fazia a pós em arte e filosofia, um professor disse que ele conseguia enxergar a atitude dionisíaca que Nietzsche sugeria no "Nascimento da tragédia" apenas no transe do candomblé e outras religiões de descendência africana. Desde então, fiquei pensando: e se Nietzsche fosse brasileiro? Ou, ao menos, e se ele conhecesse o Brasil?

Acho que Nietzsche torceria pela seleção
A proposta não é tão aleatória como parece [por que Brasil?] nem ufanista [E daí, o Brasil?] como parece. Além disso, Nietzsche só é o que foi porque ele seguiu o caminho que seguiu. Mas podemos brincar de especular, que não faz mal a ninguém.

Para início de conversa, temos que lembrar que sua irmã veio para o Paraguai, junto com o marido, na tentativa de fundar uma colônia anti-judeus. Ou seja, a América do Sul não era um terreno tão exótico assim para a família de Fritz. Mas, na prática, há uma série de sugestões, coincidências e polêmicas temáticas que poderiam surpreender Nietzsche. A começar pela questão dionisíaca, mesmo.

E não precisamos ir a um terreiro para entender isso, basta pensarmos num carnaval, ou, na época, o protocarnaval. Ou mesmo em qualquer festa, fora dos limites da nobreza, e como nós sabemos bem o que é dionisíaco.

Falando em nobreza, a nossa elite seria um tema de interesse grande para o famoso bigodudo. Ele que defendeu conservadoramente uma escravidão nos moldes [idealizado por ele] dos gregos, para que os aristocratas pudessem criar, ficaria chocado e provavelmente decepcionado com a nossa camada superior da sociedade que, durante anos manteve oficialmente uma parcela enorme da população em condições desumanas, não criou nenhuma "Odisseia" ou formou um Heráclito.

Aliás, Nietzsche que falou sobre a "besta loura", em tom de superioridade, e que dizia que algumas raças são naturalmente mais importantes que outras [repetindo um discurso que, infelizmente, era comum à época, e que agradou tanto a um outro bigode, no século seguinte], ficaria desconcertado ao perceber que a grande maioria dos nossos comportamentos que identificariam o seu ideal dionisíaco estaria relacionado exatamente com a nossa herança africana.

Para citar outro exemplo, e ficamos em um dos seus temas mais caros, lembremos a moral. Somos - nós, brasileiros - pudicos, mas também devassos. Somos, ao mesmo tempo, moralistas, imorais e amorais. Vivemos sob a égide de tradições fortíssimas e, em alguns casos, conflitantes. Acredito que essa nossa relação com as "leis" não escritas do tempo embananaria a cabeça do homem que morreu com a cabeça embananada.

Ou talvez, não. Nada disso importasse para Nietzsche, que tinha uma relação de amor-e-ódio com a sua Alemanha, que estava no processo de se transformar em Alemanha, e não conseguia enxergar nada além de seu país. Vá saber.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Borges: o 'prêmio de loteria que a Argentina ganhou'

A sociologia vem depois. Creio que as causalidades e as coincidências são as coisas mais interessantes que existem no plano da cultura. Porque, seguramente, a deusa Fortuna observou com um olho onde estava deixando cair esse personagem. Mas ele poderia ter nascido no México, por que não? Borges caracteriza-se por incorporar a tensão entre o local e o universal; no México há escritores como Octavio Paz que têm esse mesmo traço. Borges poderia ter sido mexicano, mas, provavelmente, não poderia ter sido de outra nacionalidade. Talvez brasileiro, mas o Brasil já tinha a sua tradição literária. A primeira condição necessária para esses lugares possíveis seria a existência de um campo cultural já complexo, atravessado por uma modernidade triunfante, como pode ter sido o campo em que Borges se inseriu ao voltar da Europa em 1920, no qual as revistas literárias e a vida cultural haviam sido capturadas pela modernidade. Já não era a literatura do século XIX, isso me parece importante. A segunda, uma grande cidade. Entre o que teorizou Simmel e depois Benjamin, existe algo que a grande cidade produz e que está presente em Borges. Não apenas o flâneur, mas o princípio da indeterminação cultural. A mescla de culturas seria a terceira condição. Não me refiro à mescla de culturas autóctones e hispano-americanas, como se vê em Arguedas, caso em que há uma mescla mas não se produz Borges, nem à mescla submetida a uma busca pessoal, do invento ou do capricho, mas sim a algo já dado na sociedade da qual o escritor emerge. Finalmente, uma sociedade muito alfabetizada, porque alguém poderia perguntar: por que não em uma cidade asiática ou africana? Mas aí aparece de novo a questão da modernidade. A sociedade portenha era muito alfabetizada, havia pequenas e grandes editoras, havia jornais. Esses textos que Borges publicava em Crítica, por exemplo, quem podia ler? De todo modo, havia um jornal que considerava importante que Borges estivesse publicando ali. Eram diários modernos, como Crítica ou El Mundo. Isso só poderia ocorrer em sociedades com alfabetização e com público leitor. Essas seriam as condições que propiciaram o seu surgimento, apesar de Borges ser o prêmio de loteria que a Argentina ganhou.
- Beatriz Sarlo, aqui.

A música e a vida estética para Nietzsche

O início da biografia escrita por Rüdiger Safranski sobre Nietzsche é arrebatador:
O verdadeiro mundo é a música. A música é o Inaudito [Ungeheuer]. Quando a ouvimos, pertencemos ao Ser. Assim Nietzsche a vivenciava. Era tudo para ele. Não deveria cessar nunca. Mas ela cessa, e por isso temos o problema de como continuar vivendo quando a música acaba.
O trecho define muito bem a ética de Nietzsche, talvez a única forma de pensar que Nietzsche nunca tenha mudado de posição tão radicalmente. Porque ética, para Nietzsche, sempre foi estética. Viver deveria ser produzir arte. Todo homem deveria ser artista, no sentido dionisíaco do termo. Não quer dizer todo homem deveria ser pintor, escritor ou músico, mas que deveria encarar a vida como uma tela em branco, onde se criaria, com toda a nossa potência.

Monstra Niliaca Parei, que aparece quando fazemos uma
pesquisa sobre Ungeheuer. Mais sobre ela aqui.
Isso demonstra, diferentemente de outros raciocínios, a importância, para Nietzsche, da arte - especialmente, da música e produções correlacionadas. Durante muito tempo, ele, inclusive, a viu metafisicamente, como uma forma de substituto do próprio Deus. Mas o que fica, o que permanece em toda a trajetória de pensamento de Nietzsche, é esse caráter essencial da arte. Como se só se vivesse uma vida boa - ou uma vida completa - quando tivéssemos um caráter artístico na vida.

Há outra passagem em que Safranski descreve bem como, para Nietzsche, a arte seria indispensável, não mero apetrecho:
Sentimos em Nietzsche toda a indignação de uma pessoa para quem estar na arte, especialmente na música, é estar no coração do mundo, que encontra no fascínio da arte o seu verdadeiro Ser, e que por isso luta contra uma tendência para a qual a arte é uma bela coisa secundária, talvez até a mais bela, mas mesmo assim uma trivialidade.
Quando vivemos "artisticamente", podemos enfrentar o abismo que se abre ao fim da execução da música. Ao completo sem sentido da vivência. Esse é um dos motivos que faz Nietzsche gostar das grandes tragédias, principalmente nas peças operísticas de Wagner. A tragédia o agrada exatamente porque tem um grau alto de aleatoriedade, não tem muita razão de ser. Em outras palavras, mostra a força inexorável do destino, que arrasta os homens independentemente das suas forças de vontade.

A tragédia seria a única forma artística que conseguiria se equivaler à vida. Não porque a vida seria trágica, no sentido de que a palavra tomou, de cruel, mas porque a vida também não é regida por qualquer lei, seja causalidade ou a de um Deus onipotente.

Me diga que você não entende o que Nietzsche quer dizer ao fim desse clipe?

Suspeito que uma maneira de entender bem o que Nietzsche quer dizer é pensar na palavra Ungeheuer, que a tradutora traduz por Inaudito (em maiúsculas) talvez para fazer uma relação com a música, já que sua primeira acepção é exatamente o fato de não se escutar. Ela anota, porém, a palavra pode ser traduzida ainda como "monstro", ou "algo extraordinário, incomum, ingente". O próprio inaudito, com a questão de que nunca se ouviu, parece algo espantoso. A música, e a vida, é / são espantosa[s].

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Black Blocs, os vilões da vez

Ainda fico surpreso com a vontade de se criar uma divisão entre dois grupos, em qualquer ato, ação, situação política [para ficar num exemplo menor] que participamos. Acho uma simplificação das questões muito grande. Há algumas semanas, o vilão das manifestações pacíficas foi escolhido: os black blocs. São eles que quebram vidraças, destroem lixeiras, cometem "atos de vandalismo".


Gostaria de saber o que caracterizaria um black bloc: há uma carteirinha para dizer quem é ou não? Porque o fato de usar uma máscara preta não deveria ser o suficiente para enquadrá-los, já que todo mundo pode usar uma camisa preta na cara. Além disso, também devemos entender que a proposta dos black blocs é exatamente ser a vanguarda incendiária das manifestações. Não distribuir flores.

Mas, vejamos o que eles, de maneira razoavelmente organizada, têm a dizer em sua página do FB. Das logos do cabeçalho que eu consigo identificar, há várias referências ao anarquismo. Não consigo ser automaticamente contra o tema, como muita gente é, depois de um dossiê inteiro dedicado a ele. Daí, se isso incomoda a algumas pessoas, sugiro ler a revista que, provavelmente, o incômodo vai passar. Fim do jabá.

Outras bandeiras que eles levantam: são contra os policiais [pudera, são os inimigos, numa lógica dicotômica], os neonazistas, e a favor dos bichinhos. Acredito que muita gente que fala contra eles apoiaria essas questões incondicionalmente. Continuemos.

Na primeira página, citam o italiano anarquista Pietro Gori: “Nossa Pátria é o mundo inteiro, nossa Lei é a Liberdade.” Na segunda, Malatesta, outro famoso italiano e anarquista, que é mais claro na explicação: “Anarquista é, por definição, aquele que não quer ser oprimido, nem deseja ser opressor; é aquele que deseja o máximo bem-estar, a máxima liberdade, o máximo desenvolvimento possível para todos os seres humanos.”

Já sabemos que eles são, ou se propõem ser, anarquistas. E que anarquismo, para eles, não é uma bagunça, ou o mundo desorganizado, mas uma sociedade sem barreiras, sem limites pré-estabelecidos e cuja lei se baseia numa independência de ações. Também mostra que eles são contra a opressão em geral, e que pensam em todas as pessoas, de maneira igualitária. Imagino que, com alguns acertos da intensidade, novamente não consigo enxergar muitas pessoas contrárias a isso - talvez, no máximo, achando cinicamente que isso essas utopias são infantis [se esquecendo que as utopias são necessariamente objetivos além de si mesmo, fora do indivíduo]. Seguindo.

Na descrição, eles explicam mais claramente quem são:
Black bloc é o nome dado a uma estratégia de manifestação e protesto anarquista, na qual grupos de afinidade mascarados e vestidos de negro se reúnem com objetivo de protestar em manifestações anti-globalização e/ou anti-capitalistas, conferências de representacionistas entre outras ocasiões, utilizando a propaganda pela ação para questionar o sistema vigente.
Mas por que se vestir de preto [nesse calor!]?
As roupas e máscaras negras que dão nome à estratégia são usadas para dificultar ou mesmo impedir qualquer tipo de identificação pelas autoridades, também com a finalidade de parecer uma única massa imensa, promovendo solidariedade entre seus participantes e criando uma clara presença revolucionária.
E... é verdade, então, que vocês quebram coisas, tipo, vidro de banco, loja da Toulon, etc. É?
Black blocs se diferenciam de outros grupos anti-capitalistas por rotineiramente se utilizarem da destruição da propriedade para trazer atenção para sua oposição contra corporações multinacionais e aos apoios e às vantagens recebidas dos governos ocidentais por essas companhias. 
Ah, então, vocês realmente quebram tudo. São, tipo, uma organização internacional que só querem ver o circo pegar fogo, é isso...
Existe um entendimento, principalmente entre os noticiários das mídias comerciais de massa, que o "black bloc" é uma organização internacional de algum tipo. No entanto, não mais que uma tática utilizada por grupos de manifestantes sem muitas conexões. Existem vários grupos black bloc dentro de uma única manifestação, com diferentes formas e táticas.
Até mesmo entre os BB [como eles acabaram apelidados], há divergências - como em qualquer grupo. Mas, no caso deles, essas diferenças de comportamento são, em vez de escondidas, incentivadas: a intenção é que cada um tenha a liberdade de ação contra o inimigo comum: o Estado repressor, e o seu braço armado, a polícia.

E, vejamos a timeline deles: primeiro um convite para um ato contra a prisão dos administradores da página. Mais que normal pedir para as pessoas para tirarem os companheiros de trás das grades. Um P2 [policial infiltrado] pego em flagrante. Matéria da Folha, sobre o tal PM de Brasília que falou que jogava pimenta porque queria. A divulgação de um seminário sobre anarquismo na Uerj. Frases de Sêneca ["Viver significa lutar"], da poetisa e anarquista francesa Louise Michel [“Não se pode matar a Ideia a tiros de canhão, nem tão pouco acorrentá-la”]. E mais e mais comentários contra a polícia [Lembre-se: a polícia é o inimigo, para eles].

Num apanhado praticamente aleatório [o que prejudica a lisura da pesquisa], não há nenhuma atitude que se possa identificar como "ilegal" - no máximo, a explicação de que eles realmente quebram coisas. Mas, por não ser alvos aleatórios, ganham caráter político, que eles explicam e mostram as razões. As táticas podem ser combatidas, mas eles se diferenciam dos "baderneiros comuns" [se é que essa figura existe], por terem um foco e um objetivo. A sociedade pode tentar entender e aceitar as diferentes exigências dos seus cidadãos, ou simplesmente tratá-los como culpados, criminosos e encarcerá-los. O que tem acontecido.

Dentro do grupo anarquista, há a necessidade de não se ter uma lei que eles devem se comportar. Como visto lá em cima, a única lei é a liberdade - de ação, de pensamento, de vontades. A partir desse raciocínio, vemos que haverá exageros, por parte de alguns. Mas esses exageros são para combater o que eles consideram exageros antigos - o que, para eles, justificaria suas atitudes. Eles combatem a violência com violência. Isso é válido? É bom? É certo? Deixo as respostas para quem quiser responder. A minha opinião final é: os Black blocks são tão vândalos quanto os guerrilheiros das décadas de 1960-70 eram terroristas.

domingo, 8 de setembro de 2013

Corporativismo de todos os lados

Minha timeline ferve todas as vezes que um repórter é expulso das manifestações. Todos [jornalistas] chamando de imbecis [o adjetivo mais leve utilizado] os protestantes que convidam indelicadamente o trabalhador da imprensa, geralmente de uma das grandes empresas, ainda mais comumente da Globo e congêneres, a se retirar do fuzuê. Apesar de achar um absurdo essa proibição do direito de ir e vir, eu fico ainda mais constrangido com os comentários que vejo. Parece corporativismo. E é.


Tentarei me explicar antes que eu perca as amizades [virtuais]. Via de regra, os argumentos utilizados por quem reclama dessa expulsão - quando usa de algum argumento, além do xingamento - é algo como "o fulano estava trabalhando". Ou "ele estava denunciando a violência policial". Ou [o meu preferido] "isso é censura".

Temos que entender que o fato de alguém estar trabalhando não o torna mais especial que nenhuma outra pessoa. Ao contrário. Ele é mais desgraçado porque não tem muito direito a escolha [provavelmente teria preferido ir à praia que estar ali]. Daí, argumentar que ele deveria ser aceito porque não está ali por vontade própria não faz qualquer sentido. É como se fosse um prêmio de consolação. É um argumento que clama por caridade, num lugar onde os ânimos estão bastante exaltados. Não acho que funcione.

Também não adianta dizer que ele - o jornalista expulso - estava do lado certo: em vez de denunciar as quebradeiras dos black blocks [por exemplo], estava mostrando o poliça sádico que diz que gosta mesmo de bater nos manifestantes. Naquele momento, o jornalista-expulso não representa ninguém, além da canopla que ele segura. Se ela vier com um globo, em qualquer dos seus formatos, ele será mal-visto.

Essa generalização é certa? Claro que não. Como vimos recentemente no editorial do Globo, que dizia que houve um erro [histórico, não estratégico] em apoiar o golpe de 1964, as Organizações já tiveram dentro de suas redações até comunistas [!]. Mas [e agora quem vai falar não é o jornalista, mas o relações públicas] a imagem da maior empresa de comunicação do Brasil perante uma parcela cada vez maior e representativa da população letrada, classe-média [versão antiga], de ambos os espectros políticos, é péssima. A folha corrida da empresa é longa e as pessoas mais escolarizadas conseguem citar acusações e mais acusações contra o grupo.

Daí, os caras não estão expulsando o fulano-pobre-coitado que segura um microfone [ou um celular, em tempos recentes] com a marca da vênus platinada [sempre detestei esse apelido] e ganha uma mixaria [mesmo] ao fim do mês. Mas a própria coisa-ruim. Ele ali não é apenas um indivíduo, mas uma corporação de quase 100 anos e com muita roupa suja para lavar.

Como essa imagem pode mudar? Como esse ódio - é uma verdadeira raiva! - pode acabar? Certamente não de uma hora para outra. Até lá, os seus funcionários deveriam ganhar insalubridade. É o resultado, suspeito, de ser uma mídia de massa numa época de nichos.

Por fim, dizer que essa expulsão seria censura, pode ser, por mais irônico que pareça, a verdade. Não uma censura do estilo clássico, com um sujeito que lê todo o material antes de ser publicado, mas como um impedimento do ir e vir, que, em tese, está na Constituição e é para todos. Aqueles sujeitos mascarados [as personificações do mal, num duelo dicotômico e simplista entre bem x mal] se auto-outorgaram o poder da força e decidiram quem pode seguir e quem não. Mais ou menos como os traficantes e os milicianos fazem em favelas.

Mas, então, devemos lembrar que o conceito ali não é exatamente a não-divulgação de informações, mas uma tentativa de ataque ao exército do inimigo. Aliás, se há algo que os protestos cada vez mais se parecem é com o formato de uma mini-guerra, em que de um lado ficam as infantarias [os soldados Black Blocks, a inteligência do Anonymous, a comunicação da Mídia Ninja, a organização do Fora do Eixo], e do outro, o poder constitucionalizado, as instituições fixas, tudo o que já há, é ou está. Como sempre, somos pródigos em fla x flus.

Xingar os manifestantes por conta da expulsão de repórteres mostra, a meu ver, um ligeiro desconhecimento das causas mais gerais dos protestos, e de seus atores envolvidos. Além disso, cria uma atmosfera exclusiva, como se os jornalistas fossem melhores, diferentes ou imunes às coisas mundanas [o que não é o caso], como super-heróis de quadrinhos. Assim, fica complicado fazer qualquer crítica aos médicos por conta da vinda dos seus pobres colegas estrangeiros.

Autoficção e a 'abolição da gravidade'

Não é de hoje que se fala em autoficção. Os artistas-escritores sempre usaram suas próprias subjetividades para criar suas obras, mas com a autoficção esse limite, que parecia claro, óbvio [verdade x mentira, ficção x não-ficção], ficou mais esfumaçado, já que um dos recursos é usar a própria vida como "fonte direta", não apenas como inspiração para um retrabalho.

Mas qual seria, então, a diferença para a autobiografia? Seria a autoficção um elemento da chamada metalinguagem, em que se brinca com os códigos dados, o que seria "real" e o que seria "invenção"?

Não creio - apenas nisso. De maneira bastante rasa, poderíamos dizer que o processo da autoficção é exacerbar o elemento "real" na produção de textos literários. Mas é extremamente complicado criar parâmetros para dizer onde começa a ficção, onde se inicia a autoficção e o que é a autobiografia pura. Para isso, deveríamos acreditar na possibilidade de se produzir, criar sem qualquer elemento próprio, sem qualquer inspiração, e, a partir daí, criar parâmetros para delimitar essas fronteiras. Não há essa possibilidade, nem essa régua, que mapeie matematicamente as divisões entre os chamados gêneros. Ainda bem.

Como mais ou menos escreve o professor Gustavo Bernardo em "O livro da metaficção", o mais provável é que, ao escrever, mesmo o mais científico e isolado texto, estivéssemos produzindo só e simplesmente ficção. Os demais nomes aplicados à narrativa são formas de tentar explicar, não nos perder diante de uma avalanche de informação.

Dante e Virgilio no inferno, visto por Delacroix
Dá para perceber, porém, que, se admitirmos essa qualificação como diferencial, a chamada autoficção não foi inventada nesse século, nem no passado. Exemplo maior disso, eu sugeriria, é a "Comédia", de Dante, chamada divina. Antes que receba um apedrejamento em espaço virtual público, meu argumento se baseia no fato de o próprio Dante ter se colocado como personagem do livro que escrevia, mostrando como ele, e não outra pessoa, teve que ir até o inferno por sua Beatrice.

Não que, na dita "vida real", ou em vida, ele tenha passado por purgatório e chegado ao paraíso, mas o fato de se colocar como protagonista, e não outra pessoa, com qualquer nome, dá argumentos para se pensar o quanto não haveria diferença entre a "realidade" e a "ficção", para ele, Dante. Talvez Dante não tenha conhecido os círculos do inferno, mas queria que as pessoas que lessem sua obra achassem isso, achassem que ele tinha ido até as profundezas da vida - e da morte - por amor.

E não é essa a intenção de todo autor, artista, produtor [no sentido grego da palavra poiesis que quer dizer grosso modo "fazer", mas que é a origem de nossa "poesia"]? Dizer que o que ele faz/produz/escreve é a verdade? Ou ainda: não sonha todo artista em atingir, mesmo que momentaneamente, de relance, num lapso, a Verdade?

Outros casos usam de artifício inverso: retratam suas vivências, sem "literatices", mas mudam o nome de seus protagonistas. Penso, principalmente, no pessoal americano da década de 1950-60, como os beatniks, Bukowski, Fante. Na virada do 1990 para o 2000, eles voltaram como referência para um grupo forte influenciado pelo pessoal do Cardoso On Line [mas não somente eles] e que apelidaram essa proposta de autoficção de egotrip. Uma viagem usando o eu como timoneiro, sem muita autocrítica.

Desde então, a autoficção vem aumentando de força representativa. Em 2008-9, o mais famoso livro no Brasil [entre o que seria a alta literatura, apesar de esse nome ser bastante ruim e datado] foi uma autoficção: "O filho eterno", do Cristovão Tezza. Nele, Tezza, sem se autodenominar, fala sobre como foi difícil para ele criar um filho com síndrome de Down. Mais recentemente, esse processo se agudiza com Ricardo Lisias e "O divórcio", cujo título é autoexplicativo. A vida desses escritores é colocada nas suas obras de uma maneira que é interpretada pelo leitor como tendo sido exatamente aquilo que foi, o que eles viveram, sem qualquer acréscimo de outra fonte que não a própria vida.

Não li o segundo livro, mas na obra[-prima] de Tezza há muita divagação, também. Há muita reelaboração, muito fluxo de pensamento. Daí, o limite entre "verdade" e "mentira" sai do âmbito da física para a, com o perdão do trocadilho, metafísica. Não sabemos que o que se está sendo escrito é a verdade ou uma invenção do escritor, retrabalhada posteriormente.

A intenção desse textinho que já se alonga demais não é analisar obra a obra, mas mostrar como essas incidências que cada vez mais se correlacionam podem ser o retrato de uma época em que os nossos parâmetros são apenas e tão somente o "eu". Com o fim de referências fixas externas, com a - como eu escutei recentemente - abolição da gravidade, não há mais uma força que força a todos, igualmente.

Há um cenário em que as pessoas são incentivadas a se mostrarem, mais e mais, e outras pessoas, como espectadores de um big brother da vida real, assistem a tudo, para poder criar seus próprios parâmetros, avaliar, a partir de outras e semelhantes experiências formas como lidar com cada uma das suas próprias decisões.

Claro que nem sempre isso é consciente e há muito de voyeurismo barato, principalmente se considerarmos a proliferação do mercado de fofoca que explora a exibição nos mínimos detalhes de subcelebridades iniciantes. Mas, novamente, estamos aprendendo os limites desse processo.

Talvez, ao descobrir a individualidade do outro acabemos descobrindo a nossa própria, num processo curioso em que a alteridade se transforma, de uma maneira estranha, em transcendência. Você também é parte do outro, assim como o outro também te constitui. Mas isso é só uma hipótese que acaba de me ocorrer.

O que podemos sugerir com um grau forte de certeza é que nenhuma outra literatura representa tão bem o nosso momento histórico quanto a autoficção. O "eu" finalmente ganhou.