Querer no pretérito imperfeito
Ao rodar mais uma vez meu copo de cerveja e olhar adiante eu tive a certeza de que deveria ir embora. Ninguém no raio de poucos metros era conhecido. As pessoas dançavam e eu queria apenas a menina por quem eu sonhei minha vida inteira, sem mesmo saber disso. Crítico como eu sou, havia analisado cada detalhe das faces sorridentes que desfilavam sem perceber que o faziam. Eu, ácido, eu, poço de ressentimento, não queria, não me deixava me conectar, me contaminar por essa felicidade sem motivo. Queria as coisas da maneira como havia planejado. E se elas não saíssem conforme o plano, o errado seria o mundo, não eu. Pode até parecer pretensão, e é. Nunca havia admitido isso para ninguém. Talvez eu me ache o suficiente. Talvez a minha intenção seja a de ser deus, como já disse Fellini. Talvez seja esse o motivo que goste tanto desse lugar aqui, onde eu domino todas as personagens, e todos têm os gostos e gestos que eu queria que eles tivessem. Isso – as somas dessas informações – é um pouco doentio, já que essa idéia é impossível. O provável é uma série de decepções em seqüência. E como eu detesto me decepcionar... Por isso, eu já creio que o normal, o meu normal, é a infelicidade, ou o inverso da felicidade – que podem ser coisas diferentes. E fico tentando me convencer que há gente solar e lunar no mundo, e eu faria parte do segundo grupo. Não consigo elucidar se esse meu raciocínio está correto, e é improvável que consiga. Mas a questão fica: se eu agisse menos preocupado com a perfeição, ou com a perfeição de acordo com os meus pensamentos, com o que eu acho perfeição, será que essa tristeza, tão minha companheira dos últimos tempos, será que ela iria embora? As respostas, quaisquer que sejam, são meros exercícios de especulação. A tentativa é um caminho saudável. O modo, o jeito, a forma como isso pode ser feito, já não sei. Tenho medo de criar artificialmente uma felicidade, daquelas que seguem normas, padrões, ou que podem ser compradas dentro de frascos ou no shopping center. O meu intuito final é ser um ser vazio, livre de pré-conceitos e verdades pré-estabelecidas. Mas como desejar algo que de antemão eu sei que será ruim? Como ansiar por uma festa de natal, por exemplo, lotada de pessoas que mal conheço e que se acham no direito de me chamar de família? Como ficar feliz com isso? Eu dou dicas, explicito o que acredito para que tudo se torne menos doloroso, ou demonstro o que estou sentindo para alguém me ajudar, mas ninguém vê, ou ninguém quer enxergar – o que, de acordo com o clichê, é mais viável.
Na festa todos haviam tentado. Eu nem isso. Não queria me dar a chance de um sorriso escapar sem querer, de uma alegria brotar sem que eu percebesse. Eu queria manter-me com os pés dentro da lama, queria piorar o meu aspecto, se me molhasse com a chuva, enquanto tentasse pegar um ônibus de volta, melhor. Queria chafurdar dentro de uma agonia que eu achava genuína. Que eu não conseguia nem consigo descobrir a origem, porque não tinha, nem tenho a intenção. O meu fim, e talvez seja essa a minha maior descoberta, era me mostrar um ser superior, não compatível com esses valores tão pequenos. Tão cotidianos, tão crônicas da vida privada. Em meus sonhos, e em meus desesperos, só as grandes questões são importantes. Pequenezas devem permanecer à distância. Num lugar seguro, sem que eu saiba da existência, para não atrapalhar nas minhas elucubrações sobre as grandes questões da vida. (Aliás, quando é que eu penso nas grandes questões?)
Fugi porque não queria aceitar a minha incompatibilidade entre o que eu via como mediocridade e a minha própria. Não queria demonstrar que era incapaz de ter qualquer emoção de verdade, daquelas que simplesmente brotam. Inclusive, eram exatamente essas que eu queria afogar, assassinar cruelmente, com requintes de terror. Não quero cair numa espécie de auto-ajuda pelo inverso. Nem transformar isso numa música do Travis e perguntar por que é que sempre chove em cima de mim. O que eu quero é apenas entender, tentar trilhar um caminho para o vazio de sentimentos anteriores. Desejo apenas não saber o que vai acontecer, ou imaginar todas as possibilidades, antes de tudo ocorrer. Tenho a intenção de nem planejar fugas espetaculares, nem conceber dias seguintes. Não quero mais encarar o futuro como algo possível.
Então desci as escadas, com o ego ferido, pensando em como é que essas pessoas podem se divertir com isso, quando o errado era exatamente aquele que ia embora naquele momento, sem nenhum porquê especial. Não havia motivos para não gostar. Todos os detalhes da festa funcionavam à perfeição, os pequenos erros já tinham sido consertados, havia piadas, e até uma empolgação incipiente. Eu não entrei naquele clima porque tinha recusado antes mesmo do convite. E nem tentei lutar contrariamente.
quinta-feira, 23 de dezembro de 2004
sexta-feira, 17 de dezembro de 2004
Pseudices
“Num tempo como o nosso, em que até parte da imprensa se compraz em ouvir o que sempre ouviu, em que predomina no público um desalentador conservadorismo estético, esta atitude é, por si só, uma ode à cultura alternativa.”
Arthur Dapieve, em Nomínimo, sobre o lançamento do livro “Rio Fanzine – 18 anos de cultura alternativa”.
De vez em quando, paro a me perguntar se não seria eu o errado. Por que ter uma necessidade de prazeres que não tenham unicamente a intenção catártica? Por que não querer ir a um ambiente onde as pessoas se comprazem e se felicitam apenas por estar dentro do grupo, pulando ao som de algo hipnótico? Por que ter a intenção de racionalizar toda a produção cultural, tentando classificá-la dentro de algumas opções estéticas?
Talvez nossa era seja realmente a que menos se importe com o raciocínio, quando falamos de cultura. “Não é comigo”, “Sou eclético”, “Não estou indo lá para isso mesmo”, são respostas para uma pergunta simples sobre qual é a música que toca dentro de determinado ambiente. E isso se repete com relação a filmes, livros e tudo mais que nos rodeia. A cultura se transformou num passatempo, e como a idéia sugere, algo apenas para preencher um vazio numa estante temporal. Qualquer tipo de resposta em contrário é visto com desconfiança.
Há até um apelido carinhoso para essas pessoas que queremos pensar alguma coisa sobre o que escutamos, lemos, assistimos: pseudo-intelectual. Veríssimo escreveu uma crônica na década de 70 na tentativa de descrever o tal “intelectual”, termo do qual se originou o atual. Ele brincava que tal figura deveria usar óculos, andar com um livro grosso debaixo do braço e ter opiniões sobre todos os assuntos. Quase uma caricatura. No caso do “pseudo” a situação piora, já que ele realmente só precisa do formato, o conteúdo inexistiria. Já através da aparência o sujeito passaria uma idéia de inteligente – o que seria a sua intenção única.
O mais provável é que os “pseudões” estejam enganados realmente. A forma de prazer que eles pregam não condiz com a época em que vivem. Aliás, nunca houve uma época em que se valorizasse um estudo de cultura, mesmo que informal, se pensarmos na sociedade como um todo. Poderia haver grupos isolados onde era permitido comentar sobre esses motes, mas o bojo da população sempre foi, por natureza ou necessidade, alienada, no sentido mais antiquado que a palavra pode ter.
O que acontece agora é apenas uma adequação ao todo por parte daqueles que teriam a possibilidade de querer mais. Como se houvesse uma valorização de uma cultura popularesca. Os motivos não me cabe decifrar.
No filme “Os Incríveis”, há um diálogo interessante entre os protagonistas que pode iluminar alguma coisa por esses lados: Beto Pêra – o ex-Sr. Incrível – pergunta para a mulher por que ele não pode fugir da mediocridade, por que deve se acostumar com o mínimo, se contentar com o comum, invejar apenas o raso. A mulher responde que eles não devem chamar a atenção.
“Num tempo como o nosso, em que até parte da imprensa se compraz em ouvir o que sempre ouviu, em que predomina no público um desalentador conservadorismo estético, esta atitude é, por si só, uma ode à cultura alternativa.”
Arthur Dapieve, em Nomínimo, sobre o lançamento do livro “Rio Fanzine – 18 anos de cultura alternativa”.
De vez em quando, paro a me perguntar se não seria eu o errado. Por que ter uma necessidade de prazeres que não tenham unicamente a intenção catártica? Por que não querer ir a um ambiente onde as pessoas se comprazem e se felicitam apenas por estar dentro do grupo, pulando ao som de algo hipnótico? Por que ter a intenção de racionalizar toda a produção cultural, tentando classificá-la dentro de algumas opções estéticas?
Talvez nossa era seja realmente a que menos se importe com o raciocínio, quando falamos de cultura. “Não é comigo”, “Sou eclético”, “Não estou indo lá para isso mesmo”, são respostas para uma pergunta simples sobre qual é a música que toca dentro de determinado ambiente. E isso se repete com relação a filmes, livros e tudo mais que nos rodeia. A cultura se transformou num passatempo, e como a idéia sugere, algo apenas para preencher um vazio numa estante temporal. Qualquer tipo de resposta em contrário é visto com desconfiança.
Há até um apelido carinhoso para essas pessoas que queremos pensar alguma coisa sobre o que escutamos, lemos, assistimos: pseudo-intelectual. Veríssimo escreveu uma crônica na década de 70 na tentativa de descrever o tal “intelectual”, termo do qual se originou o atual. Ele brincava que tal figura deveria usar óculos, andar com um livro grosso debaixo do braço e ter opiniões sobre todos os assuntos. Quase uma caricatura. No caso do “pseudo” a situação piora, já que ele realmente só precisa do formato, o conteúdo inexistiria. Já através da aparência o sujeito passaria uma idéia de inteligente – o que seria a sua intenção única.
O mais provável é que os “pseudões” estejam enganados realmente. A forma de prazer que eles pregam não condiz com a época em que vivem. Aliás, nunca houve uma época em que se valorizasse um estudo de cultura, mesmo que informal, se pensarmos na sociedade como um todo. Poderia haver grupos isolados onde era permitido comentar sobre esses motes, mas o bojo da população sempre foi, por natureza ou necessidade, alienada, no sentido mais antiquado que a palavra pode ter.
O que acontece agora é apenas uma adequação ao todo por parte daqueles que teriam a possibilidade de querer mais. Como se houvesse uma valorização de uma cultura popularesca. Os motivos não me cabe decifrar.
No filme “Os Incríveis”, há um diálogo interessante entre os protagonistas que pode iluminar alguma coisa por esses lados: Beto Pêra – o ex-Sr. Incrível – pergunta para a mulher por que ele não pode fugir da mediocridade, por que deve se acostumar com o mínimo, se contentar com o comum, invejar apenas o raso. A mulher responde que eles não devem chamar a atenção.
quarta-feira, 15 de dezembro de 2004
Garotos
Quando abri a porta na manhã seguinte, os olhos vermelhos, o corpo com cheiro de outro corpo feminino, e observei a minha mãe deitada no sofá, também acordada, fiquei sem palavras. Tinha 16 anos e não sabia por onde começar a história. Era a primeira vez que passava a noite fora de casa. Não creio ter ainda a maturidade para contar todos os detalhes que houve naquela noite. Faço deste texto um exercício de confissão, pois.
Era uma quarta-feira ordinária, estávamos, eu e minha mãe, deitados, assistindo à TV na sala, sem maiores preocupações. Com 16 anos a vida pode ser resumida em pouquíssimas frases. O telefone tocou e era um amigo meu, Binho, que morava em frente à minha casa, convidando-me para uma festa da mãe da menina que ele tinha um caso - se é que é possível ter algo entre a seriedade do namoro e a liberdade da noite com alguém de menos de 20 anos. Depois de relutar um pouco, ele me convenceu que deveríamos aproveitar o evento. Sem ter como contra-argumentar, já que não era essa a minha intenção, desci em instantes. Avisei a minha mãe que voltaria em breve, e creio que nasceu daí um dos meus defeitos da noite.
O ambiente era um pequeno terraço, sem nenhum tipo de vista, mas que funcionava OK para o tal churrasco. A aniversariante, Cristina, Cris (ela pediu para chamarem-lhe assim) estava visivelmente transtornada. A menina, sua filha, ainda mais nova que eu, se sentia incomodada com isso. Cris era bonita para a idade. Morena de cabelos cacheados e curtos, que não encostavam nos ombros, os olhos eram negros como petróleo e o corpo ainda não demonstrava sinal dos excessos. Lembro-me dela de quando moravam na mesma vila que um tio meu. Como um conservador que sempre foi, ele se referia a ela como "a puta da casa seis", porque não era casada e mudava de namorado com certa freqüência. Agora, ela caminhava de uma lado para o outro, com um copo sempre pela metade, um cigarro aceso entre o indicador e o médio e a pálpebra no meio dos olhos. E atrás dos amigos da filha, cochichando e perguntando em suas orelhas sobre a hipótese deles dormirem na casa dela. Não entendi muito bem o motivo, mas ela me deixou de fora de seus jogos. Também não fiz nenhum esforço para tentar decifrar essa intenção.
Reparei, só então, numa mulher que me pareceu saída diretamente do sul da Itália: pele e cabelos no mesmo tom castanho claro, olhos verdes, quadril tropical, seios ídem. Ao lado da churrasqueira eu estava junto de Binho, perguntei-lhe quem ela era. Ele me observou com um meio sorriso de ironia, como se eu obviamente soubesse quem era aquela mulher de quase 30 anos - mas que era muito melhor que todas as outras que estavam no terraço naquela noite - porque todo mundo sabia quem ela era, mas eu respondi-lhe que nunca a havia avistado. "Madalena", Binho deixa escorregar seu nome vagarosamente ainda com o meio sorriso e continua, "Madalena de Castro".
Toda a informação que cercava este nome me veio à mente. Todos os homens, os meninos falavam dela, possuíam uma história com ela, algo que gostavam de alardear para quem quisesse escutar. Binho me contara que a encontrara numa festa à fantasia e ela, vestida de She-ra, agarrou-o atrás do balcão das bebidas, no meio de toda a balbúrdia. Conhecia história de familiares, de pais que haviam experimentado Madalena e o diálogo na mesa do jantar girava em torno de uma anedota: "já está na sua geração, meu filho?". O pensamento seguinte que me veio à cabeça era "conheci uma lenda", e em seguida, "quero fazer parte dessa lenda".
Entretanto, não sabia como me aproximar dela. Perguntei ao Binho o que eu deveria fazer, ele me respondeu que nada. Ela escolhia os acompanhantes de sua noite. A imagem batida da viúva-negra apareceu na minha frente. Como se ela se utilizasse dos parceiros durante a noite e, depois de ter sugado por completo as suas vitalidades, jogaria para fora de casa apenas o corpo murcho, sem substância, vazio por completo. De longe, iniciei uma série de olhadelas fixas para ela, queria me fazer perceptível. Em pouco tempo, o meu objetivo estava completo. Aproveitei uma oportunidade em que ela foi pegar uma cerveja perto de mim e imitei-lhe a ação. Ela puxou algum papo. Daí, até o momento em que estávamos nos beijando, não decorreu quase nada. Seguindo um raciocínio que já tinha edificado, pensei que poderia sugerir de irmos para a sua casa, logo, já. Ela me pediu calma.
Toda a bebida da festa acabou e Binho e os outros meninos sugeriram irmos todos a um posto onde poderíamos comprar mais cerveja e ficarmos bebendo. Até aquele momento, Cris, a aniversariante, já havia beijado dois de meus amigos, e continuava cada vez mais fora de si, agindo impulsivamente e sem controle. Fomos todos para a nova parada: eu, um pouco a contragosto, Madalena nitidamente tomando conta de Cris, mas sem aparentar qualquer tipo de autoridade, apenas querendo estar ali caso ela tivesse algum tipo de complicação. Eu insistia que deveríamos ir, agora, para a casa de Madalena, mas ela me pedia, toda delicada, um pouco mais de paciência.
Não conseguia enxergar nada além do meu desejo de comê-la, de ser mais um do grupo, de depois poder narrar como foi a minha experiência, de enumerar as minhas vantagens e detalhar as peculiaridades do encontro. Há de se perdoar os meninos de 16 anos. Madalena, por sua vez, vários anos a mais, experiência incomparavelmente maior que a minha, apenas passava a mão em minha cabeça e me olhava com ternura, numa mistura de mãe com amante. Em algum momento da noite, um conhecido entrou no posto para abastecer e, ao me enxergar, veio com uma pergunta, ou uma intimação. Queria saber se era aquela a minha noite. Foi a pressão necessária para que eu perdesse o pouco de tranqüilidade que ainda conservava e novamente pressionasse Madalena para que fôssemos sem mais espera para a sua casa. Ela fechou o semblante, mas nem tanto, e me respondeu: "menino, acalme-se. Nós iremos passar a noite juntos. Só tenho que levar a Cris em casa. Estou com todo o pó dela em minha bolsa, não confio nela para ficar com isso".
Ela me desarmara por completo. Apresentara-se como uma personagem muito mais complexa das que eu conhecia até aquele dia. Não sabia o que dizer. Eu era exatamente aquilo que ela tinha me chamado, um menino. E pior, mimado, que não agüentava esperar um pouco para receber um presente. Quem era essa mulher, que tanto sabe da vida, que ainda se preocupa com a amiga, que conhece coisas que eu nunca imaginei conhecer, ou pelo menos não até aquele momento? Eu era tão pequeno ao lado dela, tão insignificante, ela era tão superior, tão altiva, tão, tão... Deveria manter-me quieto e calmo ao seu lado. E assim procedi.
Logo em seguida, por coincidência ou sei lá o que, fomos embora andando, já que a distância não era muito grande até onde dormiríamos, deixando antes Cris em casa. Ela tinha fechado a noite beijando três de meus amigos em seqüência. O que foi uma ótima forma de constranger esses meus chegados no futuro.
Madalena morava sozinha e era completamente independente de sua família, que depois descobri ser razoavelmente tradicional na cidade. Mas, ouvira que vários dos objetos e eletrodomésticos da casa dela tinham sido presentes dos homens com quem dormira. Como uma forma de agradecimento pelos serviços prestados? Ou como forma de proporcionar mais conforto numa eventual volta? Não sei... A casa era pequena, mas confortável, no andar térreo de um prédio pequeno. Sentei na sala e logo em seguida estávamos atracados no quarto. Quando deitamo-nos, ela me pediu licença e saiu do ambiente. Voltou vestindo apenas uma lingerie preta transparente e me cobriu com o seu corpo. Pude sentir um perfume até então inexistente e estranhei esse pequeno detalhe.
Não creio ser necessário detalhar o restante da noite. Apenas explicito que não dormimos em nenhum momento e quando deitamos, um ao lado do outro, começamos a conversar. Algo que pouco tínhamos feito até aquele momento. Madalena disse que já me conhecia, já tinha me visto passar por sua rua, sabia quem eram os meus amigos, alguns há mais tempo e melhor que eu. Fiquei um pouco surpreso, não imaginava que alguém que eu nunca tivesse avistado pudesse saber da minha vida. Falou-me que eu tinha uma irmã e que ela estava para casar. Arregalei os meus olhos e silenciei-me. Todas as suas palavras me surpreendiam. Confidenciou-me que sabia perfeitamente quem era o meu cunhado, mas pedi-lhe para que ela não detalhasse isso. Disse que, independente do que poderia aparentar, já que não era íntima de ambos, ela possuía uma afeição pelos dois. Tudo aquilo me intrigava, não sabia o que falar, não tinha os aparatos necessários para poder me defender ou simplesmente dialogar. Ela continuou afirmando que sabia quando seria a cerimônia, e eu só balançava a cabeça em concordância, e que ela queria muito ir na igreja nesse dia. Mas que não tinha coragem de ir sozinha.
Qual era a resposta certa a ser dada nessas situações? Será que há alguma? A mulher se demonstrava, no mínimo, extremamente solitária. E, talvez eu, aquele que passara apenas uma noite com ela, mais um nas suas contas, uma das poucas nas minhas, eu estava em condições de proporcionar-lhe algum tipo de carinho, de conforto, completamente diferente de tudo o que ela já tivera. Aquela mulher poderosa, cheia de si, confiante, segura, que ao andar é impossível desviar os olhos, estava deitada no meu peito, escutando o bater acelerado e nervoso do coração de um garoto tímido e covarde, que era capaz de dizer algo que era nitidamente mentira apenas para poder confortá-la por alguns instantes. Talvez ela soubesse que nunca a levaria, talvez ela soubesse que, o caminho que ela escolhera há muito não teria uma volta, ao menos de forma simples assim. Mas não pude conter a confirmação que me escapuliu.
O sol já estava alto quando ela caiu num sono leve. Levantei-me, tomei um banho rápido, saí em jejum e me dirigi para casa. Minha mãe chorou quando me viu porque não sabia onde passara a noite e eu estava confuso demais para pedir-lhe desculpas. Sugeri que ela parasse, conversaríamos depois e fui me arrumar para ir ao colégio. Independente da noite, eu ainda era um garoto de 16 anos.
Quando abri a porta na manhã seguinte, os olhos vermelhos, o corpo com cheiro de outro corpo feminino, e observei a minha mãe deitada no sofá, também acordada, fiquei sem palavras. Tinha 16 anos e não sabia por onde começar a história. Era a primeira vez que passava a noite fora de casa. Não creio ter ainda a maturidade para contar todos os detalhes que houve naquela noite. Faço deste texto um exercício de confissão, pois.
Era uma quarta-feira ordinária, estávamos, eu e minha mãe, deitados, assistindo à TV na sala, sem maiores preocupações. Com 16 anos a vida pode ser resumida em pouquíssimas frases. O telefone tocou e era um amigo meu, Binho, que morava em frente à minha casa, convidando-me para uma festa da mãe da menina que ele tinha um caso - se é que é possível ter algo entre a seriedade do namoro e a liberdade da noite com alguém de menos de 20 anos. Depois de relutar um pouco, ele me convenceu que deveríamos aproveitar o evento. Sem ter como contra-argumentar, já que não era essa a minha intenção, desci em instantes. Avisei a minha mãe que voltaria em breve, e creio que nasceu daí um dos meus defeitos da noite.
O ambiente era um pequeno terraço, sem nenhum tipo de vista, mas que funcionava OK para o tal churrasco. A aniversariante, Cristina, Cris (ela pediu para chamarem-lhe assim) estava visivelmente transtornada. A menina, sua filha, ainda mais nova que eu, se sentia incomodada com isso. Cris era bonita para a idade. Morena de cabelos cacheados e curtos, que não encostavam nos ombros, os olhos eram negros como petróleo e o corpo ainda não demonstrava sinal dos excessos. Lembro-me dela de quando moravam na mesma vila que um tio meu. Como um conservador que sempre foi, ele se referia a ela como "a puta da casa seis", porque não era casada e mudava de namorado com certa freqüência. Agora, ela caminhava de uma lado para o outro, com um copo sempre pela metade, um cigarro aceso entre o indicador e o médio e a pálpebra no meio dos olhos. E atrás dos amigos da filha, cochichando e perguntando em suas orelhas sobre a hipótese deles dormirem na casa dela. Não entendi muito bem o motivo, mas ela me deixou de fora de seus jogos. Também não fiz nenhum esforço para tentar decifrar essa intenção.
Reparei, só então, numa mulher que me pareceu saída diretamente do sul da Itália: pele e cabelos no mesmo tom castanho claro, olhos verdes, quadril tropical, seios ídem. Ao lado da churrasqueira eu estava junto de Binho, perguntei-lhe quem ela era. Ele me observou com um meio sorriso de ironia, como se eu obviamente soubesse quem era aquela mulher de quase 30 anos - mas que era muito melhor que todas as outras que estavam no terraço naquela noite - porque todo mundo sabia quem ela era, mas eu respondi-lhe que nunca a havia avistado. "Madalena", Binho deixa escorregar seu nome vagarosamente ainda com o meio sorriso e continua, "Madalena de Castro".
Toda a informação que cercava este nome me veio à mente. Todos os homens, os meninos falavam dela, possuíam uma história com ela, algo que gostavam de alardear para quem quisesse escutar. Binho me contara que a encontrara numa festa à fantasia e ela, vestida de She-ra, agarrou-o atrás do balcão das bebidas, no meio de toda a balbúrdia. Conhecia história de familiares, de pais que haviam experimentado Madalena e o diálogo na mesa do jantar girava em torno de uma anedota: "já está na sua geração, meu filho?". O pensamento seguinte que me veio à cabeça era "conheci uma lenda", e em seguida, "quero fazer parte dessa lenda".
Entretanto, não sabia como me aproximar dela. Perguntei ao Binho o que eu deveria fazer, ele me respondeu que nada. Ela escolhia os acompanhantes de sua noite. A imagem batida da viúva-negra apareceu na minha frente. Como se ela se utilizasse dos parceiros durante a noite e, depois de ter sugado por completo as suas vitalidades, jogaria para fora de casa apenas o corpo murcho, sem substância, vazio por completo. De longe, iniciei uma série de olhadelas fixas para ela, queria me fazer perceptível. Em pouco tempo, o meu objetivo estava completo. Aproveitei uma oportunidade em que ela foi pegar uma cerveja perto de mim e imitei-lhe a ação. Ela puxou algum papo. Daí, até o momento em que estávamos nos beijando, não decorreu quase nada. Seguindo um raciocínio que já tinha edificado, pensei que poderia sugerir de irmos para a sua casa, logo, já. Ela me pediu calma.
Toda a bebida da festa acabou e Binho e os outros meninos sugeriram irmos todos a um posto onde poderíamos comprar mais cerveja e ficarmos bebendo. Até aquele momento, Cris, a aniversariante, já havia beijado dois de meus amigos, e continuava cada vez mais fora de si, agindo impulsivamente e sem controle. Fomos todos para a nova parada: eu, um pouco a contragosto, Madalena nitidamente tomando conta de Cris, mas sem aparentar qualquer tipo de autoridade, apenas querendo estar ali caso ela tivesse algum tipo de complicação. Eu insistia que deveríamos ir, agora, para a casa de Madalena, mas ela me pedia, toda delicada, um pouco mais de paciência.
Não conseguia enxergar nada além do meu desejo de comê-la, de ser mais um do grupo, de depois poder narrar como foi a minha experiência, de enumerar as minhas vantagens e detalhar as peculiaridades do encontro. Há de se perdoar os meninos de 16 anos. Madalena, por sua vez, vários anos a mais, experiência incomparavelmente maior que a minha, apenas passava a mão em minha cabeça e me olhava com ternura, numa mistura de mãe com amante. Em algum momento da noite, um conhecido entrou no posto para abastecer e, ao me enxergar, veio com uma pergunta, ou uma intimação. Queria saber se era aquela a minha noite. Foi a pressão necessária para que eu perdesse o pouco de tranqüilidade que ainda conservava e novamente pressionasse Madalena para que fôssemos sem mais espera para a sua casa. Ela fechou o semblante, mas nem tanto, e me respondeu: "menino, acalme-se. Nós iremos passar a noite juntos. Só tenho que levar a Cris em casa. Estou com todo o pó dela em minha bolsa, não confio nela para ficar com isso".
Ela me desarmara por completo. Apresentara-se como uma personagem muito mais complexa das que eu conhecia até aquele dia. Não sabia o que dizer. Eu era exatamente aquilo que ela tinha me chamado, um menino. E pior, mimado, que não agüentava esperar um pouco para receber um presente. Quem era essa mulher, que tanto sabe da vida, que ainda se preocupa com a amiga, que conhece coisas que eu nunca imaginei conhecer, ou pelo menos não até aquele momento? Eu era tão pequeno ao lado dela, tão insignificante, ela era tão superior, tão altiva, tão, tão... Deveria manter-me quieto e calmo ao seu lado. E assim procedi.
Logo em seguida, por coincidência ou sei lá o que, fomos embora andando, já que a distância não era muito grande até onde dormiríamos, deixando antes Cris em casa. Ela tinha fechado a noite beijando três de meus amigos em seqüência. O que foi uma ótima forma de constranger esses meus chegados no futuro.
Madalena morava sozinha e era completamente independente de sua família, que depois descobri ser razoavelmente tradicional na cidade. Mas, ouvira que vários dos objetos e eletrodomésticos da casa dela tinham sido presentes dos homens com quem dormira. Como uma forma de agradecimento pelos serviços prestados? Ou como forma de proporcionar mais conforto numa eventual volta? Não sei... A casa era pequena, mas confortável, no andar térreo de um prédio pequeno. Sentei na sala e logo em seguida estávamos atracados no quarto. Quando deitamo-nos, ela me pediu licença e saiu do ambiente. Voltou vestindo apenas uma lingerie preta transparente e me cobriu com o seu corpo. Pude sentir um perfume até então inexistente e estranhei esse pequeno detalhe.
Não creio ser necessário detalhar o restante da noite. Apenas explicito que não dormimos em nenhum momento e quando deitamos, um ao lado do outro, começamos a conversar. Algo que pouco tínhamos feito até aquele momento. Madalena disse que já me conhecia, já tinha me visto passar por sua rua, sabia quem eram os meus amigos, alguns há mais tempo e melhor que eu. Fiquei um pouco surpreso, não imaginava que alguém que eu nunca tivesse avistado pudesse saber da minha vida. Falou-me que eu tinha uma irmã e que ela estava para casar. Arregalei os meus olhos e silenciei-me. Todas as suas palavras me surpreendiam. Confidenciou-me que sabia perfeitamente quem era o meu cunhado, mas pedi-lhe para que ela não detalhasse isso. Disse que, independente do que poderia aparentar, já que não era íntima de ambos, ela possuía uma afeição pelos dois. Tudo aquilo me intrigava, não sabia o que falar, não tinha os aparatos necessários para poder me defender ou simplesmente dialogar. Ela continuou afirmando que sabia quando seria a cerimônia, e eu só balançava a cabeça em concordância, e que ela queria muito ir na igreja nesse dia. Mas que não tinha coragem de ir sozinha.
Qual era a resposta certa a ser dada nessas situações? Será que há alguma? A mulher se demonstrava, no mínimo, extremamente solitária. E, talvez eu, aquele que passara apenas uma noite com ela, mais um nas suas contas, uma das poucas nas minhas, eu estava em condições de proporcionar-lhe algum tipo de carinho, de conforto, completamente diferente de tudo o que ela já tivera. Aquela mulher poderosa, cheia de si, confiante, segura, que ao andar é impossível desviar os olhos, estava deitada no meu peito, escutando o bater acelerado e nervoso do coração de um garoto tímido e covarde, que era capaz de dizer algo que era nitidamente mentira apenas para poder confortá-la por alguns instantes. Talvez ela soubesse que nunca a levaria, talvez ela soubesse que, o caminho que ela escolhera há muito não teria uma volta, ao menos de forma simples assim. Mas não pude conter a confirmação que me escapuliu.
O sol já estava alto quando ela caiu num sono leve. Levantei-me, tomei um banho rápido, saí em jejum e me dirigi para casa. Minha mãe chorou quando me viu porque não sabia onde passara a noite e eu estava confuso demais para pedir-lhe desculpas. Sugeri que ela parasse, conversaríamos depois e fui me arrumar para ir ao colégio. Independente da noite, eu ainda era um garoto de 16 anos.
sexta-feira, 3 de dezembro de 2004
Aniversários
Havia sido acordado cedo com a notícia triste, mas esperada. Levantei-me sem palavras e completei minha higiene com o pensamento nublado. O tempo correu mudo até o cemitério. Só minha irmã falara, “Ela estava quietinha, o corpo subindo e descendo com a respiração. Até que em um momento parou. Saí do quarto e disse para a enfermeira que algo estava errado”. Ela estava com o rosto rosado, os olhos marejados, pouco preocupada com a sua aparência, ela que sempre foi tão vaidosa.
Peguei uma carona e só lembrava que este era o aniversário dela, minha mãe, que agora não estava mais, completava 54 anos. Como uma história circular, como algo ficcional, eu estava preocupado com isso. Ela que gostara tanto de festas, que fora tão avessa a tristezas, que enchera a casa para não ficar sozinha em eventos e em diversas oportunidades.
Os conhecidos vinham falar comigo e eu tentava desviar o assunto do óbvio. Não queria sentir ninguém com pena de mim, já me bastava a mim mesmo. Sem nenhuma perspectiva sobre o que faria da vida, no que trabalharia, completamente sozinho e agora órfão por completo. O pior era que naquele dia não cabia qualquer atitude inesperada. O constrangimento me asfixiaria por completo antes do segundo passo ou da terceira palavra. A idéia do seu aniversário era fixa na minha cabeça muito por isso. Ótimo recurso para poder desvencilhar o foco sobre mim. Também sabia que isso não era justo, era extremamente egoísta pensar só em mim no enterro de minha mãe.
Por sorte ou porque assim tinha que ser, vários amigos meus, em pouco tempo, me envolveram e, por inúmeros motivos, puxaram assuntos das mais diferentes espécies. Fugia dos rigores da etiqueta e não quis ficar perto do corpo físico dela, tão (por mais que isso possa parecer óbvio, não o é) imóvel, distante e frio.
Mantinha-me seguro turvando o meu pensando com a idéia do seu aniversário. Não achava justo. Só aquilo eu não achava justo. Sei que as pessoas morrem e, principalmente, ela já estava cansada, já não conseguia mais lutar, tinha desistido há muito. Mas, tinha que ser exatamente no aniversário dela? Com essa idéia atravessada eu me mantinha consciente do meu arredor. Parentes sumidos de longa data, amigos desconhecidos, rostos vagamente familiar, eu tinha que cumprir um ritual burocrático, tão diferente da verdade, do que ela sempre pediu em vida.
Ela brincava seriamente que gostaria de doar todos os órgãos do seu corpo. Depois da morte, insistia, não havia mais nenhuma necessidade deles. E, no dia, que façam uma festa, como aquelas que costumam fazer ao sul dos Estados Unidos, com bandas de jazz tocando Standards e pessoas se embriagando. Ou, como acontece no Nordeste, os amigos se reúnem para beber o corpo – no caso de seus desejos – ausente. Quis a fatalidade que ela não pudesse doar nada e que o período de agonia tivesse minado as forças dos mais próximos, impedindo que tivéssemos qualquer atitude longe da burocrática.
Talvez por isso, era tudo tão impessoal. Um corpo deitado, com expressões faciais que de nada se pareciam com as minhas lembranças, ou com a jovialidade verdadeira que todos ali tiveram a oportunidade de conhecer. Nada pode ser tão antagônico à espontaneidade que a câmara mortuária.
Em determinado momento, chegou o inevitável, eu deveria entrar naquele cubículo, para escutar as últimas preces. Eu que não cria nem na possibilidade de crer. Pedi para ficar à distância, não queria encarar a palidez dela. Fiquei atrás de todos, como se fosse um transeunte qualquer que tivera a curiosidade de saber quem são todas essas pessoas, por que elas estão todas aqui, nesta pequenina sala, quase sem ventilação. Como se isso fosse possível. Algumas pessoas falaram e era como uma ladainha que se repetia e apenas me enfadava. Todas as vozes eram desconhecidas para mim. Pessoas que nunca conviveram com a minha mãe, mas que, por boa-vontade geral ou por um carinho dedicado especialmente a ela, se propuseram a fazer uma oração final. Tão impessoal quanto qualquer outro ato que ocorrera até ali.
Quando todos acabaram, minha irmã virou-se para mim e perguntou se eu queria falar alguma coisa ou se o caixão poderia ser fechado. Aéreo, assenti com a cabeça sem pensar em nada. Ou, o inverso, com o pensamento fixo de que era aquele dia o de seu aniversário e que ninguém havia lembrado até agora desse detalhe. Dois homens pegaram a tampa e eu dei um passo à frente e deixei escapar um fraco “espera”. Algumas pessoas ficaram surpresas o que me deu mais medo. Não sabia o que estava fazendo, não tinha a menor idéia da seqüência de atitudes que deveria tomar, mas continuei. “Hoje é o aniversário dela”, alguns concordaram com a cabeça. “Eu acho que ela gostaria que nós cantássemos ‘parabéns’ para ela, acho que ela ficaria feliz”. Um centésimo de silêncio para depois ser quebrado por um bater ritmado e, inicialmente, fraco de palmas. Que foi encorpando, crescendo, até que todas as pessoas que estavam do lado de fora vieram e também bateram palmas e cantaram juntas. E, então, eu percebi que talvez tivéssemos agradado a ela. Minha mãe teria ficado feliz, tenho certeza.
Peguei uma carona e só lembrava que este era o aniversário dela, minha mãe, que agora não estava mais, completava 54 anos. Como uma história circular, como algo ficcional, eu estava preocupado com isso. Ela que gostara tanto de festas, que fora tão avessa a tristezas, que enchera a casa para não ficar sozinha em eventos e em diversas oportunidades.
Os conhecidos vinham falar comigo e eu tentava desviar o assunto do óbvio. Não queria sentir ninguém com pena de mim, já me bastava a mim mesmo. Sem nenhuma perspectiva sobre o que faria da vida, no que trabalharia, completamente sozinho e agora órfão por completo. O pior era que naquele dia não cabia qualquer atitude inesperada. O constrangimento me asfixiaria por completo antes do segundo passo ou da terceira palavra. A idéia do seu aniversário era fixa na minha cabeça muito por isso. Ótimo recurso para poder desvencilhar o foco sobre mim. Também sabia que isso não era justo, era extremamente egoísta pensar só em mim no enterro de minha mãe.
Por sorte ou porque assim tinha que ser, vários amigos meus, em pouco tempo, me envolveram e, por inúmeros motivos, puxaram assuntos das mais diferentes espécies. Fugia dos rigores da etiqueta e não quis ficar perto do corpo físico dela, tão (por mais que isso possa parecer óbvio, não o é) imóvel, distante e frio.
Mantinha-me seguro turvando o meu pensando com a idéia do seu aniversário. Não achava justo. Só aquilo eu não achava justo. Sei que as pessoas morrem e, principalmente, ela já estava cansada, já não conseguia mais lutar, tinha desistido há muito. Mas, tinha que ser exatamente no aniversário dela? Com essa idéia atravessada eu me mantinha consciente do meu arredor. Parentes sumidos de longa data, amigos desconhecidos, rostos vagamente familiar, eu tinha que cumprir um ritual burocrático, tão diferente da verdade, do que ela sempre pediu em vida.
Ela brincava seriamente que gostaria de doar todos os órgãos do seu corpo. Depois da morte, insistia, não havia mais nenhuma necessidade deles. E, no dia, que façam uma festa, como aquelas que costumam fazer ao sul dos Estados Unidos, com bandas de jazz tocando Standards e pessoas se embriagando. Ou, como acontece no Nordeste, os amigos se reúnem para beber o corpo – no caso de seus desejos – ausente. Quis a fatalidade que ela não pudesse doar nada e que o período de agonia tivesse minado as forças dos mais próximos, impedindo que tivéssemos qualquer atitude longe da burocrática.
Talvez por isso, era tudo tão impessoal. Um corpo deitado, com expressões faciais que de nada se pareciam com as minhas lembranças, ou com a jovialidade verdadeira que todos ali tiveram a oportunidade de conhecer. Nada pode ser tão antagônico à espontaneidade que a câmara mortuária.
Em determinado momento, chegou o inevitável, eu deveria entrar naquele cubículo, para escutar as últimas preces. Eu que não cria nem na possibilidade de crer. Pedi para ficar à distância, não queria encarar a palidez dela. Fiquei atrás de todos, como se fosse um transeunte qualquer que tivera a curiosidade de saber quem são todas essas pessoas, por que elas estão todas aqui, nesta pequenina sala, quase sem ventilação. Como se isso fosse possível. Algumas pessoas falaram e era como uma ladainha que se repetia e apenas me enfadava. Todas as vozes eram desconhecidas para mim. Pessoas que nunca conviveram com a minha mãe, mas que, por boa-vontade geral ou por um carinho dedicado especialmente a ela, se propuseram a fazer uma oração final. Tão impessoal quanto qualquer outro ato que ocorrera até ali.
Quando todos acabaram, minha irmã virou-se para mim e perguntou se eu queria falar alguma coisa ou se o caixão poderia ser fechado. Aéreo, assenti com a cabeça sem pensar em nada. Ou, o inverso, com o pensamento fixo de que era aquele dia o de seu aniversário e que ninguém havia lembrado até agora desse detalhe. Dois homens pegaram a tampa e eu dei um passo à frente e deixei escapar um fraco “espera”. Algumas pessoas ficaram surpresas o que me deu mais medo. Não sabia o que estava fazendo, não tinha a menor idéia da seqüência de atitudes que deveria tomar, mas continuei. “Hoje é o aniversário dela”, alguns concordaram com a cabeça. “Eu acho que ela gostaria que nós cantássemos ‘parabéns’ para ela, acho que ela ficaria feliz”. Um centésimo de silêncio para depois ser quebrado por um bater ritmado e, inicialmente, fraco de palmas. Que foi encorpando, crescendo, até que todas as pessoas que estavam do lado de fora vieram e também bateram palmas e cantaram juntas. E, então, eu percebi que talvez tivéssemos agradado a ela. Minha mãe teria ficado feliz, tenho certeza.
sexta-feira, 26 de novembro de 2004
Atuações animadas
Salvo sob o convite irrecusável, admito que não verei “O expresso polar”, mas já fiquei impressionado. Nada pela trama – um clichezaço de natal –, menos pelo resultado final, já que não tenho know-how suficiente para saber se esta animação é mais “realista” que todas as outras produzidas. Mas, pelo press kit que tenho em mãos explicando como foi feito a tal performance capture.
A “Época” diz que é uma evolução do que fizeram com o Gollum em “Senhor dos Anéis”. Tom Hanks (que interpreta as cinco personagens principais masculinas) aparece em fotos vestindo um macacão azul e, de acordo com a revista, um computador registrava cada movimento dele. O material impresso que recebi afirma: “diferentemente dos sistemas de captação de movimentos existentes, que são limitados em alcance, este poderia gravar ao mesmo tempo movimentos tridimensionais, com alta fidelidade facial, e movimentos corporais de diversos atores, por meio de um sistema de câmeras digitais com cobertura de 360 graus”.
Como perfeitamente resumiu o Tambarotti, Hanks foi scanneado. E, mais grave, em 3D. Robert Zemeckis (a voz por trás do “ação” e do “corta”) tinha em mãos, um ator, em todos os ângulos possíveis, e poderia inseri-lo em qualquer contexto, sob qualquer condição. Ele mesmo admite: “eu podia filmar um two-shot e dois closes, ou deixar o close de um ator ocupar toda a cena como se faria na ação ao vivo. Então podia fazer o contrário com um segundo ator, ou outro two-shot”. As possibilidades crescem ad infinitum.
E é daí que, talvez, nasça o problema dessa nova tecnologia aplicada ao cinema. Zemeckis até brinca com o fato: “a boa notícia é que qualquer coisa é possível. A má é que qualquer coisa é possível”. Até mesmo para enxergar a cena filmada (ou gravada como preferem os puritanistas), foi necessário criar uma janela onde o diretor e equipe assistiam a todas as interpretações. Mas, onde colocar essa janela? E, depois das performances serem captadas, qual delas escolher, já que ele tinha absolutamente todas?
A "Época" compara este filme a “O canto de Jazz”, de 1927, primeiro filme falado da História. Um pouco de exagero. Mais contido, o Zé já afirmou que grande parte do cinema do futuro será de animação para adultos, quando conversamos sobre “As bicicletas de Beleville”. Li algo parecido no Ricardo Calil à época do lançamento de “Shrek 2”. Quando os desenhos forem idênticos à realidade, por que o diretor usaria sua paciência para agüentar atores estrelas? Mas, e o espectador, o sujeito passivo dessa ação, será que percebe essa mudança?, me cochicha aqui atrás, neste exato momento, o Batata. Bem provavelmente não. Ou ainda não, já que as mudanças são graduais e lentas. Mas é inegável que a quantidade produções em desenho animado só cresce, e tende a crescer ainda mais. Para todas as respostas acima, só nos resta aguardar.
Salvo sob o convite irrecusável, admito que não verei “O expresso polar”, mas já fiquei impressionado. Nada pela trama – um clichezaço de natal –, menos pelo resultado final, já que não tenho know-how suficiente para saber se esta animação é mais “realista” que todas as outras produzidas. Mas, pelo press kit que tenho em mãos explicando como foi feito a tal performance capture.
A “Época” diz que é uma evolução do que fizeram com o Gollum em “Senhor dos Anéis”. Tom Hanks (que interpreta as cinco personagens principais masculinas) aparece em fotos vestindo um macacão azul e, de acordo com a revista, um computador registrava cada movimento dele. O material impresso que recebi afirma: “diferentemente dos sistemas de captação de movimentos existentes, que são limitados em alcance, este poderia gravar ao mesmo tempo movimentos tridimensionais, com alta fidelidade facial, e movimentos corporais de diversos atores, por meio de um sistema de câmeras digitais com cobertura de 360 graus”.
Como perfeitamente resumiu o Tambarotti, Hanks foi scanneado. E, mais grave, em 3D. Robert Zemeckis (a voz por trás do “ação” e do “corta”) tinha em mãos, um ator, em todos os ângulos possíveis, e poderia inseri-lo em qualquer contexto, sob qualquer condição. Ele mesmo admite: “eu podia filmar um two-shot e dois closes, ou deixar o close de um ator ocupar toda a cena como se faria na ação ao vivo. Então podia fazer o contrário com um segundo ator, ou outro two-shot”. As possibilidades crescem ad infinitum.
E é daí que, talvez, nasça o problema dessa nova tecnologia aplicada ao cinema. Zemeckis até brinca com o fato: “a boa notícia é que qualquer coisa é possível. A má é que qualquer coisa é possível”. Até mesmo para enxergar a cena filmada (ou gravada como preferem os puritanistas), foi necessário criar uma janela onde o diretor e equipe assistiam a todas as interpretações. Mas, onde colocar essa janela? E, depois das performances serem captadas, qual delas escolher, já que ele tinha absolutamente todas?
A "Época" compara este filme a “O canto de Jazz”, de 1927, primeiro filme falado da História. Um pouco de exagero. Mais contido, o Zé já afirmou que grande parte do cinema do futuro será de animação para adultos, quando conversamos sobre “As bicicletas de Beleville”. Li algo parecido no Ricardo Calil à época do lançamento de “Shrek 2”. Quando os desenhos forem idênticos à realidade, por que o diretor usaria sua paciência para agüentar atores estrelas? Mas, e o espectador, o sujeito passivo dessa ação, será que percebe essa mudança?, me cochicha aqui atrás, neste exato momento, o Batata. Bem provavelmente não. Ou ainda não, já que as mudanças são graduais e lentas. Mas é inegável que a quantidade produções em desenho animado só cresce, e tende a crescer ainda mais. Para todas as respostas acima, só nos resta aguardar.
sábado, 20 de novembro de 2004
Da alvorada ao crepúsculo
Há anos atrás, um grande amigo meu se repetia ao me contar sobre um filme que ele havia gostado muito e que eu deveria ver. Achava curioso porque ele não é desse tipo que cometeu o erro de fazer comunicação, logo não é viciado na tríade: livros, cinema, música.
Mais exótico ainda foi quando uma menina que era a definição de jornalista tradicional (não o tipo hype) veio me confidenciar que, de todos os vários filmes que ela assistira, este, o mesmo dele, era o seu preferido.
Por anos fiquei com essa pulga, não só atrás de minha orelha, mas percorrendo todo o trajeto entre um ouvido e outro. Até que ano passado (não estou muito certo quanto à data) assisti à “Antes do amanhecer”, de Richard Linklater.
Esqueça o caráter cinematográfico e vamos falar de outra coisa mais inominável. Este diretor americano sofre uma forte influência do teatro, isso fica claro em cinco segundos de filme. Este longa em questão, por exemplo, não apresenta outra situação dramática além de um diálogo entre os dois protagonistas, um americano e outra francesa, que decidem passar uma noite em Viena por estarem viajando sozinhos pela Europa. Logo, não é cinema da maneira como o Batata gosta ou como estamos todos acostumados. Mas olvidemos disso por alguns instantes.
Antes, desse mesmo moço, já tinha visto, revisto e gravado em VHS “Waking Life”, uma animação surrealista, capaz de proporcionar dores de cabeça nas vistas mais sensíveis. E, também, que não é nada além de algumas esquetes teatrais filmadas e animadas por programas de edição de imagem. Vi outro, depois, chamado “Subúrbia”, este uma adaptação quase literal de uma peça ganhadora de alguns prêmios em Nova Iorque.
Então, o que torna esse diretor diferente de todos os outros, se não considerarmos seu caráter de ribalta? Seus diálogos. São excepcionais. Abordam assuntos completamente inéditos em qualquer cinematografia contemporânea (talvez somente na verborrágica francesa). Em “Waking Life”, por exemplo, há conversas inteiras sobre filosofia, de botequim, ou mais séria, existencialista, ou qualquer outra que eu não tenho a menor idéia de qual corrente de pensamento.
Mas, talvez isso seja o maior problema da animação. Falta conexão entre os pequenos curtas que formam o longa e entre a história toda e o espectador. Fica um sarapatel de nego que, se você pestanejar, perde alguma coisa. E, também, há um calhamaço de informações que tende a ser muito enfadonho para aquele que não estiver no clima.
OK, “Antes do amanhecer” não tem nenhum desses cacoetes. Como dito, o casal passa a noite na Áustria e, claro, conversam sobre os assuntos mais diversos possíveis. Criam-se situações para os dois passarem, mas o que importa é o diálogo. Na época, ambos são jovens, esperançosos e, o mais marcante, românticos até o último biquinho dela e petulância dele. Era isso que o meu amigo e a menina mais haviam gostado, óbvio. Ambos os meus chegados eram (são) visionários, imaginam um mundo que pode ser melhor, e neste mundo, claro, todos já terão encontrado suas caras-metade.
Talvez por ter assistido ao filme numa época diferente que eles, muito mais velho, ou por ser um cético ao natural, via naquela longa conversa, uma sucessão de sonhos impossíveis de se realizarem ou simplesmente cinematográficos demais para mim. Simplesmente o filme não dispunha dos códigos de comunicação necessários para falar comigo, era de uma felicidade eterna (mesmo que durasse apenas uma noite) que eu não cria.
OK dois. Nove anos depois, o diretor, incentivado sei lá pelo que, resolve filmar uma seqüência. Como em toda produção que é retomada décadas depois, senti um cheiro forte de mercantilismo barato no ar. Entretanto, fiquei curioso em saber como andavam as duas personagens com quem em outra oportunidade passara uma noite junto.
E foi então que “Antes do pôr-do-sol” me fisgou por completo. Se antes o americano e a francesa eram sonhadores, agora eles são tão ou mais céticos que eu. Por vias diversas (ele através de um casamento frustrado, ela por inúmeros relacionamentos falidos), ou por caminhos em comum, (os dois não terem se encontrado na data combinada), ambos haviam perdido a esperança no romance como algo perfeito e sem falhas.
Antes, contudo, percebemos que os dois protagonistas são “arquétipos” das personagens feminina e masculina. É claro que os dois não são exatamente iguais a quem assiste ao longa. Mas é impossível não se identificar com alguns detalhes de comportamento de ambos. Ela fala exageradamente, ele quer colocar piadas em suas vírgulas. Ele queria estar rodando o mundo numa motocicleta, ela mente sobre a memória que tem do último encontro deles. Ela faz alguns planos para tentar se manter em pé, ele quer apenas acordar mais um dia e continuar. Ela chega às lágrimas falando de como se lembrava da noite em que passaram juntos, ele fica desesperado quando ela, anteriormente, fingira não se recordar de “detalhes”. Ele acha que está jogando a vida fora, ela precisa de relacionamentos à distância porque não suporta um homem por muito tempo.
O que me deu alguma esperança (em mim mesmo, deixemos claro), foi que, até os mais incrédulos, e orgulhosos por isso, podem se pegar num lapso de otimismo. (Quem não viu o filme, pare de ler aqui). Ao final, ele vai deixá-la em casa, ela começa a dançar para ele. Ele tem que pegar um avião para ir embora de Paris, mas fica sentado. Ela lhe dirige a palavra: “Você vai perder o avião”, ele dá de ombros. Fim. Não se sabe, à exatidão, se ele sairá dali em segundos, ou se ignorará sua vida do outro lado do Atlântico na tentativa de ser tudo aquilo prometido pela imaginação, pela sua criação, pelos seus sonhos. Antes, ele próprio sugerira sutilmente que, de acordo com sua decisão, com o que você achasse que fosse acontecer, você poderia ser classificado ou como cético ou como romântico. E ele fica. Claro.
Há anos atrás, um grande amigo meu se repetia ao me contar sobre um filme que ele havia gostado muito e que eu deveria ver. Achava curioso porque ele não é desse tipo que cometeu o erro de fazer comunicação, logo não é viciado na tríade: livros, cinema, música.
Mais exótico ainda foi quando uma menina que era a definição de jornalista tradicional (não o tipo hype) veio me confidenciar que, de todos os vários filmes que ela assistira, este, o mesmo dele, era o seu preferido.
Por anos fiquei com essa pulga, não só atrás de minha orelha, mas percorrendo todo o trajeto entre um ouvido e outro. Até que ano passado (não estou muito certo quanto à data) assisti à “Antes do amanhecer”, de Richard Linklater.
Esqueça o caráter cinematográfico e vamos falar de outra coisa mais inominável. Este diretor americano sofre uma forte influência do teatro, isso fica claro em cinco segundos de filme. Este longa em questão, por exemplo, não apresenta outra situação dramática além de um diálogo entre os dois protagonistas, um americano e outra francesa, que decidem passar uma noite em Viena por estarem viajando sozinhos pela Europa. Logo, não é cinema da maneira como o Batata gosta ou como estamos todos acostumados. Mas olvidemos disso por alguns instantes.
Antes, desse mesmo moço, já tinha visto, revisto e gravado em VHS “Waking Life”, uma animação surrealista, capaz de proporcionar dores de cabeça nas vistas mais sensíveis. E, também, que não é nada além de algumas esquetes teatrais filmadas e animadas por programas de edição de imagem. Vi outro, depois, chamado “Subúrbia”, este uma adaptação quase literal de uma peça ganhadora de alguns prêmios em Nova Iorque.
Então, o que torna esse diretor diferente de todos os outros, se não considerarmos seu caráter de ribalta? Seus diálogos. São excepcionais. Abordam assuntos completamente inéditos em qualquer cinematografia contemporânea (talvez somente na verborrágica francesa). Em “Waking Life”, por exemplo, há conversas inteiras sobre filosofia, de botequim, ou mais séria, existencialista, ou qualquer outra que eu não tenho a menor idéia de qual corrente de pensamento.
Mas, talvez isso seja o maior problema da animação. Falta conexão entre os pequenos curtas que formam o longa e entre a história toda e o espectador. Fica um sarapatel de nego que, se você pestanejar, perde alguma coisa. E, também, há um calhamaço de informações que tende a ser muito enfadonho para aquele que não estiver no clima.
OK, “Antes do amanhecer” não tem nenhum desses cacoetes. Como dito, o casal passa a noite na Áustria e, claro, conversam sobre os assuntos mais diversos possíveis. Criam-se situações para os dois passarem, mas o que importa é o diálogo. Na época, ambos são jovens, esperançosos e, o mais marcante, românticos até o último biquinho dela e petulância dele. Era isso que o meu amigo e a menina mais haviam gostado, óbvio. Ambos os meus chegados eram (são) visionários, imaginam um mundo que pode ser melhor, e neste mundo, claro, todos já terão encontrado suas caras-metade.
Talvez por ter assistido ao filme numa época diferente que eles, muito mais velho, ou por ser um cético ao natural, via naquela longa conversa, uma sucessão de sonhos impossíveis de se realizarem ou simplesmente cinematográficos demais para mim. Simplesmente o filme não dispunha dos códigos de comunicação necessários para falar comigo, era de uma felicidade eterna (mesmo que durasse apenas uma noite) que eu não cria.
OK dois. Nove anos depois, o diretor, incentivado sei lá pelo que, resolve filmar uma seqüência. Como em toda produção que é retomada décadas depois, senti um cheiro forte de mercantilismo barato no ar. Entretanto, fiquei curioso em saber como andavam as duas personagens com quem em outra oportunidade passara uma noite junto.
E foi então que “Antes do pôr-do-sol” me fisgou por completo. Se antes o americano e a francesa eram sonhadores, agora eles são tão ou mais céticos que eu. Por vias diversas (ele através de um casamento frustrado, ela por inúmeros relacionamentos falidos), ou por caminhos em comum, (os dois não terem se encontrado na data combinada), ambos haviam perdido a esperança no romance como algo perfeito e sem falhas.
Antes, contudo, percebemos que os dois protagonistas são “arquétipos” das personagens feminina e masculina. É claro que os dois não são exatamente iguais a quem assiste ao longa. Mas é impossível não se identificar com alguns detalhes de comportamento de ambos. Ela fala exageradamente, ele quer colocar piadas em suas vírgulas. Ele queria estar rodando o mundo numa motocicleta, ela mente sobre a memória que tem do último encontro deles. Ela faz alguns planos para tentar se manter em pé, ele quer apenas acordar mais um dia e continuar. Ela chega às lágrimas falando de como se lembrava da noite em que passaram juntos, ele fica desesperado quando ela, anteriormente, fingira não se recordar de “detalhes”. Ele acha que está jogando a vida fora, ela precisa de relacionamentos à distância porque não suporta um homem por muito tempo.
O que me deu alguma esperança (em mim mesmo, deixemos claro), foi que, até os mais incrédulos, e orgulhosos por isso, podem se pegar num lapso de otimismo. (Quem não viu o filme, pare de ler aqui). Ao final, ele vai deixá-la em casa, ela começa a dançar para ele. Ele tem que pegar um avião para ir embora de Paris, mas fica sentado. Ela lhe dirige a palavra: “Você vai perder o avião”, ele dá de ombros. Fim. Não se sabe, à exatidão, se ele sairá dali em segundos, ou se ignorará sua vida do outro lado do Atlântico na tentativa de ser tudo aquilo prometido pela imaginação, pela sua criação, pelos seus sonhos. Antes, ele próprio sugerira sutilmente que, de acordo com sua decisão, com o que você achasse que fosse acontecer, você poderia ser classificado ou como cético ou como romântico. E ele fica. Claro.
terça-feira, 9 de novembro de 2004
Polly Valente
Viajar mais de 400 km e gastar uma grana impensável só para assistir a um show de uma cantora completamente desconhecida do público em geral. Para muitos mortais essa frase é de uma incoerência atroz. Mas, se há uma resposta, por mais incompreensível que possa parecer é: faria novamente.
Ô, se não faria. Principalmente depois de assistir à inglesinha ao vivo, tomando proporções gigantescas (curioso é que todas as – poucas – matérias que li ressaltavam esse “engrandecimento” da cantora), com seu tradicional vestido vermelho de manga única, indo do sussurro ao urro, não tenho dúvidas. Valeu a pena ver Polly Jean Harvey.
Sua banda é formada por apenas três sujeitos, e ela própria, mas que parecem se multiplicar por inúmeros, tamanho é o peso que sai das caixas de som durante a apresentação. Originalmente são: 1) sujeito de moicano que pilota o baixão ocupando todos os espaços vazios; 2) magricelo de camisa flanelada quase grunge, cabelos despenteados e suados, na guitarra distorcida, barulheira e com pouquíssimo suingue; 3) um careca com as veias da cabeça altas por esmurrar a bateria; 4) PJ e nada além ou aquém.
Durante o show, entretanto, eles cambiaram suas posições demonstrando que, para tocar com a moçoila, devem saber cruzar e ainda correr para cabecear: o careca assume um teclado para dar os climas; o guitarrista vai para a bateria aumentar o tribalismo, há momentos de duas batucadas diferenciadas e ao mesmo tempo; o baixista pega a placa de substituição para ser o tecladista. Polly Jean empunha sua guitarra formato violão vermelha para combinar (parecida com as utilizadas por B.B. King) e constrói todas as bases.
Foram momentos sublimes. Músicas mais “batom borrado” que as originais sem, para isso, parecer que estávamos num show de heavy metal (que, aliás, foi a impressão que tive durante alguns momentos dos shows do Primal Scream). Era uma apresentação intimista, pequena. Ela parecia cantar para cada um de nós, independentemente do poderio de todos os instrumentos. Poderíamos assisti-la sentados, num lugar menor. Como afirmou Tamba, deu vontade de chorar. Como disse Marco, “dormiremos felizes”.
Viajar mais de 400 km e gastar uma grana impensável só para assistir a um show de uma cantora completamente desconhecida do público em geral. Para muitos mortais essa frase é de uma incoerência atroz. Mas, se há uma resposta, por mais incompreensível que possa parecer é: faria novamente.
Ô, se não faria. Principalmente depois de assistir à inglesinha ao vivo, tomando proporções gigantescas (curioso é que todas as – poucas – matérias que li ressaltavam esse “engrandecimento” da cantora), com seu tradicional vestido vermelho de manga única, indo do sussurro ao urro, não tenho dúvidas. Valeu a pena ver Polly Jean Harvey.
Sua banda é formada por apenas três sujeitos, e ela própria, mas que parecem se multiplicar por inúmeros, tamanho é o peso que sai das caixas de som durante a apresentação. Originalmente são: 1) sujeito de moicano que pilota o baixão ocupando todos os espaços vazios; 2) magricelo de camisa flanelada quase grunge, cabelos despenteados e suados, na guitarra distorcida, barulheira e com pouquíssimo suingue; 3) um careca com as veias da cabeça altas por esmurrar a bateria; 4) PJ e nada além ou aquém.
Durante o show, entretanto, eles cambiaram suas posições demonstrando que, para tocar com a moçoila, devem saber cruzar e ainda correr para cabecear: o careca assume um teclado para dar os climas; o guitarrista vai para a bateria aumentar o tribalismo, há momentos de duas batucadas diferenciadas e ao mesmo tempo; o baixista pega a placa de substituição para ser o tecladista. Polly Jean empunha sua guitarra formato violão vermelha para combinar (parecida com as utilizadas por B.B. King) e constrói todas as bases.
Foram momentos sublimes. Músicas mais “batom borrado” que as originais sem, para isso, parecer que estávamos num show de heavy metal (que, aliás, foi a impressão que tive durante alguns momentos dos shows do Primal Scream). Era uma apresentação intimista, pequena. Ela parecia cantar para cada um de nós, independentemente do poderio de todos os instrumentos. Poderíamos assisti-la sentados, num lugar menor. Como afirmou Tamba, deu vontade de chorar. Como disse Marco, “dormiremos felizes”.
sexta-feira, 5 de novembro de 2004
Vilã boa é vilã que apanha
Há umas semanas, Maria Do Carmo descontou toda a sua raiva de mãe que teve a filha raptada espancando a própria seqüestradora. Se a linha anterior pareceu indecifrável, principalmente porque as personagens eram de todo desconhecidas, melhor para você. Os ossos do ofício me fazem saber quem são elas, quando tal fato aconteceu e ter a noção de que o público em geral adorou e delira quando a mocinha consegue se vingar literalmente com as próprias mãos.
Explicando: Na novela das 9h, ‘Senhora do Destino’, a primeira filha de Do Carmo (Susana Vieira), Lindalva (Carolina Dieckmann), havia sido seqüestrada por Nazaré (Renata Sorrah) ainda na maternidade. História obviamente inspirada no caso do Pedrinho, aquele moleque de Goiás que só conheceu a verdadeira mãe com quinze anos, já que a mulher que o criou era uma ladra de bebês, inclusive estando nesse momento na cadeia.
OK, mas para que isso tudo?, é necessário perguntar num terceiro parágrafo. Este é o mote. Há várias novelas esse expediente (espancamento de uma personagem má por uma boa) tem se repetido e, sem nenhuma exceção, os resultados de audiências são absurdamente altos. Os noveleiros já fizeram um apanhado pela cabeça, mas ajudo aos outros mais atarefados com dois exemplos mais recentes: Maria Clara (Malu Mader) e Laura (Cláudia Abreu) em ‘Celebridade’; e Doris (Regina Alves) de ‘Mulheres apaixonadas’ que detestava os avôs e apanhou do próprio pai.
Numa conversa de botequim, uma amiga argumentou que as agressões eram, ao menos, para demonstrar que as mocinhas agora fazem coisas impensáveis na teledramaturgia de cinco, dez anos atrás. Entretanto, não foi ressaltado que, independente dessa ‘evolução’ no conceito da ação, estamos ainda dentro do mesmo esquema maniqueísta, boazinha sofre nas mãos do mal, boazinha vence o mal num golpe. O que mudou, apenas, foi que o ‘golpe’ agora não é mais força de expressão.
E o povo adorou. Todos os picos de audiência da novela sempre estiveram nos capítulos desenlaces. Essas cenas de violência quase explícita (sempre muito mal feitas, pessimamente produzidas, por sinal) funcionam como um ‘plot point’ perfeito. A partir daquele momento, as mocinhas já não serão mais tão submissas aos maltratos da malvada.
O que difere é apenas a incitação à violência. A mocinha não mais se contenta com uma vingança moral, mas tem que extravasar toda a raiva que foi acumulando em sua personagem desde o início da novela. Não é de assustar que a mãe de Pedrinho – a espectadora padrão, para quem a novela atual foi ‘feita’ – disse que a surra de Do Carmo funcionava como se fosse ela a bater na mãe meliante. O público vai ao delírio junto.
O péssimo é que os valores que estão sendo passados – além da tradicional fantasia de que as coisas tendem a se resolver independente da vontade das pessoas – é que para se sentir bem, tranqüilo consigo mesmo, você deve bater em seu inimigo. Quase como nas cavernas. A civilização do diálogo é passado, ou pior, ultrapassado.
Há umas semanas, Maria Do Carmo descontou toda a sua raiva de mãe que teve a filha raptada espancando a própria seqüestradora. Se a linha anterior pareceu indecifrável, principalmente porque as personagens eram de todo desconhecidas, melhor para você. Os ossos do ofício me fazem saber quem são elas, quando tal fato aconteceu e ter a noção de que o público em geral adorou e delira quando a mocinha consegue se vingar literalmente com as próprias mãos.
Explicando: Na novela das 9h, ‘Senhora do Destino’, a primeira filha de Do Carmo (Susana Vieira), Lindalva (Carolina Dieckmann), havia sido seqüestrada por Nazaré (Renata Sorrah) ainda na maternidade. História obviamente inspirada no caso do Pedrinho, aquele moleque de Goiás que só conheceu a verdadeira mãe com quinze anos, já que a mulher que o criou era uma ladra de bebês, inclusive estando nesse momento na cadeia.
OK, mas para que isso tudo?, é necessário perguntar num terceiro parágrafo. Este é o mote. Há várias novelas esse expediente (espancamento de uma personagem má por uma boa) tem se repetido e, sem nenhuma exceção, os resultados de audiências são absurdamente altos. Os noveleiros já fizeram um apanhado pela cabeça, mas ajudo aos outros mais atarefados com dois exemplos mais recentes: Maria Clara (Malu Mader) e Laura (Cláudia Abreu) em ‘Celebridade’; e Doris (Regina Alves) de ‘Mulheres apaixonadas’ que detestava os avôs e apanhou do próprio pai.
Numa conversa de botequim, uma amiga argumentou que as agressões eram, ao menos, para demonstrar que as mocinhas agora fazem coisas impensáveis na teledramaturgia de cinco, dez anos atrás. Entretanto, não foi ressaltado que, independente dessa ‘evolução’ no conceito da ação, estamos ainda dentro do mesmo esquema maniqueísta, boazinha sofre nas mãos do mal, boazinha vence o mal num golpe. O que mudou, apenas, foi que o ‘golpe’ agora não é mais força de expressão.
E o povo adorou. Todos os picos de audiência da novela sempre estiveram nos capítulos desenlaces. Essas cenas de violência quase explícita (sempre muito mal feitas, pessimamente produzidas, por sinal) funcionam como um ‘plot point’ perfeito. A partir daquele momento, as mocinhas já não serão mais tão submissas aos maltratos da malvada.
O que difere é apenas a incitação à violência. A mocinha não mais se contenta com uma vingança moral, mas tem que extravasar toda a raiva que foi acumulando em sua personagem desde o início da novela. Não é de assustar que a mãe de Pedrinho – a espectadora padrão, para quem a novela atual foi ‘feita’ – disse que a surra de Do Carmo funcionava como se fosse ela a bater na mãe meliante. O público vai ao delírio junto.
O péssimo é que os valores que estão sendo passados – além da tradicional fantasia de que as coisas tendem a se resolver independente da vontade das pessoas – é que para se sentir bem, tranqüilo consigo mesmo, você deve bater em seu inimigo. Quase como nas cavernas. A civilização do diálogo é passado, ou pior, ultrapassado.
sábado, 16 de outubro de 2004
Com vocês, Antônio Maria
Copacabana transcorria sem pressa envolta numa nuvem agradável de temperatura idem quando, neste ambiente tranqüilo, adentra uma coleção de mulheres de que, se não merecem respeito, anseiam admiração. Por coincidência lia uma coletânea de Antônio Maria e pensei: 'vou parar de cansar as minhas vistas e homenageá-lo de outra forma'. Foi assim, por um bom bocado de caminho. Eu, óculos escuros, mulheres de todos os calibres à minha volta, Copacabana deitada e quieta, sem ondas e cinza, contrastando com o Forte homônimo em seu extremo oriente.
Ontem ele fez o pior dos aniversários. Aquele que ninguém comemora, principalmente o aniversariante. Há 40 anos atrás, o pernambucano de 120 quilos portador de uma gargalhada estrondosa descontava um cheque num boteco e teve um segundo ataque cardíaco, na calçada perto do prédio de quarto e sala em que ele alugava uma unidade.
Costumava dizer que apenas ele e seu amigo Di (Cavalcanti) ainda não possuíam o sonho da casa própria. Autor de um dos clássicos brasileiros mais gravados no mundo inteiro ('Manhã de carnaval', em parceria com Luiz Bonfá. Descobri esse detalhe ontem, já que, de sua música, só leio as crônicas), e morre na sarjeta. A História, eu sei, é clichê. Mas como é curiosa.
Maria (para os menos íntimos), também soube na matéria dO Globo, é visto como um sujeito triste. Isso, como irretocavelmente afirma João Máximo, porque sabia fazer samba-canção de suas 'fossas monumentais como eram as daquele tempo'. O curioso, neste caso, é que eu tinha/tenho uma imagem completamente antagônica do sujeito.
Havemos de convir que ele nunca foi, quiçá será, tão famoso ou conhecido como o (Rubem) Braga, para desmitificar qualquer mal entendido. E, essa minha reação particular contrário ao senso comum deve ter como origem, o início de tudo. Só tive contato com o seu texto através de um escritor bem-conhecido pelo seu bom-humor: Verissimo. Numa crônica de três de junho de 1974 (depois reunido em seu 'Comédias da vida pública'), LFV comenta a reestréia de uma peça com texto de Maria: 'Brasileiro: Profissão Esperança'. E diz que 'faz muito bem em, de vez em quando, relembrar Antônio Maria'. O que logo é salientado no texto do gaúcho, porém, é a quantidade de frases memoráveis do plantel do filho caçula de Inocêncio Ferreira de Morais e Diva Araújo de Morais. Algumas:
'Eu, como sempre brilhante naquilo que irei dizer e em tudo o que poderia ser dito, na hora de falar não disse coisas nenhuma'.
'Quando alguém fala 'todavia' é porque a frase é decorada'
'Esta noite... esta chuva... estas reticências... sei lá'.
Demorei para me fazer o favor de adquirir algo de sua própria autoria. Depois descobri que esse meu entrave era motivado pelo fato de que sua obra só veio a ser reeditada ano passado, com pedidos de pelamordedeus do Joaquim Ferreira dos Santos. Antes disso, só com reza forte e em sebos. Aliás e inclusive, esse meu primeiro exemplar, se perdeu no buraco negro da casa do Zé. Comprei uma versão, agora há pouco, de 'Com vocês, Antônio Maria'. Leio como minutos de sabedoria: abro ao léu e traço a crônica que aparecer. Raramente me arrependo:
Na resposta à carta de uma leitora:
Sinto uma certa saudade daquilo que nunca vivi. Nostalgia, já ecoa em meus tímpanos. Pode ser. Apenas sei ao certo que, ao ler os seus textos, (parece) que vivo todo esse clima onírico - novamente. Coisas inexplicáveis. Como a morte aos 43 anos, como tantas outras coisas. Se valeu para alguma coisa, o dia de ontem, foi para rememorar Antônio Maria. E é sempre bom, de vez em quando, lembrar dele.
Ontem ele fez o pior dos aniversários. Aquele que ninguém comemora, principalmente o aniversariante. Há 40 anos atrás, o pernambucano de 120 quilos portador de uma gargalhada estrondosa descontava um cheque num boteco e teve um segundo ataque cardíaco, na calçada perto do prédio de quarto e sala em que ele alugava uma unidade.
Costumava dizer que apenas ele e seu amigo Di (Cavalcanti) ainda não possuíam o sonho da casa própria. Autor de um dos clássicos brasileiros mais gravados no mundo inteiro ('Manhã de carnaval', em parceria com Luiz Bonfá. Descobri esse detalhe ontem, já que, de sua música, só leio as crônicas), e morre na sarjeta. A História, eu sei, é clichê. Mas como é curiosa.
Maria (para os menos íntimos), também soube na matéria dO Globo, é visto como um sujeito triste. Isso, como irretocavelmente afirma João Máximo, porque sabia fazer samba-canção de suas 'fossas monumentais como eram as daquele tempo'. O curioso, neste caso, é que eu tinha/tenho uma imagem completamente antagônica do sujeito.
Havemos de convir que ele nunca foi, quiçá será, tão famoso ou conhecido como o (Rubem) Braga, para desmitificar qualquer mal entendido. E, essa minha reação particular contrário ao senso comum deve ter como origem, o início de tudo. Só tive contato com o seu texto através de um escritor bem-conhecido pelo seu bom-humor: Verissimo. Numa crônica de três de junho de 1974 (depois reunido em seu 'Comédias da vida pública'), LFV comenta a reestréia de uma peça com texto de Maria: 'Brasileiro: Profissão Esperança'. E diz que 'faz muito bem em, de vez em quando, relembrar Antônio Maria'. O que logo é salientado no texto do gaúcho, porém, é a quantidade de frases memoráveis do plantel do filho caçula de Inocêncio Ferreira de Morais e Diva Araújo de Morais. Algumas:
'Eu, como sempre brilhante naquilo que irei dizer e em tudo o que poderia ser dito, na hora de falar não disse coisas nenhuma'.
'Quando alguém fala 'todavia' é porque a frase é decorada'
'Esta noite... esta chuva... estas reticências... sei lá'.
Demorei para me fazer o favor de adquirir algo de sua própria autoria. Depois descobri que esse meu entrave era motivado pelo fato de que sua obra só veio a ser reeditada ano passado, com pedidos de pelamordedeus do Joaquim Ferreira dos Santos. Antes disso, só com reza forte e em sebos. Aliás e inclusive, esse meu primeiro exemplar, se perdeu no buraco negro da casa do Zé. Comprei uma versão, agora há pouco, de 'Com vocês, Antônio Maria'. Leio como minutos de sabedoria: abro ao léu e traço a crônica que aparecer. Raramente me arrependo:
'Nesse trecho do Leme*, a vida é sempre igual. Os carros batem na mesma esquina, muitas vezes os mesmos carros. Junta gente. As mesmas pessoas pessoas que saem dizendo, escandalizadas:* Nota minha: o autor se referia à esquina da Viveiros de Castro com a Prado Júnior.
- Nunca vi uma batida tão grande.
São iguais as comidas dos pequenos restaurantes de uma porta só. Iguais as mulheres de trottoir. A polícia é a mesma desde a fundação da cidade'.
Na resposta à carta de uma leitora:
'Meu filho, Eleutério veste-se mal, porque quem escolhe as roupas é o pai.'Sempre percebi um humor, um riso, mesmo que triste, até nos seus momentos mais amargos. Sorriso embutido este que combina com a sua gargalhada. Um riso não de otimismo retumbante e cego, mas de diversão. Daqueles que saíam todas as noites com Vinícius de Moraes numa Copacabana romântica, onde os pequenos inferninhos eram as filiais domiciliares.
E o nome, foi a senhora que escolheu?'
Sinto uma certa saudade daquilo que nunca vivi. Nostalgia, já ecoa em meus tímpanos. Pode ser. Apenas sei ao certo que, ao ler os seus textos, (parece) que vivo todo esse clima onírico - novamente. Coisas inexplicáveis. Como a morte aos 43 anos, como tantas outras coisas. Se valeu para alguma coisa, o dia de ontem, foi para rememorar Antônio Maria. E é sempre bom, de vez em quando, lembrar dele.
quarta-feira, 6 de outubro de 2004
Agora, naquela noite, ontem
Apenas no meio da noite percebi realmente o buraco negro em que você me deixou caindo. Já estava fora de casa há horas, com o intuito de me nublar, para que nenhuma lembrança caseira me tentasse. Queria desconectar todos os cabos que ligam a minha reação ao meu pensamento ou à minha memória. Transformar-me num zumbi que vagueia até o próximo sol, ou que fica estático no meio de uma pista lotada de desconhecidos, segurando um copo de qualquer coisa forte, esbarrando nas pessoas, olhos fechados, tentando se mover ao som genérico que aporta nos ouvidos. Precisava de anestésicos, algo que me suspendesse do chão, que não fizesse suportar a crueza, pois agora, naquela noite, ontem, eu não agüentaria.
E todo o planejado cumpria-se à risca. Acompanhava-me um camarada que encontrara duas amigas e eles todos conversavam animadamente enquanto eu me mantinha a uma distância segura, longe de qualquer interação. A minha saliva se tornava pastosa e eu não conseguia concatenar sinapses. Sentia-me desmembrado de qualquer humanidade, era só a fumaça branca e eu. Existiam casais e beijos por todos os lados, mas, juro, de onde eu estava não os avistava. Eram sempre dois pedaços de carne que se esmagavam nas esquinas de uma casa escura. Algo que facilmente poderia ser arranjado. Não foi exatamente isso que me recordou da minha ausência interna.
Sim, havia mulheres, sim, algumas desejosas, outras interessantes. Mas se confundiam num único rosto que eu não queria olhar porque era infinitamente conhecido e duplamente doloroso. Assim evitava focar minha visão em algum ponto nítido. Queria a abstração, o obtuso, o embaçado. O meu amigo, de tempos em tempos, me puxava para junto deles, para o chão duro, para uma conversa despretensiosa. Naquela hora, nesta véspera, no exato momento, os assuntos não me apeteciam, nenhum deles, qualquer que fosse. Em outra oportunidade, este meu próximo me apontou uma menina pequena que não parava de olhar em minha direção. Ah, se ela soubesse! Se ela suspeitasse da minha incapacidade de completar qualquer outrem. Se ela tivesse a noção da minha inutilidade, de como sou ridículo, da impossibilidade de fazê-la feliz mesmo que instantaneamente; se ela percebesse que eu era àquele momento um saco de ossos ambulante, sem veias quiçá artérias percorrendo os meus braços e pernas, que a minha caixa torácica expelira todo o meu sangue por desistência, por necessidade, por um pedido meu; se ela suspeitasse, ela não me olharia assim, dessa maneira, como se eu fosse a resposta para todas as suas argüições notívagas.
E foi então, num detalhe espacial, num pequeno rasgo da manta de narcóticos em que tinha me coberto, num minúsculo vão temporal, numa fuga ocular, quando tentamos não avistar e, sem perceber, os olhos caem em cima daquilo que havíamos evitado tão bem durante certo tempo. Eu enxergo um casal de namorados, que conhecia há décadas. E naquele momento eles não estão mais no lugar deles, mas eu e você e não havia mais ninguém ao nosso redor. Estávamos apenas acariciando um o rosto do outro, mirando-se nos olhos, sorrindo de satisfação plena, de não saber o porquê, de estar junto, de querer um bem eterno sem pensamento, de desejar de dentro, do estar junto. Eu queria você ali, aqui, ao meu lado, onde eles, os dois, e eu os invejava eternamente. Eu cobiçava com todos os meus poros, eu pulsava até a minha têmpora, eu latejava por dentro da minha pele, eu explodia quieto, eu percebia que esta realidade em que vivemos não me permitia ficar com você no momento em que eu desejava. E, por favor, não tentemos definir de outra maneira tudo o que aconteceu, de como nossa convivência rolou por debaixo da minha ignorância e eu não fui perspicaz o suficiente para alcançá-la. Eu queria aquele toque delicado em meu rosto e não tinha mais. Era isso que eu entendia.
Refugiei-me. Naquele momento, no exato instante eu precisava cambiar o ar que respiraria. Necessitava, qual um drogado de uma outra dose, não enxergar mais aquilo, não com esses olhos sóbrios que possuía, que possuo, que conseguem ver o todo e ainda imaginar um pouco além. Precisava achar o interruptor interno e desligá-lo. Bastava-me saber da minha completa nulidade por aquela noite, por hoje e para todo o sempre. Antepus meus pés um a um em direção ao banheiro, e na minha frente estava a pequena aludida anteriormente, esbarrei nela, tentei me desvencilhar nesta direção e só com muito esforço, quase físico, consegui rodeá-la. Andei vagaroso não percebendo todos os obstáculos humanos em que tropeçava, até a luz fria e forte do corredor para os toaletes.
E somente no ambiente antagônico ao da sedução observei na pequena logo atrás de mim. A presença dela quase me fecha a glote de angústia, me espreme na parede, com uma cobrança de uma atitude que não sei tomar, de um caminho imenso que podemos percorrer, mas eu não estava em condições de julgar qualidades e defeitos, e adentrei o masculino. Não cria nesta possibilidade, na coragem da menina de ter-me acompanhado, duvidava do óbvio e optei por me enganar com um outro tipo de verdade: a coincidência. Porém, esta durou pouquíssimo. Foi necessário apenas que saísse do cubículo para perceber que ela não tinha outra intenção naquele ambiente extremamente claro. Ela continuava parada, lavando o rosto pela enésima vez, e disfarçou o semblante assim que a encarei. E então? O que deveria ser feito? Será que ao homem é permitido este tipo de refugo? Inúmeras possibilidades e vozes se confundiam em centésimos na minha cabeça. Desde memórias de infância com meu pai me obrigando a tomar atitudes de homem para com meninas de oito, nove anos, quando o que eu queria era brincar mais um pouco, até a certeza tátil de que, inebriante melhor que aquela, talvez não encontrasse nunca. Por uma questão de destino – não coloquemos sorte ou azar – um ex-colega de trabalho entrou no ambiente logo em seguida e, ao me reconhecer, veio apertar-me a mão. Ficamos os dois, trocando amenidades e senti uma espécie de alívio. Não era necessário tomar uma atitude naquele momento. Logo ele me apontou a saída, para que voltássemos à escuridão. Não sem antes me perguntar de uma forma carinhosa por você. O que deveria ser respondido? Estava novamente cercado de pontos de interrogação sem nenhuma idéia da resposta correta a ser dada. Todos no lavabo escutariam a minha resposta. Isto, claro está, que inclui a pequena que continuava a lavar o rosto. Sem levantar nem a voz, e mesmo assim fazendo-me audível, não menti e disse que você estava longe.
No meio daquela neblina de danceteria, ao lado de meu camarada, perto das amigas dele, não percebi todos os aditivos fazendo efeito e logo estava flutuando, com o meu corpo desconexo, minha cabeça pendente, meu cérebro morto fazendo companhia ao músculo cardíaco. Não havia mais o meu entorno. E o fim de noite quase passa despercebido. Talvez não me recordasse de nada de ontem, no hoje. E então, uma pequena mão tocou-me delicadamente, como num sussurro, o que me fez despertar. Era a menina que havia sumido de minha percepção por dias inteiros e agora dialogava com apenas uma frase: “Eu admiro os homens fiéis”.
Apenas no meio da noite percebi realmente o buraco negro em que você me deixou caindo. Já estava fora de casa há horas, com o intuito de me nublar, para que nenhuma lembrança caseira me tentasse. Queria desconectar todos os cabos que ligam a minha reação ao meu pensamento ou à minha memória. Transformar-me num zumbi que vagueia até o próximo sol, ou que fica estático no meio de uma pista lotada de desconhecidos, segurando um copo de qualquer coisa forte, esbarrando nas pessoas, olhos fechados, tentando se mover ao som genérico que aporta nos ouvidos. Precisava de anestésicos, algo que me suspendesse do chão, que não fizesse suportar a crueza, pois agora, naquela noite, ontem, eu não agüentaria.
E todo o planejado cumpria-se à risca. Acompanhava-me um camarada que encontrara duas amigas e eles todos conversavam animadamente enquanto eu me mantinha a uma distância segura, longe de qualquer interação. A minha saliva se tornava pastosa e eu não conseguia concatenar sinapses. Sentia-me desmembrado de qualquer humanidade, era só a fumaça branca e eu. Existiam casais e beijos por todos os lados, mas, juro, de onde eu estava não os avistava. Eram sempre dois pedaços de carne que se esmagavam nas esquinas de uma casa escura. Algo que facilmente poderia ser arranjado. Não foi exatamente isso que me recordou da minha ausência interna.
Sim, havia mulheres, sim, algumas desejosas, outras interessantes. Mas se confundiam num único rosto que eu não queria olhar porque era infinitamente conhecido e duplamente doloroso. Assim evitava focar minha visão em algum ponto nítido. Queria a abstração, o obtuso, o embaçado. O meu amigo, de tempos em tempos, me puxava para junto deles, para o chão duro, para uma conversa despretensiosa. Naquela hora, nesta véspera, no exato momento, os assuntos não me apeteciam, nenhum deles, qualquer que fosse. Em outra oportunidade, este meu próximo me apontou uma menina pequena que não parava de olhar em minha direção. Ah, se ela soubesse! Se ela suspeitasse da minha incapacidade de completar qualquer outrem. Se ela tivesse a noção da minha inutilidade, de como sou ridículo, da impossibilidade de fazê-la feliz mesmo que instantaneamente; se ela percebesse que eu era àquele momento um saco de ossos ambulante, sem veias quiçá artérias percorrendo os meus braços e pernas, que a minha caixa torácica expelira todo o meu sangue por desistência, por necessidade, por um pedido meu; se ela suspeitasse, ela não me olharia assim, dessa maneira, como se eu fosse a resposta para todas as suas argüições notívagas.
E foi então, num detalhe espacial, num pequeno rasgo da manta de narcóticos em que tinha me coberto, num minúsculo vão temporal, numa fuga ocular, quando tentamos não avistar e, sem perceber, os olhos caem em cima daquilo que havíamos evitado tão bem durante certo tempo. Eu enxergo um casal de namorados, que conhecia há décadas. E naquele momento eles não estão mais no lugar deles, mas eu e você e não havia mais ninguém ao nosso redor. Estávamos apenas acariciando um o rosto do outro, mirando-se nos olhos, sorrindo de satisfação plena, de não saber o porquê, de estar junto, de querer um bem eterno sem pensamento, de desejar de dentro, do estar junto. Eu queria você ali, aqui, ao meu lado, onde eles, os dois, e eu os invejava eternamente. Eu cobiçava com todos os meus poros, eu pulsava até a minha têmpora, eu latejava por dentro da minha pele, eu explodia quieto, eu percebia que esta realidade em que vivemos não me permitia ficar com você no momento em que eu desejava. E, por favor, não tentemos definir de outra maneira tudo o que aconteceu, de como nossa convivência rolou por debaixo da minha ignorância e eu não fui perspicaz o suficiente para alcançá-la. Eu queria aquele toque delicado em meu rosto e não tinha mais. Era isso que eu entendia.
Refugiei-me. Naquele momento, no exato instante eu precisava cambiar o ar que respiraria. Necessitava, qual um drogado de uma outra dose, não enxergar mais aquilo, não com esses olhos sóbrios que possuía, que possuo, que conseguem ver o todo e ainda imaginar um pouco além. Precisava achar o interruptor interno e desligá-lo. Bastava-me saber da minha completa nulidade por aquela noite, por hoje e para todo o sempre. Antepus meus pés um a um em direção ao banheiro, e na minha frente estava a pequena aludida anteriormente, esbarrei nela, tentei me desvencilhar nesta direção e só com muito esforço, quase físico, consegui rodeá-la. Andei vagaroso não percebendo todos os obstáculos humanos em que tropeçava, até a luz fria e forte do corredor para os toaletes.
E somente no ambiente antagônico ao da sedução observei na pequena logo atrás de mim. A presença dela quase me fecha a glote de angústia, me espreme na parede, com uma cobrança de uma atitude que não sei tomar, de um caminho imenso que podemos percorrer, mas eu não estava em condições de julgar qualidades e defeitos, e adentrei o masculino. Não cria nesta possibilidade, na coragem da menina de ter-me acompanhado, duvidava do óbvio e optei por me enganar com um outro tipo de verdade: a coincidência. Porém, esta durou pouquíssimo. Foi necessário apenas que saísse do cubículo para perceber que ela não tinha outra intenção naquele ambiente extremamente claro. Ela continuava parada, lavando o rosto pela enésima vez, e disfarçou o semblante assim que a encarei. E então? O que deveria ser feito? Será que ao homem é permitido este tipo de refugo? Inúmeras possibilidades e vozes se confundiam em centésimos na minha cabeça. Desde memórias de infância com meu pai me obrigando a tomar atitudes de homem para com meninas de oito, nove anos, quando o que eu queria era brincar mais um pouco, até a certeza tátil de que, inebriante melhor que aquela, talvez não encontrasse nunca. Por uma questão de destino – não coloquemos sorte ou azar – um ex-colega de trabalho entrou no ambiente logo em seguida e, ao me reconhecer, veio apertar-me a mão. Ficamos os dois, trocando amenidades e senti uma espécie de alívio. Não era necessário tomar uma atitude naquele momento. Logo ele me apontou a saída, para que voltássemos à escuridão. Não sem antes me perguntar de uma forma carinhosa por você. O que deveria ser respondido? Estava novamente cercado de pontos de interrogação sem nenhuma idéia da resposta correta a ser dada. Todos no lavabo escutariam a minha resposta. Isto, claro está, que inclui a pequena que continuava a lavar o rosto. Sem levantar nem a voz, e mesmo assim fazendo-me audível, não menti e disse que você estava longe.
No meio daquela neblina de danceteria, ao lado de meu camarada, perto das amigas dele, não percebi todos os aditivos fazendo efeito e logo estava flutuando, com o meu corpo desconexo, minha cabeça pendente, meu cérebro morto fazendo companhia ao músculo cardíaco. Não havia mais o meu entorno. E o fim de noite quase passa despercebido. Talvez não me recordasse de nada de ontem, no hoje. E então, uma pequena mão tocou-me delicadamente, como num sussurro, o que me fez despertar. Era a menina que havia sumido de minha percepção por dias inteiros e agora dialogava com apenas uma frase: “Eu admiro os homens fiéis”.
segunda-feira, 4 de outubro de 2004
Festival do Rio - a primeira semana
Há uns dois anos atrás, li um artigo do Jorge Furtado no Correio Braziliense em que ele admitia da completa incapacidade em ranquear obras de arte, de maneira geral. Era um texto interessante porque ele começava contando que alguns anos antes tinha conversado com seu filho sobre os festivais de cinema. Seu argumento era que as competições cinematográficas eram uma tentativa de comparar elefantes com geladeiras. Melhor ainda se disser que tal crônica era para o especial do jornal sobre o Festival de Brasília de Cinema.
Bem isso tudo para dizer que depois de algum número obscuro de filmes acumulados neste Festival do Rio, desisti de dizer quais são os melhores ou os piores. Apenas direi que todos são válidos. Válido de se ver ou de se manter à distância. Nada de ‘o melhor’, quiçá ‘imperdível’; para tal só usarei argumentos frágeis e um instrumento não muito confiável. Isto, a minha memória.
Vale a pena ver de novo
A Pequena Lili: este francês do Claude Miller (camarada do Truffaut) me impressionou bastante, admito. A história, resumida, pode parecer boba, por isso não o farei. Mas a progressão de toda a trama, com diálogos afiados, personagens inesquecíveis (nunca, jamais olvidarei de Ludivine Sagnier na primeira seqüência deste longa) torna este exemplar bem interessante.
The edukators: é muito mais que o filme da Amélie Poulain da vez. No caso, o ator de ‘Adeus, Lênin’, Daniel Brühl. Até vinte minutos, parece uma história da década de 70. Depois você percebe que não tem a menor idéia do que vai rolar. Mas não é suspense clássico. Tem lição de moral. Desconsidere. É envolvente até o final, sua maior bola dentro.
Whisky: Um dos pouquíssimos filmes uruguaios que foram produzidos nos últimos anos. É pequeno e quase mudo. Retrata perfeitamente a monotonia de um judeu pequeno-empresário cujo irmão mora no Brasil. Rimos da comédia que é a vida privada, com piadas sobre o cotidiano metódico do protagonista. Engraçadinho.
Contra a parede: Comprei o ingresso como segunda-opção, mas este é o filme mais impactante até o momento. Não sei se gostei, nem se desgostei. Tem várias qualidades e uma confusão louca no roteiro. O início parece uma espécie de comédia sobre a relação sexual numa cultura exótica, algo como foi feito com ‘Casamento grego’. No caso, a turca. Entretanto, tinha muito sangue, desde sempre. Era óbvio que o diretor não deixaria passar esta oportunidade e logo em seguida, sem perceber, estamos vendo um dramalhão, quase mexicano. No caso, turco.
Como matei um santo: Um filme da Macedônia. Fiquei com um pé e meio atrás. Mas, aos poucos, este foi se confirmando como um filmão. Como nós somos parecidos com estes macedônios? Rola um tiroteio, os personagens estão dentro do ônibus, qual é a atitude deles? Mudam de assentos como se nada acontecesse. Vivem ao lado de uma guerra e tentam conviver com isso. Bem, alguns deles. Os outros dão título para o longa.
Abraço Partido: É péssimo admitir, mas os argentinos sabem fazer grandes filmes pequenos. Aqui, estamos, sem nos aperceber, numa história de redescoberta das origens. Numa galeria de Buenos Aires com italianos, judeus-polacos, coreanos, peruanos; nosso protagonista é um sujeito comum, um transeunte qualquer. E tem um desejo: ir morar na Europa, terra de seus antepassados. 'Abraço...' é tão legal que até o Batata vai gostar.
A face oculta da Lua: Um protagonista neurótico, extremamente estranho e feio, um diretor umbilical, um roteirista com tiradas inteligentes, e todos são o mesmo cara. Não é do novaiorquino que estamos falando, mas deste cineasta canadense da área francesa, Robert Lepage. O longa? Bem divertido para uma sessão da tarde.
Nem de mais, nem de menos
Céu azul: Animação coreana com a maior quantidade de clichês que já vi. Pior: ao comentar com o Zé sobre o dito-cujo, ele me descreveu outro filme da Coréia com o mesmíssimo mote. Originalidade não deve ser o forte destes moços dos olhos puxados. Fica no meio porque há visuais espetaculares.
Olga Benário: O longa da Alemanha é bem interessantinho. A história é boa, mas, mas... falta alguma coisa. As dramatizações são, digamos, desnecessárias. O diretor disse que só as utilizou em três oportunidades, para dar mais (oh!) drama. Podia dormir sem isso.
Soldados de pedra: Só fica aqui, e não ali embaixo, porque é da mostra sul-africana. O filme me lembrou 'top gun', mesmo não tendo nenhum parentesco com a produção americana. Existe um mineiro bom, outro mal, este luta contra aquele, todos sabemos por quem torcer; o malvado enlouquece, como que justificativa para morrer no final. Enfim, essas coisas.
Garota estratosfera: fui convencido a assistir esta produção alemã (outra), que se passa basicamente num submundo japonês. A trama era sobre uma menina belga que viaja para o outro lado do mundo para, além de ficar com o seu pseudo-namorado, trabalhar de acompanhante (!) num clube só de louras (!!). Um belo argumento, correto? O problema é a quantidade de oportunidades perdidas. O final é risível. Perdeu-se por um excesso de realismo.
Mantenha distância
Há dois filmes que são as coisas mais medonhas do mundo. Não valem nem esmiuçá-los em demasia. Contento-me em citar os nomes: Mods, um francês metido a inteligente que descobri só ontem não ser a produção de estréia de um péssimo cineasta; e Um vazio no coração, uma quase unanimidade. A exceção fica para os masoquistas. São, ambos e as suas maneiras, de uma ruindade extrema. Estes, sim, não tenho receio de dizer, são uma grande e malcheirosa merda.
Há uns dois anos atrás, li um artigo do Jorge Furtado no Correio Braziliense em que ele admitia da completa incapacidade em ranquear obras de arte, de maneira geral. Era um texto interessante porque ele começava contando que alguns anos antes tinha conversado com seu filho sobre os festivais de cinema. Seu argumento era que as competições cinematográficas eram uma tentativa de comparar elefantes com geladeiras. Melhor ainda se disser que tal crônica era para o especial do jornal sobre o Festival de Brasília de Cinema.
Bem isso tudo para dizer que depois de algum número obscuro de filmes acumulados neste Festival do Rio, desisti de dizer quais são os melhores ou os piores. Apenas direi que todos são válidos. Válido de se ver ou de se manter à distância. Nada de ‘o melhor’, quiçá ‘imperdível’; para tal só usarei argumentos frágeis e um instrumento não muito confiável. Isto, a minha memória.
Vale a pena ver de novo
A Pequena Lili: este francês do Claude Miller (camarada do Truffaut) me impressionou bastante, admito. A história, resumida, pode parecer boba, por isso não o farei. Mas a progressão de toda a trama, com diálogos afiados, personagens inesquecíveis (nunca, jamais olvidarei de Ludivine Sagnier na primeira seqüência deste longa) torna este exemplar bem interessante.
The edukators: é muito mais que o filme da Amélie Poulain da vez. No caso, o ator de ‘Adeus, Lênin’, Daniel Brühl. Até vinte minutos, parece uma história da década de 70. Depois você percebe que não tem a menor idéia do que vai rolar. Mas não é suspense clássico. Tem lição de moral. Desconsidere. É envolvente até o final, sua maior bola dentro.
Whisky: Um dos pouquíssimos filmes uruguaios que foram produzidos nos últimos anos. É pequeno e quase mudo. Retrata perfeitamente a monotonia de um judeu pequeno-empresário cujo irmão mora no Brasil. Rimos da comédia que é a vida privada, com piadas sobre o cotidiano metódico do protagonista. Engraçadinho.
Contra a parede: Comprei o ingresso como segunda-opção, mas este é o filme mais impactante até o momento. Não sei se gostei, nem se desgostei. Tem várias qualidades e uma confusão louca no roteiro. O início parece uma espécie de comédia sobre a relação sexual numa cultura exótica, algo como foi feito com ‘Casamento grego’. No caso, a turca. Entretanto, tinha muito sangue, desde sempre. Era óbvio que o diretor não deixaria passar esta oportunidade e logo em seguida, sem perceber, estamos vendo um dramalhão, quase mexicano. No caso, turco.
Como matei um santo: Um filme da Macedônia. Fiquei com um pé e meio atrás. Mas, aos poucos, este foi se confirmando como um filmão. Como nós somos parecidos com estes macedônios? Rola um tiroteio, os personagens estão dentro do ônibus, qual é a atitude deles? Mudam de assentos como se nada acontecesse. Vivem ao lado de uma guerra e tentam conviver com isso. Bem, alguns deles. Os outros dão título para o longa.
Abraço Partido: É péssimo admitir, mas os argentinos sabem fazer grandes filmes pequenos. Aqui, estamos, sem nos aperceber, numa história de redescoberta das origens. Numa galeria de Buenos Aires com italianos, judeus-polacos, coreanos, peruanos; nosso protagonista é um sujeito comum, um transeunte qualquer. E tem um desejo: ir morar na Europa, terra de seus antepassados. 'Abraço...' é tão legal que até o Batata vai gostar.
A face oculta da Lua: Um protagonista neurótico, extremamente estranho e feio, um diretor umbilical, um roteirista com tiradas inteligentes, e todos são o mesmo cara. Não é do novaiorquino que estamos falando, mas deste cineasta canadense da área francesa, Robert Lepage. O longa? Bem divertido para uma sessão da tarde.
Nem de mais, nem de menos
Céu azul: Animação coreana com a maior quantidade de clichês que já vi. Pior: ao comentar com o Zé sobre o dito-cujo, ele me descreveu outro filme da Coréia com o mesmíssimo mote. Originalidade não deve ser o forte destes moços dos olhos puxados. Fica no meio porque há visuais espetaculares.
Olga Benário: O longa da Alemanha é bem interessantinho. A história é boa, mas, mas... falta alguma coisa. As dramatizações são, digamos, desnecessárias. O diretor disse que só as utilizou em três oportunidades, para dar mais (oh!) drama. Podia dormir sem isso.
Soldados de pedra: Só fica aqui, e não ali embaixo, porque é da mostra sul-africana. O filme me lembrou 'top gun', mesmo não tendo nenhum parentesco com a produção americana. Existe um mineiro bom, outro mal, este luta contra aquele, todos sabemos por quem torcer; o malvado enlouquece, como que justificativa para morrer no final. Enfim, essas coisas.
Garota estratosfera: fui convencido a assistir esta produção alemã (outra), que se passa basicamente num submundo japonês. A trama era sobre uma menina belga que viaja para o outro lado do mundo para, além de ficar com o seu pseudo-namorado, trabalhar de acompanhante (!) num clube só de louras (!!). Um belo argumento, correto? O problema é a quantidade de oportunidades perdidas. O final é risível. Perdeu-se por um excesso de realismo.
Mantenha distância
Há dois filmes que são as coisas mais medonhas do mundo. Não valem nem esmiuçá-los em demasia. Contento-me em citar os nomes: Mods, um francês metido a inteligente que descobri só ontem não ser a produção de estréia de um péssimo cineasta; e Um vazio no coração, uma quase unanimidade. A exceção fica para os masoquistas. São, ambos e as suas maneiras, de uma ruindade extrema. Estes, sim, não tenho receio de dizer, são uma grande e malcheirosa merda.
quarta-feira, 29 de setembro de 2004
Quarto de hotel
Deitado num sofá-cama desmontado, luzes apagadas, olhos enervados e abertos. A janela à frente deixa passar a lâmpada fria do corredor que nunca é desligada. Quando antevejo uma sombra, me encrespo ainda mais: pode ser agora, devo saber como agir, mas não consigo programar este futuro. E é exatamente esta tensão que não me deixa dormir. A dúvida, a ansiedade, o nervosismo do completo absurdo que acabara de ouvir e da infinidade de conseqüências a que isso pode nos carregar. Sim, porque ela está ali, ao meu lado direito, dormindo sobre a cama de casal. Ela, depois de tomar consciência de toda a história pela qual passou, caiu num choro aos soluços, começando com os olhos marejados, o nariz vermelho, as lágrimas caindo; ela, sem forças, estafada até as últimas conseqüências, sem nenhuma energia. Ela, inocente, dorme o sono daqueles que foram derrotados por trapaça; dos agoniados, que tentaram lutar com tudo o que tinham, mas não havia muito o que fazer. E a energia foi se extirpando ao lutar contra um muro intransponível, foi diminuindo, finalizando até que o caminho único foi uma espécie de desmaio.
Eu aqui, minha cabeça dá voltas sem que possa acompanhar todos os caminhos percorridos. Quando menos espero, quando quero anotar os detalhes, quando desejo praticar este exercício que me acalma, já percorro outras lógicas, outros temores, outras saídas, outros planos. Raciocino para saber quem era o homem causador de toda esta balbúrdia quase brega e sigo a passagem marcada. Quarenta anos, classe-média e, como todos, conservador (havíamos conversado sobre política e ele me assustara com a sobriedade e força dos argumentos moralistas), com um bigode fora de moda para comprovar. Pai de duas filhas pequenas, meninas de destinos incertos ou infelizes... Havíamos conhecido uma delas, treze anos no máximo. Gostava de uma cantora pop americana, como o chavão. Era quietinha, ficou no canto, nos dirigiu a palavra uma única vez para perguntar algo sobre o nosso exotismo. Estava assustada, não imaginava nada além das suas fronteiras, quem eram aqueles com palavreados diferentes, entonações engraçadas? Será que um dia esse homem agora culpado por todas as nossas indecisões, todos os nossos medos, será que um dia ele irá se voltar para essa pequenina loura? Será que ele vai ser capaz de fazer algo dessa natureza? Será que ele terá algum tipo de trava porque ela é carne sua, sangue seu, e escolhe estranhos para poder liberar todas as suas escrotidões? Juro: espero que não. Não imagino quais seriam as conseqüências ou não quero chegar a tanto. Parece um roteiro de algum escritor sádico, que inventa as mais perversões apenas com o intuito de chocar. É incrível, na acepção única da palavra, quando encontramos a menos aprazível ficção ao dobrar a esquina.
É tão inacreditável: e se for uma fantasia dela, daquela que está deitada sobre a cama, que não tem nenhum vínculo comigo além da breve troca de gentilezas tradicionais entre conhecidos? Ela estava um pouco alta, me admitira, será que não houve uma confusão, uma mal-entendido, será que todas as palavras usadas não foram apenas para ilustrar uma possibilidade, algo que ela deveria evitar? Essas são argüições infinitas e praticamente irrespondíveis. Poderia continuar indefinidamente com os pontos de interrogação e nunca saberia como completar a lacuna da resposta. Não estava com eles, não posso interpretar sob meus olhos o acontecido, tenho que confiar nas partes, neste caso, na única pessoa que é minha conhecida real neste louco estado. O grande problema é que tudo faz um sentido assustador. Só por isso eu não gostaria de acreditar, não é possível que possamos viver tamanho lugar-comum.
O homem de bigodes gostava de trazer-nos bebida comprada do bolso dele quando era possível. Nossa geladeira sempre tinha cerveja de várias qualidades, com a desculpa de que deveríamos prová-las a todas e escolhermos a melhor. E se fosse apenas isso, toda esta trama de quinta não faria nenhum sentido. O problema foi o que aconteceu em um dia específico. A nossa ligação com ele, nossa dependência é quase total. As outras opções são andar a pé, ou esperar um ônibus pior que os de costume para ir trabalhar neste lugar que junta o provinciano e a estupidez dos transeuntes com o constante alto faturamento dos mesmos. Ele comumente nos traz para casa, para este hotel de beira de estrada, que parece saído de um filme de terror – mais um elemento para acrescentar na falta de originalidade de toda a trama. Nesta noite (já havia escurecido), era 26 de dezembro, ele me daria carona. Ele chega um pouco alterado, com a língua um pouco dormente, as palavras emborrachadas, os olhos piscando vagarosamente, o raciocínio lento. Saímos do restaurante e ele resolveu parar numa loja de conveniência para comprar uma cerveja. Perguntou se eu queria, aceitei de pronto para não fazer uma desfeita. A minha vontade na realidade era pequena. Voltou com uma garrafa grande, porém com tampa abre-fácil. Perguntou-me se era comum termos engradados assim de onde eu vinha, respondi que destes, somente em bares e para dividirmos. Ele fica uns instantes em silêncio, como que raciocinando o que deveria dizer a partir de minhas colocações. Resolvo quebrar o silêncio, aquele aspecto pesado, e pergunto onde fica uma cidade que já ouvira dizer, e sabia que era por perto. Eu ficaria feliz numa simples resposta afirmando que era por perto e que ele um dia nos levaria lá. Entretanto ele me pergunta, num tom de alguém que tivesse descoberto a pólvora sem a possibilidade de eu negar, se eu queria conhecer o vilarejo. Antes que pudesse balbuciar, ele já entrara num retorno a beira da estrada e nos estávamos a caminho.
A avenida é lúgubre, parecia que atravessávamos um bosque, com árvores em ambos os lados e nenhuma iluminação, além dos faróis do carro. Tudo era uma completa quietude, só quebrado em duas oportunidades, quando ele me pede para tomar cuidado com minha garrafa, pois se fôssemos parados por policiais, ele estaria mal, aquele não era o meu país; e quando ele afirma que o lugar que eu gostaria de conhecer é ridiculamente pequeno, não havia nada para fazer. Parecíamos sozinhos. De quando em quando, ele tirava os olhos da estrada e virava-se para mim e sorria alcoolicamente. Sentia-me cansado, havia trabalhado por mais de doze horas, a cerveja me dava sono, não conseguia manter uma clareza quanto ao que acontecia ao meu redor. Apenas era algo exageradamente estranho. Eu preferia estar em casa, mas não havia a possibilidade de recusar uma gentileza do homem que em todas as oportunidades que tivera foi-nos simpático. Era agüentar mais um pouco e logo estaria descansando. Estava neste exercício de paciência quando ele tirou a mão direita do volante e colocou atrás do meu banco. Virou-se para mim novamente e não sorriu; seus olhos pareciam mais abertos que anteriormente, o bigode parecia saltar de dentro do rosto, sua expressão era tensa. Levantei-me no banco e tentei ficar ereto para demonstrar uma firmeza que naquele momento não possuía. Ele evitou olhar-me novamente até que falou que havíamos chegado à cidadezinha. Consistia numa rodovia com alguns estabelecimentos comerciais em ambos os lados. Sem pedir minha opinião, ele atravessou o lugarejo e se embrenhou entre as árvores numa pequena rua com iluminação parca. Acordei de imediato e me segurei com força na porta do carro. Estava assustado em demasia para tomar alguma decisão, apenas queria ir embora. A mão dele continuava atrás do meu banco; os olhos injetados eram os mesmos e eu estava num lugar desconhecido, longe de qualquer vestígio de civilização. Não sabia o que fazer, estava por completo sob as decisões dele. No meio da mata ele me olhou novamente e o sorriso havia voltado, porém era agora sarcástico, de quem conhece todo o resto do jogo e gosta de aplicar sustos. Parecia satisfeito com o meu óbvio desconforto. Chegamos numa clareira e ele contou que dali saía com um de seus barcos para pescar no rio o qual podíamos avistar. Para fingir controle ou porque não tinha nenhuma perspectiva de raciocínio e encadeamento lógico, repliquei que não avistava o tal riacho. Pareceu-lhe a melhor resposta que eu poderia dar-lhe. Não pôde conter o sorriso e inquiriu-me se gostaria de avistar o rio mais de perto. Tentando manter o clima dentro do civilizado, disse para ficar para outra oportunidade, que estava muito cansado, que gostaria apenas de ir embora. Ele me olhou por alguns segundos com o ar mais lascivo que avistei em toda a minha existência. Agora, me parece que ele havia entendido minha resposta como uma aceitação de suas regras pérfidas e apenas quisesse postergar o que para ele era inevitável. Não sabia o que dizer e creio que qualquer manifestação minha naquele momento seria encarado desta maneira. O impulso de pular do carro me passou duas ou três vezes, mas ainda cria que todo o processo, todas as minhas interpretações das atitudes dele, podiam ser errôneas. O que eu sentia era inenarrável, era uma agonia parecida com a que eu sinto agora, algo como não haver a possibilidade de imaginar como esta ridícula história pode se desenrolar. Até que ponto, até quando podemos nos comportar como civilizados e quando temos que lutar pela sobrevivência com o que for possível e ao alcance. Depois disso possuía a certeza de que ele era capaz de fazer qualquer mal para satisfazer a si mesmo. Mas não tinha provas.
O que torna a trama ainda mais melodramática é que ele me contou, em oportunidades espaçadas, possuir um irmão gêmeo. No dia descrito acima, me confirmara que vinha da casa dele. Os dois – me garantiu – quando pequenos, haviam desenvolvido uma língua própria, para se comunicarem sem que os pais entendessem. Também gostava de repetir que ambos eram muito próximos ao ponto de um saber o que o outro pensava sem que precisassem conversar. Não me parece possível, ou pelo menos crível, ou racional ou qualquer outra palavra que retrate a realidade crua, que os dois brinquem de trocar as personalidades. Entretanto, a maneira como ele cambia de atitudes quando está bêbado, é impressionante. Em outra oportunidade, voltou a me oferecer carona. Havia se atrasado, por isso já o esperava pronto, no balcão do estabelecimento. Chegou, tentou falar com algumas pessoas do restaurante e logo foi interrompido por um casal de turistas que gostaria de saber mais sobre a região histórica, onde nos encontrávamos. Ele começou o seu discurso de guia, com fortes tendências tradicionais e me olhava a cada vírgula para que eu o aprovasse, ou pelo menos para conferir se eu estava reparando com afinco nele, ou para confirmar as minhas reações. Quando terminou, 45 minutos depois, a primeira pergunta que me fez foi se eu havia gostado do que ele disse. Respondi que não prestara muita atenção – o que era a verdade – porque novamente sentia-me esgotado. Havia algum tempo desde a carona descrita anteriormente, tinha sido em sua última folga e era raro coincidir com dias em que eu trabalhava. Ele chegava sempre embriagado porque passava essas tardes livres com o irmão, me confidenciou. Saímos da lanchonete e ele, como se quisesse repetir algo, ou terminar um assunto pendente, estacionou o carro num posto de gasolina onde podia comprar cerveja. Perguntou-me se gostaria de acompanhá-lo na bebida. Antes que qualquer razão, antes de ter qualquer lembrança, retorqui-lhe que não, que não queria porque gostaria de ir rapidamente para a casa. Tenho um certo receio de afirmar isto assim, peremptoriamente, mas observei uma decepção no homem, me olhando quase que com tristeza. Como se eu ousasse não seguir as regras estabelecidas por ele, em nosso último encontro. Levou-me para casa com rapidez e falando sobre assuntos genéricos e amplos, como se quisesse desviar a atenção do pequeno incidente.
Agora, em frente a esta janela, não consigo me acalmar. Sei que ele possui quinze diferentes tipos de armas – são para caçar, me contara em outras oportunidades. A janela de vidro ordinário não será nenhum entrave para ele, caso queira realmente fazer uma loucura e concluir esta narrativa absurda. Quando amanhecer, acordarei os dois aqui e sairemos para um lugar com outras pessoas, que não seja tão perdido no meio de coisa alguma. Por enquanto, tenho que ficar desperto para não ser pego de surpresa. Não tenho idéia do que farei, caso algo insano venha a acontecer, mas nem que eu quisesse, pregaria os olhos agora.
Deitado num sofá-cama desmontado, luzes apagadas, olhos enervados e abertos. A janela à frente deixa passar a lâmpada fria do corredor que nunca é desligada. Quando antevejo uma sombra, me encrespo ainda mais: pode ser agora, devo saber como agir, mas não consigo programar este futuro. E é exatamente esta tensão que não me deixa dormir. A dúvida, a ansiedade, o nervosismo do completo absurdo que acabara de ouvir e da infinidade de conseqüências a que isso pode nos carregar. Sim, porque ela está ali, ao meu lado direito, dormindo sobre a cama de casal. Ela, depois de tomar consciência de toda a história pela qual passou, caiu num choro aos soluços, começando com os olhos marejados, o nariz vermelho, as lágrimas caindo; ela, sem forças, estafada até as últimas conseqüências, sem nenhuma energia. Ela, inocente, dorme o sono daqueles que foram derrotados por trapaça; dos agoniados, que tentaram lutar com tudo o que tinham, mas não havia muito o que fazer. E a energia foi se extirpando ao lutar contra um muro intransponível, foi diminuindo, finalizando até que o caminho único foi uma espécie de desmaio.
Eu aqui, minha cabeça dá voltas sem que possa acompanhar todos os caminhos percorridos. Quando menos espero, quando quero anotar os detalhes, quando desejo praticar este exercício que me acalma, já percorro outras lógicas, outros temores, outras saídas, outros planos. Raciocino para saber quem era o homem causador de toda esta balbúrdia quase brega e sigo a passagem marcada. Quarenta anos, classe-média e, como todos, conservador (havíamos conversado sobre política e ele me assustara com a sobriedade e força dos argumentos moralistas), com um bigode fora de moda para comprovar. Pai de duas filhas pequenas, meninas de destinos incertos ou infelizes... Havíamos conhecido uma delas, treze anos no máximo. Gostava de uma cantora pop americana, como o chavão. Era quietinha, ficou no canto, nos dirigiu a palavra uma única vez para perguntar algo sobre o nosso exotismo. Estava assustada, não imaginava nada além das suas fronteiras, quem eram aqueles com palavreados diferentes, entonações engraçadas? Será que um dia esse homem agora culpado por todas as nossas indecisões, todos os nossos medos, será que um dia ele irá se voltar para essa pequenina loura? Será que ele vai ser capaz de fazer algo dessa natureza? Será que ele terá algum tipo de trava porque ela é carne sua, sangue seu, e escolhe estranhos para poder liberar todas as suas escrotidões? Juro: espero que não. Não imagino quais seriam as conseqüências ou não quero chegar a tanto. Parece um roteiro de algum escritor sádico, que inventa as mais perversões apenas com o intuito de chocar. É incrível, na acepção única da palavra, quando encontramos a menos aprazível ficção ao dobrar a esquina.
É tão inacreditável: e se for uma fantasia dela, daquela que está deitada sobre a cama, que não tem nenhum vínculo comigo além da breve troca de gentilezas tradicionais entre conhecidos? Ela estava um pouco alta, me admitira, será que não houve uma confusão, uma mal-entendido, será que todas as palavras usadas não foram apenas para ilustrar uma possibilidade, algo que ela deveria evitar? Essas são argüições infinitas e praticamente irrespondíveis. Poderia continuar indefinidamente com os pontos de interrogação e nunca saberia como completar a lacuna da resposta. Não estava com eles, não posso interpretar sob meus olhos o acontecido, tenho que confiar nas partes, neste caso, na única pessoa que é minha conhecida real neste louco estado. O grande problema é que tudo faz um sentido assustador. Só por isso eu não gostaria de acreditar, não é possível que possamos viver tamanho lugar-comum.
O homem de bigodes gostava de trazer-nos bebida comprada do bolso dele quando era possível. Nossa geladeira sempre tinha cerveja de várias qualidades, com a desculpa de que deveríamos prová-las a todas e escolhermos a melhor. E se fosse apenas isso, toda esta trama de quinta não faria nenhum sentido. O problema foi o que aconteceu em um dia específico. A nossa ligação com ele, nossa dependência é quase total. As outras opções são andar a pé, ou esperar um ônibus pior que os de costume para ir trabalhar neste lugar que junta o provinciano e a estupidez dos transeuntes com o constante alto faturamento dos mesmos. Ele comumente nos traz para casa, para este hotel de beira de estrada, que parece saído de um filme de terror – mais um elemento para acrescentar na falta de originalidade de toda a trama. Nesta noite (já havia escurecido), era 26 de dezembro, ele me daria carona. Ele chega um pouco alterado, com a língua um pouco dormente, as palavras emborrachadas, os olhos piscando vagarosamente, o raciocínio lento. Saímos do restaurante e ele resolveu parar numa loja de conveniência para comprar uma cerveja. Perguntou se eu queria, aceitei de pronto para não fazer uma desfeita. A minha vontade na realidade era pequena. Voltou com uma garrafa grande, porém com tampa abre-fácil. Perguntou-me se era comum termos engradados assim de onde eu vinha, respondi que destes, somente em bares e para dividirmos. Ele fica uns instantes em silêncio, como que raciocinando o que deveria dizer a partir de minhas colocações. Resolvo quebrar o silêncio, aquele aspecto pesado, e pergunto onde fica uma cidade que já ouvira dizer, e sabia que era por perto. Eu ficaria feliz numa simples resposta afirmando que era por perto e que ele um dia nos levaria lá. Entretanto ele me pergunta, num tom de alguém que tivesse descoberto a pólvora sem a possibilidade de eu negar, se eu queria conhecer o vilarejo. Antes que pudesse balbuciar, ele já entrara num retorno a beira da estrada e nos estávamos a caminho.
A avenida é lúgubre, parecia que atravessávamos um bosque, com árvores em ambos os lados e nenhuma iluminação, além dos faróis do carro. Tudo era uma completa quietude, só quebrado em duas oportunidades, quando ele me pede para tomar cuidado com minha garrafa, pois se fôssemos parados por policiais, ele estaria mal, aquele não era o meu país; e quando ele afirma que o lugar que eu gostaria de conhecer é ridiculamente pequeno, não havia nada para fazer. Parecíamos sozinhos. De quando em quando, ele tirava os olhos da estrada e virava-se para mim e sorria alcoolicamente. Sentia-me cansado, havia trabalhado por mais de doze horas, a cerveja me dava sono, não conseguia manter uma clareza quanto ao que acontecia ao meu redor. Apenas era algo exageradamente estranho. Eu preferia estar em casa, mas não havia a possibilidade de recusar uma gentileza do homem que em todas as oportunidades que tivera foi-nos simpático. Era agüentar mais um pouco e logo estaria descansando. Estava neste exercício de paciência quando ele tirou a mão direita do volante e colocou atrás do meu banco. Virou-se para mim novamente e não sorriu; seus olhos pareciam mais abertos que anteriormente, o bigode parecia saltar de dentro do rosto, sua expressão era tensa. Levantei-me no banco e tentei ficar ereto para demonstrar uma firmeza que naquele momento não possuía. Ele evitou olhar-me novamente até que falou que havíamos chegado à cidadezinha. Consistia numa rodovia com alguns estabelecimentos comerciais em ambos os lados. Sem pedir minha opinião, ele atravessou o lugarejo e se embrenhou entre as árvores numa pequena rua com iluminação parca. Acordei de imediato e me segurei com força na porta do carro. Estava assustado em demasia para tomar alguma decisão, apenas queria ir embora. A mão dele continuava atrás do meu banco; os olhos injetados eram os mesmos e eu estava num lugar desconhecido, longe de qualquer vestígio de civilização. Não sabia o que fazer, estava por completo sob as decisões dele. No meio da mata ele me olhou novamente e o sorriso havia voltado, porém era agora sarcástico, de quem conhece todo o resto do jogo e gosta de aplicar sustos. Parecia satisfeito com o meu óbvio desconforto. Chegamos numa clareira e ele contou que dali saía com um de seus barcos para pescar no rio o qual podíamos avistar. Para fingir controle ou porque não tinha nenhuma perspectiva de raciocínio e encadeamento lógico, repliquei que não avistava o tal riacho. Pareceu-lhe a melhor resposta que eu poderia dar-lhe. Não pôde conter o sorriso e inquiriu-me se gostaria de avistar o rio mais de perto. Tentando manter o clima dentro do civilizado, disse para ficar para outra oportunidade, que estava muito cansado, que gostaria apenas de ir embora. Ele me olhou por alguns segundos com o ar mais lascivo que avistei em toda a minha existência. Agora, me parece que ele havia entendido minha resposta como uma aceitação de suas regras pérfidas e apenas quisesse postergar o que para ele era inevitável. Não sabia o que dizer e creio que qualquer manifestação minha naquele momento seria encarado desta maneira. O impulso de pular do carro me passou duas ou três vezes, mas ainda cria que todo o processo, todas as minhas interpretações das atitudes dele, podiam ser errôneas. O que eu sentia era inenarrável, era uma agonia parecida com a que eu sinto agora, algo como não haver a possibilidade de imaginar como esta ridícula história pode se desenrolar. Até que ponto, até quando podemos nos comportar como civilizados e quando temos que lutar pela sobrevivência com o que for possível e ao alcance. Depois disso possuía a certeza de que ele era capaz de fazer qualquer mal para satisfazer a si mesmo. Mas não tinha provas.
O que torna a trama ainda mais melodramática é que ele me contou, em oportunidades espaçadas, possuir um irmão gêmeo. No dia descrito acima, me confirmara que vinha da casa dele. Os dois – me garantiu – quando pequenos, haviam desenvolvido uma língua própria, para se comunicarem sem que os pais entendessem. Também gostava de repetir que ambos eram muito próximos ao ponto de um saber o que o outro pensava sem que precisassem conversar. Não me parece possível, ou pelo menos crível, ou racional ou qualquer outra palavra que retrate a realidade crua, que os dois brinquem de trocar as personalidades. Entretanto, a maneira como ele cambia de atitudes quando está bêbado, é impressionante. Em outra oportunidade, voltou a me oferecer carona. Havia se atrasado, por isso já o esperava pronto, no balcão do estabelecimento. Chegou, tentou falar com algumas pessoas do restaurante e logo foi interrompido por um casal de turistas que gostaria de saber mais sobre a região histórica, onde nos encontrávamos. Ele começou o seu discurso de guia, com fortes tendências tradicionais e me olhava a cada vírgula para que eu o aprovasse, ou pelo menos para conferir se eu estava reparando com afinco nele, ou para confirmar as minhas reações. Quando terminou, 45 minutos depois, a primeira pergunta que me fez foi se eu havia gostado do que ele disse. Respondi que não prestara muita atenção – o que era a verdade – porque novamente sentia-me esgotado. Havia algum tempo desde a carona descrita anteriormente, tinha sido em sua última folga e era raro coincidir com dias em que eu trabalhava. Ele chegava sempre embriagado porque passava essas tardes livres com o irmão, me confidenciou. Saímos da lanchonete e ele, como se quisesse repetir algo, ou terminar um assunto pendente, estacionou o carro num posto de gasolina onde podia comprar cerveja. Perguntou-me se gostaria de acompanhá-lo na bebida. Antes que qualquer razão, antes de ter qualquer lembrança, retorqui-lhe que não, que não queria porque gostaria de ir rapidamente para a casa. Tenho um certo receio de afirmar isto assim, peremptoriamente, mas observei uma decepção no homem, me olhando quase que com tristeza. Como se eu ousasse não seguir as regras estabelecidas por ele, em nosso último encontro. Levou-me para casa com rapidez e falando sobre assuntos genéricos e amplos, como se quisesse desviar a atenção do pequeno incidente.
Agora, em frente a esta janela, não consigo me acalmar. Sei que ele possui quinze diferentes tipos de armas – são para caçar, me contara em outras oportunidades. A janela de vidro ordinário não será nenhum entrave para ele, caso queira realmente fazer uma loucura e concluir esta narrativa absurda. Quando amanhecer, acordarei os dois aqui e sairemos para um lugar com outras pessoas, que não seja tão perdido no meio de coisa alguma. Por enquanto, tenho que ficar desperto para não ser pego de surpresa. Não tenho idéia do que farei, caso algo insano venha a acontecer, mas nem que eu quisesse, pregaria os olhos agora.
sexta-feira, 24 de setembro de 2004
Comentário rápido
Acabei de ver 'Olga' e achei bem bom. Não é a perfeição, principalmente quanto às suas limitações orçamentárias, mas há cenas em que é possível chegar aos soluços, de tão forte e emocionante. Só como um exemplo pequeno, de trama paralela que é assim mesmo excepcional: a história da mãe do Prestes, dona Leocádia. A senhora nada jovem luta de todas as maneiras que pode e conhece (atravessa toda a Europa, reúne uma série de exigências, recorre a advogados, se auto-exila no México etc.) para ficar com a neta e libertar a nora. É mais que comovente, é desestruturador. Isso porque a própria mãe de Olga cagou solenemente para a filha que jazia nos campos de concentração.
Obviamente não é do similar nacional que discorro, mas de 'Olga Benário: uma vida pela revolução', docu-drama (seja lá o que isso queira dizer na prática) franco-germânico, do ano passado, dum sujeito chamado Galip Iyitanir, turco de nascimento, mas alemão por adoção.
E fiquei pensando em como foi possível estragarem esta história que já nasceu pronta? Como diria uma personagem de Tieta 'mistério'.
Olga, após sua morte, o fim da segunda guerra mundial, o isolamento alemão oriental e a divisão de Berlim, se transformou num grande nome do socialismo. Uma pena que existia essa bobeira de heróis do bem e heróis do mal. Pelo que o filme defende, Olga está acima dessas pequenas divisões maniqueístas.
Aconselho: no Festival do Rio.
Acabei de ver 'Olga' e achei bem bom. Não é a perfeição, principalmente quanto às suas limitações orçamentárias, mas há cenas em que é possível chegar aos soluços, de tão forte e emocionante. Só como um exemplo pequeno, de trama paralela que é assim mesmo excepcional: a história da mãe do Prestes, dona Leocádia. A senhora nada jovem luta de todas as maneiras que pode e conhece (atravessa toda a Europa, reúne uma série de exigências, recorre a advogados, se auto-exila no México etc.) para ficar com a neta e libertar a nora. É mais que comovente, é desestruturador. Isso porque a própria mãe de Olga cagou solenemente para a filha que jazia nos campos de concentração.
Obviamente não é do similar nacional que discorro, mas de 'Olga Benário: uma vida pela revolução', docu-drama (seja lá o que isso queira dizer na prática) franco-germânico, do ano passado, dum sujeito chamado Galip Iyitanir, turco de nascimento, mas alemão por adoção.
E fiquei pensando em como foi possível estragarem esta história que já nasceu pronta? Como diria uma personagem de Tieta 'mistério'.
Olga, após sua morte, o fim da segunda guerra mundial, o isolamento alemão oriental e a divisão de Berlim, se transformou num grande nome do socialismo. Uma pena que existia essa bobeira de heróis do bem e heróis do mal. Pelo que o filme defende, Olga está acima dessas pequenas divisões maniqueístas.
Aconselho: no Festival do Rio.
quinta-feira, 23 de setembro de 2004
A carona
O coração estremeceu ainda mais o volante em que ele se apoiava. Era uma batida compassada, mesmo que em crescente quanto ao ritmo, e forte, intensificara-se, as vibrações saíam pela caixa torácica, passavam pelo cotovelo, punho, dedos e atingiam a guia. E se depois de todo o imbróglio comentasse com alguém as razões dessa sutil transformação, era capaz de receber um corrente de risos dos interlocutores. Ele mesmo já havia passado por isso, conhecia a cena, avistava em todas as viagens esses hippies que vão dominar o mundo, como costumava comentar na roda dos companheiros.
(1)
Virou o rosto para o lado oposto, tentou se ater às imagens dos pastos essencialmente bovinos que se repetiam nas estradas desde o Rio, percebeu o raciocínio brotando na cabeça e tentou se segurar, não gostaria de virar o rosto, de conhecer o outro lado, de saber quem era aquela ali, de onde vinha para onde ia, por que será que saiu de casa, qual deve ser o seu destino? Deve ser muito bom viver assim na estrada, sem emprego, sem obrigações, é novinha, parece que é bonita, e se eu parasse, não... não há tempo, tenho que chegar em São Mateus o mais rápido possível, e minha família, o que é que minha mulher diria caso me visse agora?, a menina pode ser uma maníaca, não, isso seria ridículo, ela... agora dá para ver, é melhor olhar para o outro lado...
Pelo retrovisor reparou no dedo média dela apontando em sua direção. Uma agonia daquilo que poderia ser feito, dito, concluído, de todo o mundo que se reservava dentro de uma não-ação, ou melhor, dentro de uma atitude, tomar a iniciativa, poderia ter dominado o destino e propor-lhe outras interseções, uma companhia para uma viagem chata e repetitiva, sempre as mesmas vacas comendo o mesmo capim, com o sol a pino e a lua com estrelas, sem distinção de dias da semana ou feriados, era empurrar o acelerador, segurar a roda e seguir adiante. Doze horas depois aporta na pequena cidade desconhecida no norte do Espírito Santo, fazia o que tinha que fazer e voltava. Mais horas de asfalto quente e calor a pino e quando chegava no Rio, a mulher estava no mesmo lugar em que a havia deixado, como uma novela de que se perde alguns capítulos, mas sempre se sabe o fio da meada, basta assisti-la novamente por poucos segundos. Agora a possibilidade de mudança de canal, de transformação do programa havia ficado para trás, e talvez tal brecha dentro do seu cotidiano não se abrisse mais. E é provável que não fosse tomar qualquer atitude que diferisse desta, caso algo semelhante se repetisse.
(2)
Só para demonstrar para si mesmo que não havia qualquer incômodo, reduziu a marcha e parou, ofereceria carona. Os amigos costumavam contar que sempre era possível ouvir alguns casos loucos dessa gente que toma droga e vê coisas que não existem. E como falavam? Tinham aquele vocabulário próprio, uma cadência singular, um desprendimento quanto às normas, eram desregrados por natureza e escolha.
Do momento em que a avistou (cabelos castanhos claros, longos e mal cuidados, bolsa de renda a tira-colo, roupas largas, tecidos leves) até quando pisou no freio e a conseqüência do ato, não fixou o pensamento em nada específico e deixou que o instinto aflorasse – outro imprevisto, caso conseguisse se lembrar de todos os detalhes da história na manhã seguinte.
Com o veículo em descendente, a moça abre um sorriso de satisfação completa, como se tivesse alcançado o objetivo. Abaixa-se e apanha a mala arremessando sobre o ombro adentro. Conseguira a última carona na bifurcação da saída de Vitória, estava parada ali fazia horas. Se fosse em décadas passadas, ‘se fosse em 60, ou 70’, tinha esta convicção, ‘haveria mais amor no coração’.
***
Pintas, foi o primeiro detalhe que ele reparou no rosto da moça quando ela falou um ‘oi’ através da janela. Instantaneamente caiu no passado da primeira menina, era extremamente novo, mas o rosto pequeno e delicado, com as sardas, a transformavam num ser mais divino; despertou anos mais tarde, com a moça ao seu lado, de fora do carro perguntando para onde é que ele iria. A primeira troca de palavras. Como ele deveria se comportar, o que responder para não aparentar um completo idiota, ela não era assim tão mais nova que eu, se eu não tivesse casado tão cedo, ela poderia ser a, creio que deve ser dois anos mais nova que Lúcia, no máximo, ‘O quê?’, ela insiste em saber para onde ele vai. Ele responde que vai para o norte, diminuindo as palavras.
Um silêncio toma por completo o carro e ele pensa que nunca mais conseguiria quebrar a inércia. Sentia uma barreira entre os dois, o ar era espesso, era denso, ele mal conseguia respirar. Novamente o corpo latejou por causa do sangue que percorria suas artérias. ‘Eu também’ – rápida, fluída, em comunhão com o ambiente, dona de si. Ele tenta algo mais consistente e especifica que vai para o norte do Espírito Santo, numa pequena cidade chamada São Mateus. ‘Bah, já eu não sei exatamente onde parar. Eu quero conhecer o Brasil que é enorme’. Ele percebe o sotaque, mas não tem vontade de inquiri-la sobre sua origem. Não parecia certo. Ela não deveria ter destino, nem início, só o caminho. Ela pergunta o que é que ele faz. ‘É muito chato o que eu faço’. ‘Não deve ser, para estar na estrada’, Mas e quando a estrada se torna o seu cotidiano?, ele tem vontade de lhe perguntar para demonstrar que estava errada, mas sentiu que ela não lhe entenderia. Ficaram quietos os dois. ‘Você gosta de música?’, ela já mexia no toca-fitas do carro dele, nenhuma estação pegava, estavam num vale. ‘Tem alguma fita legal aqui?’, abre o porta-luvas e encontra uma da Elis Regina. ‘Gostava tanto dela’, segura o pequeno objeto, ele se divide entre manter a atenção na estrada ou na pequena inquieta ao seu lado. Parecia em constante ebulição, como se fosse capaz de cometer atos impensáveis imediatamente, apenas se houvesse algum impulso.
Colocou a fita, era um show ao vivo. Elis, no auge, voz firme, comentários entre cada música num tom borracho, ele sempre gostara desse jeito de Elis cantar, levando à máxima potência qualquer de suas músicas, ‘Ela era muito coração e as canções... ela as transformava em suas, né?’, ela pergunta e ele larga a sua frente e olha diretamente para ela, assustado, como se ela soubesse exatamente o que estava pensando. Ela não era exatamente o que a lenda dizia. Ia de encontro a qualquer idéia que ele já tinha tomado conhecimento, surpreendia-se a cada palavra, se embebedava de cada gesto, era excepcional tê-la por perto, saber que outras vidas acontecem lá fora, tão diferentes da sua. Teve um pouco de vontade em saber como ela se comportava longe daquele pequeno teatro de boas ações e quero ser sua amiga, importava saber quem era aquela menina do seu lado, de dentro dela, percorrer seus mais íntimos recantos. ‘Acho que vou com você até São Mateus, posso?’, ela inquiriu ainda antes da primeira música acabar.
(a)
Apareceu algo estranho dentro de si, como se uma oportunidade única aparecesse, mas que não tivesse a coragem suficiente para passar de determinados limites. Não era uma ligação com a mulher, com os amigos, com todos os conhecidos, com nada que ele vivera até o momento, apenas não acreditava no que ele estava vivendo. Uma angústia dominou-o, não cria em si próprio, não sabia se aquilo poderia acontecer com qualquer pessoa, não sabia agir quando tinha sorte, não sabia remar a favor da maré. Toda a sua vida tinha lutado, estar como estava, era fruto de trabalho pessoal e de mais ninguém. Era de família pobre, conseguira esse emprego com o patrão do cunhado exatamente porque parecia ser homem sério, não desses que farreiam todas as noites. Casara-se muito novo, acordava às sete todos os dias, mesmo nos que não trabalhava, seguia um método para que a vida não lhe apresentasse nenhuma surpresa indevida, para saber se comportar em qualquer das atitudes possíveis e agora, quando menos percebeu, tinha uma desconhecida sentada ao seu lado, perguntando se podia ficar com ele até o final da estrada, até o final de tudo, até quando não poderia mais. Queria propor uma alternativa que ele não tinha antevisto e ele deveria se comportar com isso, deveria dar uma resposta. Ele tinha que ser alguém, com iniciativa, ou optar por continuar sua vida que não era a melhor, mas também não lhe reservava grandes sustos. E então percebeu que não sabia mais falar, não lembrava como se conversava, como manter um diálogo, pronunciar palavras, deixar escapar sua opinião, para onde queria que corresse toda a história, não enxergava objetivo em uma das opções que ele possuía e isso o consumia. Como ele era tão cego dessa maneira? Precisou uma ou duas resposta, não concluiu nada e calou-se ainda mais.
(b)
‘Claro’, rateou e depois se perguntou se era realmente assim tão óbvio, se queria que ela ficasse com ele até São Mateus, se não era muito arriscado, se saberia se comportar, se era o correto. Não obtinha respostas, não havia resultados possíveis. As batidas do coração aumentaram de volume e ensurdeceram tudo a sua volta, turvando sua vista, tendo apenas o caminho a sua frente. Sentiu suas mãos frias e suadas, o corpo inteiro gelado, só a cabeça pesando e o pescoço sem forças, a vista embaçava de um branco que apaga das beiradas ao centro, como uma borracha que corrige os erros num caderno escolar. Ela tocou na sua coxa e ele voltou a si. Escutou numa voz calma se ele estava bem e no instante seguinte já se sentia regularizado. O toque, o carinho, a calma, a delicadeza e principalmente a preocupação, deram a ele algum tipo de força que o despertou do torpor, do abismo que havia se metido. Naquele instante eram conhecidos, haviam se ligado intimamente, um dentro do outro, um a partir do outro, estavam conectados. Não importava o que ele pensasse, como agiria, o que quisesse, quais fossem suas intenções, ela entenderia. Não era em São Mateus que ele pensava, não era dali a quatro quilômetros, nem no Rio de Janeiro. Era naquele meio de nada, com vacas comendo os capins que insistem em nascer da mesma maneira há séculos. Era esse sem sentido que ele teve vontade de incrementar, que ele queria figurar, colocar novas modalidades dentro da ordem pré-estabelecida. Queria fazer algo diferente só porque era possível, mesmo que não fosse o certo, mas isso não importava. Mesmo porque para pensar no que era errado deveria lembrar de outras pessoas e ele agora duvidava de qualquer outro ser no mundo. Talvez não existisse nada além daqueles morros. Não saberia dizer, só aquela menina quase da sua idade, de pele branca, que demonstrava uma vivência única. O amanhã talvez chegasse, e ele poderia comprovar, mas antes ele iria dormir, e quando acordasse, descobriria.
O coração estremeceu ainda mais o volante em que ele se apoiava. Era uma batida compassada, mesmo que em crescente quanto ao ritmo, e forte, intensificara-se, as vibrações saíam pela caixa torácica, passavam pelo cotovelo, punho, dedos e atingiam a guia. E se depois de todo o imbróglio comentasse com alguém as razões dessa sutil transformação, era capaz de receber um corrente de risos dos interlocutores. Ele mesmo já havia passado por isso, conhecia a cena, avistava em todas as viagens esses hippies que vão dominar o mundo, como costumava comentar na roda dos companheiros.
(1)
Virou o rosto para o lado oposto, tentou se ater às imagens dos pastos essencialmente bovinos que se repetiam nas estradas desde o Rio, percebeu o raciocínio brotando na cabeça e tentou se segurar, não gostaria de virar o rosto, de conhecer o outro lado, de saber quem era aquela ali, de onde vinha para onde ia, por que será que saiu de casa, qual deve ser o seu destino? Deve ser muito bom viver assim na estrada, sem emprego, sem obrigações, é novinha, parece que é bonita, e se eu parasse, não... não há tempo, tenho que chegar em São Mateus o mais rápido possível, e minha família, o que é que minha mulher diria caso me visse agora?, a menina pode ser uma maníaca, não, isso seria ridículo, ela... agora dá para ver, é melhor olhar para o outro lado...
Pelo retrovisor reparou no dedo média dela apontando em sua direção. Uma agonia daquilo que poderia ser feito, dito, concluído, de todo o mundo que se reservava dentro de uma não-ação, ou melhor, dentro de uma atitude, tomar a iniciativa, poderia ter dominado o destino e propor-lhe outras interseções, uma companhia para uma viagem chata e repetitiva, sempre as mesmas vacas comendo o mesmo capim, com o sol a pino e a lua com estrelas, sem distinção de dias da semana ou feriados, era empurrar o acelerador, segurar a roda e seguir adiante. Doze horas depois aporta na pequena cidade desconhecida no norte do Espírito Santo, fazia o que tinha que fazer e voltava. Mais horas de asfalto quente e calor a pino e quando chegava no Rio, a mulher estava no mesmo lugar em que a havia deixado, como uma novela de que se perde alguns capítulos, mas sempre se sabe o fio da meada, basta assisti-la novamente por poucos segundos. Agora a possibilidade de mudança de canal, de transformação do programa havia ficado para trás, e talvez tal brecha dentro do seu cotidiano não se abrisse mais. E é provável que não fosse tomar qualquer atitude que diferisse desta, caso algo semelhante se repetisse.
(2)
Só para demonstrar para si mesmo que não havia qualquer incômodo, reduziu a marcha e parou, ofereceria carona. Os amigos costumavam contar que sempre era possível ouvir alguns casos loucos dessa gente que toma droga e vê coisas que não existem. E como falavam? Tinham aquele vocabulário próprio, uma cadência singular, um desprendimento quanto às normas, eram desregrados por natureza e escolha.
Do momento em que a avistou (cabelos castanhos claros, longos e mal cuidados, bolsa de renda a tira-colo, roupas largas, tecidos leves) até quando pisou no freio e a conseqüência do ato, não fixou o pensamento em nada específico e deixou que o instinto aflorasse – outro imprevisto, caso conseguisse se lembrar de todos os detalhes da história na manhã seguinte.
Com o veículo em descendente, a moça abre um sorriso de satisfação completa, como se tivesse alcançado o objetivo. Abaixa-se e apanha a mala arremessando sobre o ombro adentro. Conseguira a última carona na bifurcação da saída de Vitória, estava parada ali fazia horas. Se fosse em décadas passadas, ‘se fosse em 60, ou 70’, tinha esta convicção, ‘haveria mais amor no coração’.
***
Pintas, foi o primeiro detalhe que ele reparou no rosto da moça quando ela falou um ‘oi’ através da janela. Instantaneamente caiu no passado da primeira menina, era extremamente novo, mas o rosto pequeno e delicado, com as sardas, a transformavam num ser mais divino; despertou anos mais tarde, com a moça ao seu lado, de fora do carro perguntando para onde é que ele iria. A primeira troca de palavras. Como ele deveria se comportar, o que responder para não aparentar um completo idiota, ela não era assim tão mais nova que eu, se eu não tivesse casado tão cedo, ela poderia ser a, creio que deve ser dois anos mais nova que Lúcia, no máximo, ‘O quê?’, ela insiste em saber para onde ele vai. Ele responde que vai para o norte, diminuindo as palavras.
Um silêncio toma por completo o carro e ele pensa que nunca mais conseguiria quebrar a inércia. Sentia uma barreira entre os dois, o ar era espesso, era denso, ele mal conseguia respirar. Novamente o corpo latejou por causa do sangue que percorria suas artérias. ‘Eu também’ – rápida, fluída, em comunhão com o ambiente, dona de si. Ele tenta algo mais consistente e especifica que vai para o norte do Espírito Santo, numa pequena cidade chamada São Mateus. ‘Bah, já eu não sei exatamente onde parar. Eu quero conhecer o Brasil que é enorme’. Ele percebe o sotaque, mas não tem vontade de inquiri-la sobre sua origem. Não parecia certo. Ela não deveria ter destino, nem início, só o caminho. Ela pergunta o que é que ele faz. ‘É muito chato o que eu faço’. ‘Não deve ser, para estar na estrada’, Mas e quando a estrada se torna o seu cotidiano?, ele tem vontade de lhe perguntar para demonstrar que estava errada, mas sentiu que ela não lhe entenderia. Ficaram quietos os dois. ‘Você gosta de música?’, ela já mexia no toca-fitas do carro dele, nenhuma estação pegava, estavam num vale. ‘Tem alguma fita legal aqui?’, abre o porta-luvas e encontra uma da Elis Regina. ‘Gostava tanto dela’, segura o pequeno objeto, ele se divide entre manter a atenção na estrada ou na pequena inquieta ao seu lado. Parecia em constante ebulição, como se fosse capaz de cometer atos impensáveis imediatamente, apenas se houvesse algum impulso.
Colocou a fita, era um show ao vivo. Elis, no auge, voz firme, comentários entre cada música num tom borracho, ele sempre gostara desse jeito de Elis cantar, levando à máxima potência qualquer de suas músicas, ‘Ela era muito coração e as canções... ela as transformava em suas, né?’, ela pergunta e ele larga a sua frente e olha diretamente para ela, assustado, como se ela soubesse exatamente o que estava pensando. Ela não era exatamente o que a lenda dizia. Ia de encontro a qualquer idéia que ele já tinha tomado conhecimento, surpreendia-se a cada palavra, se embebedava de cada gesto, era excepcional tê-la por perto, saber que outras vidas acontecem lá fora, tão diferentes da sua. Teve um pouco de vontade em saber como ela se comportava longe daquele pequeno teatro de boas ações e quero ser sua amiga, importava saber quem era aquela menina do seu lado, de dentro dela, percorrer seus mais íntimos recantos. ‘Acho que vou com você até São Mateus, posso?’, ela inquiriu ainda antes da primeira música acabar.
(a)
Apareceu algo estranho dentro de si, como se uma oportunidade única aparecesse, mas que não tivesse a coragem suficiente para passar de determinados limites. Não era uma ligação com a mulher, com os amigos, com todos os conhecidos, com nada que ele vivera até o momento, apenas não acreditava no que ele estava vivendo. Uma angústia dominou-o, não cria em si próprio, não sabia se aquilo poderia acontecer com qualquer pessoa, não sabia agir quando tinha sorte, não sabia remar a favor da maré. Toda a sua vida tinha lutado, estar como estava, era fruto de trabalho pessoal e de mais ninguém. Era de família pobre, conseguira esse emprego com o patrão do cunhado exatamente porque parecia ser homem sério, não desses que farreiam todas as noites. Casara-se muito novo, acordava às sete todos os dias, mesmo nos que não trabalhava, seguia um método para que a vida não lhe apresentasse nenhuma surpresa indevida, para saber se comportar em qualquer das atitudes possíveis e agora, quando menos percebeu, tinha uma desconhecida sentada ao seu lado, perguntando se podia ficar com ele até o final da estrada, até o final de tudo, até quando não poderia mais. Queria propor uma alternativa que ele não tinha antevisto e ele deveria se comportar com isso, deveria dar uma resposta. Ele tinha que ser alguém, com iniciativa, ou optar por continuar sua vida que não era a melhor, mas também não lhe reservava grandes sustos. E então percebeu que não sabia mais falar, não lembrava como se conversava, como manter um diálogo, pronunciar palavras, deixar escapar sua opinião, para onde queria que corresse toda a história, não enxergava objetivo em uma das opções que ele possuía e isso o consumia. Como ele era tão cego dessa maneira? Precisou uma ou duas resposta, não concluiu nada e calou-se ainda mais.
(b)
‘Claro’, rateou e depois se perguntou se era realmente assim tão óbvio, se queria que ela ficasse com ele até São Mateus, se não era muito arriscado, se saberia se comportar, se era o correto. Não obtinha respostas, não havia resultados possíveis. As batidas do coração aumentaram de volume e ensurdeceram tudo a sua volta, turvando sua vista, tendo apenas o caminho a sua frente. Sentiu suas mãos frias e suadas, o corpo inteiro gelado, só a cabeça pesando e o pescoço sem forças, a vista embaçava de um branco que apaga das beiradas ao centro, como uma borracha que corrige os erros num caderno escolar. Ela tocou na sua coxa e ele voltou a si. Escutou numa voz calma se ele estava bem e no instante seguinte já se sentia regularizado. O toque, o carinho, a calma, a delicadeza e principalmente a preocupação, deram a ele algum tipo de força que o despertou do torpor, do abismo que havia se metido. Naquele instante eram conhecidos, haviam se ligado intimamente, um dentro do outro, um a partir do outro, estavam conectados. Não importava o que ele pensasse, como agiria, o que quisesse, quais fossem suas intenções, ela entenderia. Não era em São Mateus que ele pensava, não era dali a quatro quilômetros, nem no Rio de Janeiro. Era naquele meio de nada, com vacas comendo os capins que insistem em nascer da mesma maneira há séculos. Era esse sem sentido que ele teve vontade de incrementar, que ele queria figurar, colocar novas modalidades dentro da ordem pré-estabelecida. Queria fazer algo diferente só porque era possível, mesmo que não fosse o certo, mas isso não importava. Mesmo porque para pensar no que era errado deveria lembrar de outras pessoas e ele agora duvidava de qualquer outro ser no mundo. Talvez não existisse nada além daqueles morros. Não saberia dizer, só aquela menina quase da sua idade, de pele branca, que demonstrava uma vivência única. O amanhã talvez chegasse, e ele poderia comprovar, mas antes ele iria dormir, e quando acordasse, descobriria.
segunda-feira, 13 de setembro de 2004
Argentina 4, Brasil 2
Cometários sobre uma coincidente superioridade hermana em um campo literário.
Há um sebo de livros na rua Buarque de Macedo - primeira à direita na Rua do Catete, não me perguntem o número - espetacular.
Faz merecer tal acunha por:
a) se organizar como um livraria moderna, com sessões tanto de filosofia grega antiga e literatura russa quanto de livros sobre regiões desaparecidas (como Atlântida e coisas do gênero) e de ficção científica;
b) a organização: tem uma variedade absurda de assuntos, num pequeno espaço, sem que para isso fique entulhado;
c) ser possível encontrar livros que pareciam pertencer somente ou às livrarias de novos ou às edições antigas já esgotadas.
Nas minhas duas últimas incursões, em semanas intermitentes, deixei dois chequinhos que, apesar do número de obras adquiridas, me quebraram no meio do mês. Foram quatro argentinos: 'Livro de areia', Borges; 'Histórias de amor' Adolfo Bioy Casares; 'Octaedro' e 'História de Cronópios e Famas' do Cortázar - este algo raro. E dois tupiniquins: 'E com você, Antônio Maria', crônicas do pernambucano-carioca publicadas no Última Hora nas décadas de 50 e 60; e um livro compilação de outros dois, de contos, do Otto Lara Resende: 'As Pompas do mundo' e 'Retrato na Gávea'.
De todos estes, li apenas os dois primeiros e duas faces do terceiro.
O borgeano mostra um pouco mais do mesmo. Entretanto, ao considerarmos que o JLB estava há mais de cinco obras sem enxergar nada além de pequenos lapsos do amarelo e do azul, e ter voltado ao fantástico com maestria em alguns contos (ex.: 'O outro' e o que titulou o livro), já valem a pena. Inclusive é muito válido ressaltar a constante oralidade dos seus textos. Parece que estamos conversando com o velho. E, de certa forma, foi mais ou menos isso que aconteceu.
O Bioy Casares foi, de certa forma, uma decepção. Não que ele seja ruim, mas depois de ter lido a 'Invenção de Morel', o seu primeiro romance, a minha expectativa era altíssima. Nesta coletânea de contos em questão, ele não trafega, em nenhum momento no absurdo, nas linguagens cifradas, numa imaginação carregada, na fantasia. É quase um diário de um protagonista - quase sempre o mesmo - que narra suas conquistas, perdas, sacanagens, ironias, jogos de relacionamentos homem-mulher, essas coisas. Fica um tom acima das 'Comédias da vida privada' e um abaixo de Nelson Rodrigues. Mas nada que não tenhamos já visto algumas vezes. O talvez melhor escrito é aquele em que Bioy Casares tenta decifrar o que as mulheres desejam, num título sugestivo e discutível: 'Todas as mulheres são iguais'. Em sua argumentação, ele defende que, independente de formação, gênio, criação ou índole, todas as fêmeas da espécie só procuram uma coisa: segurança. A conferir.
'Octaedro' de Júlio Cortázar foi o responsável por todo esta enrolação até agora. O primeiro conto é, sem medo do exagero, perfeito. O segundo também está acima da média. Por cronologia:
'Liliane chorando' é escrito por um homem desenganado. Ele imagina como será a vida de todos que ele detém alguma afeição depois de morrer. Fala do seu enterro, como se comportarão os amigos, a mãe, Liliane - sua mulher, Alfredo, o quase-irmão. Descreve as coisas impregnado de uma emoção genuína, como se tivesse uma saudade, uma tristeza por não poder participar da vida de todos os que ficarem. Leva toda a narrativa, com várias brincadeiras quanto ao formato (há um momento que ele escreve 'fotograficamente' - sensacional!) até quando há um final que não pode ser chamado de surpreendente, mas em que você diz 'Não...' na tentativa de evitar o que não dá mais. Impressionantemente bom.
'Os Passos no rastro' começa com um comentário explicativo asssim: 'Crônica um pouco tediosa, estilo de exercício mais que exercício de estilo de um, digamos, Henry James que tivesse tomado chimarrão em qualquer pátio portenho ou platense dos anos vinte'. Por isso, comento-o outro dia, quando falar de um dos maiores ingleses nascidos nos EUA em todos os tempos.
Orelhadas sobre os brasileiros, só no futuro.
Cometários sobre uma coincidente superioridade hermana em um campo literário.
Há um sebo de livros na rua Buarque de Macedo - primeira à direita na Rua do Catete, não me perguntem o número - espetacular.
Faz merecer tal acunha por:
a) se organizar como um livraria moderna, com sessões tanto de filosofia grega antiga e literatura russa quanto de livros sobre regiões desaparecidas (como Atlântida e coisas do gênero) e de ficção científica;
b) a organização: tem uma variedade absurda de assuntos, num pequeno espaço, sem que para isso fique entulhado;
c) ser possível encontrar livros que pareciam pertencer somente ou às livrarias de novos ou às edições antigas já esgotadas.
Nas minhas duas últimas incursões, em semanas intermitentes, deixei dois chequinhos que, apesar do número de obras adquiridas, me quebraram no meio do mês. Foram quatro argentinos: 'Livro de areia', Borges; 'Histórias de amor' Adolfo Bioy Casares; 'Octaedro' e 'História de Cronópios e Famas' do Cortázar - este algo raro. E dois tupiniquins: 'E com você, Antônio Maria', crônicas do pernambucano-carioca publicadas no Última Hora nas décadas de 50 e 60; e um livro compilação de outros dois, de contos, do Otto Lara Resende: 'As Pompas do mundo' e 'Retrato na Gávea'.
De todos estes, li apenas os dois primeiros e duas faces do terceiro.
O borgeano mostra um pouco mais do mesmo. Entretanto, ao considerarmos que o JLB estava há mais de cinco obras sem enxergar nada além de pequenos lapsos do amarelo e do azul, e ter voltado ao fantástico com maestria em alguns contos (ex.: 'O outro' e o que titulou o livro), já valem a pena. Inclusive é muito válido ressaltar a constante oralidade dos seus textos. Parece que estamos conversando com o velho. E, de certa forma, foi mais ou menos isso que aconteceu.
O Bioy Casares foi, de certa forma, uma decepção. Não que ele seja ruim, mas depois de ter lido a 'Invenção de Morel', o seu primeiro romance, a minha expectativa era altíssima. Nesta coletânea de contos em questão, ele não trafega, em nenhum momento no absurdo, nas linguagens cifradas, numa imaginação carregada, na fantasia. É quase um diário de um protagonista - quase sempre o mesmo - que narra suas conquistas, perdas, sacanagens, ironias, jogos de relacionamentos homem-mulher, essas coisas. Fica um tom acima das 'Comédias da vida privada' e um abaixo de Nelson Rodrigues. Mas nada que não tenhamos já visto algumas vezes. O talvez melhor escrito é aquele em que Bioy Casares tenta decifrar o que as mulheres desejam, num título sugestivo e discutível: 'Todas as mulheres são iguais'. Em sua argumentação, ele defende que, independente de formação, gênio, criação ou índole, todas as fêmeas da espécie só procuram uma coisa: segurança. A conferir.
'Octaedro' de Júlio Cortázar foi o responsável por todo esta enrolação até agora. O primeiro conto é, sem medo do exagero, perfeito. O segundo também está acima da média. Por cronologia:
'Liliane chorando' é escrito por um homem desenganado. Ele imagina como será a vida de todos que ele detém alguma afeição depois de morrer. Fala do seu enterro, como se comportarão os amigos, a mãe, Liliane - sua mulher, Alfredo, o quase-irmão. Descreve as coisas impregnado de uma emoção genuína, como se tivesse uma saudade, uma tristeza por não poder participar da vida de todos os que ficarem. Leva toda a narrativa, com várias brincadeiras quanto ao formato (há um momento que ele escreve 'fotograficamente' - sensacional!) até quando há um final que não pode ser chamado de surpreendente, mas em que você diz 'Não...' na tentativa de evitar o que não dá mais. Impressionantemente bom.
'Os Passos no rastro' começa com um comentário explicativo asssim: 'Crônica um pouco tediosa, estilo de exercício mais que exercício de estilo de um, digamos, Henry James que tivesse tomado chimarrão em qualquer pátio portenho ou platense dos anos vinte'. Por isso, comento-o outro dia, quando falar de um dos maiores ingleses nascidos nos EUA em todos os tempos.
Orelhadas sobre os brasileiros, só no futuro.
quinta-feira, 9 de setembro de 2004
Carta à comissão julgadora da revista ‘Proa’
Carta à comissão julgadora da revista ‘Proa’
Rio, Setembro de 2004
Senhores,
Não quero, com esta carta, me igualar àquele a quem afirmaram peremptoriamente ser eu um copiador. Pelo contrário, não me iludiria a este ponto. Tenho como fim, agora que já o li e reli, demonstrar, até mesmo através dos próprios argumentos do famoso escritor, da impossibilidade prática do plágio. Não anseio, também, que revejam sua decisão no que concerne ao meu pequeno conto. Sei da minha completa falta de qualidade e do meu posto inferior perante a média dos que tentam conviver desta forma. O máximo que me condiz é ser um aspirante; o que já me é bastante aprazível – considero. Entretanto, desejo acender uma fagulha para a mudança na forma de julgamento, mesmo que esta vontade seja em vão. Intuo cambiar o aspecto fundamental da avaliação de originalidade quanto aos temas abordados (já que isto, em princípios, é utópico), para inovação quanto às formas. Por outro lado, não defendo o rebuscamento extremo, nem apóio textos incompreensíveis pelo excesso de experimentalismo. Trafegando no raso e diretamente: almejo que os contos não sejam avaliados e rechaçados perante uma coincidência do tema principal. Em outras palavras, que caso igual ao meu não ocorra novamente.
Tentarei criar uma cronologia para que logo de início toda a argumentação seja fundamentada e explícita. Em fevereiro deste ano, descubro da possibilidade de publicação de contos inéditos – sublinho a última palavra – na conceituada revista ‘Proa’. Teria uma quinzena para desenvolver uma pequena trama que pudesse concorrer com os outros prováveis candidatos e mais um par de dias para enviá-la tradicionalmente.
Durante algum tempo, que não saberei precisar, uma névoa branca encobriu todo o meu raciocínio fazendo com que não vislumbrasse nenhum argumento, quiçá interessante. A angústia e a cotidiana ansiedade me impediam de aquietar-me e escutar o que a ‘musa’ tinha a me dizer. Foi nesse período que um espanto substituiu qualquer outro sentimento: soube da morte estúpida (se é que todas as mortes não o são) de um grande amigo meu, Ivan Nogueira.
Havíamos estudado juntos na faculdade. Ele vivia extremamente, abusava de todos os seus gostos, independente das conseqüências; ignorava e abdicava dos planos, de algo que pudesse ser chamado futuro. Era extremamente imediatista e colhia amizades e inimizades por isso. Mesmo assim, sempre fora o melhor da classe sem que, para isso, tivesse que se dispor mais que qualquer outro. Sua grande vantagem sobre os demais era simples: viciara-se em leitura, sem preconceito de origem ou de tradição. Horas de sua vida eram passadas diante das letras, sem nenhuma ordem ou estratégia.
Depois de colarmos grau, nos afastamos. Ele se mudara para uma cidade distante, transferido pela empresa a que já era contratado. Eu fiquei para manter meu cotidiano inalterado. Suas informações foram diluindo, escasseando... fiquei anos sem ouvir falar nele. Até o funesto dia.
Quero deixar claro que todas as informações que chegaram a mim foram trazidas de conhecidos que ainda mantiveram algum contato com ele, por isso, não muito confiáveis quanto à fidelidade aos fatos, principalmente considerando o ambiente em que me foram confidenciadas. Todavia, todas estas versões são válidas para demonstrar a origem de minha história. Espero não estar usando a memória de meu amigo em vão.
Tentarei ser raso nas descrições para não enfadá-los. Em certo momento da vida, Ivan decidira que deveria ser mais humano, menos idealistas, menos romântico, mais real, mais carne e osso, menos pensamento. Ele, um impulsivo crônico, renegou a si mesmo e se transformou num sujeito medíocre. Descobrira que ele era pai de uma garotinha de dez anos, casado há mais de quinze e mudara por completo suas diretrizes básicas. Aquelas frases me chocaram inenarravelmente. Um homem pode constituir família, é o mais óbvio de todas as histórias, pode ‘amadurecer’ e deve se tornar um cínico perante todo o mundo. Mas isto tudo, vindo de um homem que era a representação em movimento do Chinaski me assustou e muito.
Voltei para casa e sonhei acordado com um personagem regular, que vai da casa para o trabalho e vice-versa. Seu único momento de fuga de sua própria realidade acontece na hora da morte: ele relembra ou recria o passado de forma a ter uma morte inesperada, longe dos quartos de hospital. Exatamente o meu texto. Parecidíssimo ao conto ‘O sul’, de Borges.
Contudo, com esta carta, reitero minhas intenções de esclarecer dois pontos embaçados até o momento: Não conhecia a obra do argentino cego até a carta em resposta; tento com o meu texto criticar uma morte violenta, já que nosso tempo, nossa realidade não mais permite qualquer exaltação da ‘malandragem’, do ‘marginal’, ou qualquer outra denominação conotativa para o caos urbano do dia-a-dia. O escrito argentino, por sua vez, defende uma exaltação do perigo, da coragem, até da força bruta em última instância.
Admito, no entanto, as extremas coincidências que permeiam ambas as versões. Reafirmo que minhas intenções eram opostas às do famoso contista. Copio-os trechos, em ordem cronológica, que assustam pelas semelhanças:
“Dahlmann não estranhou que o outro, agora, o conhecesse, porém sentiu que essas palavras conciliadoras agravavam, de fato a situação.” (pág. 589 de suas Obras Completas).
“(...) ele não estranhou que o outro, agora, o conhecesse, porém sentiu que essas palavras conciliadoras poderiam agravar a situação.” (‘a morte sonhada’).
Se no primeiro caso, o argentino explica que o simples fato de terem identificado o bibliotecário, protagonista de seu conto, o empurrava para a reação, já que a ameaça dos gaúchos não era mais contra um ser sem rosto, mas contra um homem honrado, e sendo honrado, deveria defender seu nome, mesmo que isso culminasse na morte pelas facas; no meu texto, assim como não há mais valentões inocentes, ou malandros para se romantizar, defendo que não há mais honra suficiente que vale uma morte através de uma briga. As ‘palavras conciliadoras’ poderiam agravar a situação, mas não agem desta forma. Há a igualdade nas frases, mas seus sentidos, nos respectivos contextos, são angularmente opostos.
Também difere, em meu conto, da idéia de que o protagonista argentino procura uma morte honrada, enquanto o meu é vítima de um ato fatídico, mesmo que sonhado, exatamente como no primeiro caso. No meu documento, tento representar a neurose coletiva, o medo ante a violência sem forma; no outro, uma exaltação pela honra, pela violência como algo másculo. Em ‘a morte sonhada’, tento relembrar que a morte pode ser inesperada e devemos sempre estar disposto a encará-la, não com unhas, mas tendo aproveitado ao máximo possível a existência; Borges, numa espécie de melancolia do que nunca existiu, renega habilmente o passado que teve, inflando outro que não há, apenas por conforto.
Quanto ao meu argumento de que nunca havia lido Borges antes de todo este imbróglio, não tenho solidez para comprová-lo. Tento esclarecer que tais coincidências são tão ou mais prováveis quanto aos escritos que são propositalmente idênticos. Contudo, admito que não haja como corroborar tal tese. Relembro, porém, uma idéia do próprio argentino, num prólogo desta mesma coletânea de contos, ao comentar um dos seus mais conhecidos, quando defende a falta de originalidade de sua, ou qualquer obra: “Não sou o primeiro autor da ‘Biblioteca de Babel’”.
Conto com a boa vontade de todos os juízes não para modificar o imutável passado, mas para corrigirem o inevitável futuro.
Desde já grato,
r.
Rio, Setembro de 2004
Senhores,
Não quero, com esta carta, me igualar àquele a quem afirmaram peremptoriamente ser eu um copiador. Pelo contrário, não me iludiria a este ponto. Tenho como fim, agora que já o li e reli, demonstrar, até mesmo através dos próprios argumentos do famoso escritor, da impossibilidade prática do plágio. Não anseio, também, que revejam sua decisão no que concerne ao meu pequeno conto. Sei da minha completa falta de qualidade e do meu posto inferior perante a média dos que tentam conviver desta forma. O máximo que me condiz é ser um aspirante; o que já me é bastante aprazível – considero. Entretanto, desejo acender uma fagulha para a mudança na forma de julgamento, mesmo que esta vontade seja em vão. Intuo cambiar o aspecto fundamental da avaliação de originalidade quanto aos temas abordados (já que isto, em princípios, é utópico), para inovação quanto às formas. Por outro lado, não defendo o rebuscamento extremo, nem apóio textos incompreensíveis pelo excesso de experimentalismo. Trafegando no raso e diretamente: almejo que os contos não sejam avaliados e rechaçados perante uma coincidência do tema principal. Em outras palavras, que caso igual ao meu não ocorra novamente.
Tentarei criar uma cronologia para que logo de início toda a argumentação seja fundamentada e explícita. Em fevereiro deste ano, descubro da possibilidade de publicação de contos inéditos – sublinho a última palavra – na conceituada revista ‘Proa’. Teria uma quinzena para desenvolver uma pequena trama que pudesse concorrer com os outros prováveis candidatos e mais um par de dias para enviá-la tradicionalmente.
Durante algum tempo, que não saberei precisar, uma névoa branca encobriu todo o meu raciocínio fazendo com que não vislumbrasse nenhum argumento, quiçá interessante. A angústia e a cotidiana ansiedade me impediam de aquietar-me e escutar o que a ‘musa’ tinha a me dizer. Foi nesse período que um espanto substituiu qualquer outro sentimento: soube da morte estúpida (se é que todas as mortes não o são) de um grande amigo meu, Ivan Nogueira.
Havíamos estudado juntos na faculdade. Ele vivia extremamente, abusava de todos os seus gostos, independente das conseqüências; ignorava e abdicava dos planos, de algo que pudesse ser chamado futuro. Era extremamente imediatista e colhia amizades e inimizades por isso. Mesmo assim, sempre fora o melhor da classe sem que, para isso, tivesse que se dispor mais que qualquer outro. Sua grande vantagem sobre os demais era simples: viciara-se em leitura, sem preconceito de origem ou de tradição. Horas de sua vida eram passadas diante das letras, sem nenhuma ordem ou estratégia.
Depois de colarmos grau, nos afastamos. Ele se mudara para uma cidade distante, transferido pela empresa a que já era contratado. Eu fiquei para manter meu cotidiano inalterado. Suas informações foram diluindo, escasseando... fiquei anos sem ouvir falar nele. Até o funesto dia.
Quero deixar claro que todas as informações que chegaram a mim foram trazidas de conhecidos que ainda mantiveram algum contato com ele, por isso, não muito confiáveis quanto à fidelidade aos fatos, principalmente considerando o ambiente em que me foram confidenciadas. Todavia, todas estas versões são válidas para demonstrar a origem de minha história. Espero não estar usando a memória de meu amigo em vão.
Tentarei ser raso nas descrições para não enfadá-los. Em certo momento da vida, Ivan decidira que deveria ser mais humano, menos idealistas, menos romântico, mais real, mais carne e osso, menos pensamento. Ele, um impulsivo crônico, renegou a si mesmo e se transformou num sujeito medíocre. Descobrira que ele era pai de uma garotinha de dez anos, casado há mais de quinze e mudara por completo suas diretrizes básicas. Aquelas frases me chocaram inenarravelmente. Um homem pode constituir família, é o mais óbvio de todas as histórias, pode ‘amadurecer’ e deve se tornar um cínico perante todo o mundo. Mas isto tudo, vindo de um homem que era a representação em movimento do Chinaski me assustou e muito.
Voltei para casa e sonhei acordado com um personagem regular, que vai da casa para o trabalho e vice-versa. Seu único momento de fuga de sua própria realidade acontece na hora da morte: ele relembra ou recria o passado de forma a ter uma morte inesperada, longe dos quartos de hospital. Exatamente o meu texto. Parecidíssimo ao conto ‘O sul’, de Borges.
Contudo, com esta carta, reitero minhas intenções de esclarecer dois pontos embaçados até o momento: Não conhecia a obra do argentino cego até a carta em resposta; tento com o meu texto criticar uma morte violenta, já que nosso tempo, nossa realidade não mais permite qualquer exaltação da ‘malandragem’, do ‘marginal’, ou qualquer outra denominação conotativa para o caos urbano do dia-a-dia. O escrito argentino, por sua vez, defende uma exaltação do perigo, da coragem, até da força bruta em última instância.
Admito, no entanto, as extremas coincidências que permeiam ambas as versões. Reafirmo que minhas intenções eram opostas às do famoso contista. Copio-os trechos, em ordem cronológica, que assustam pelas semelhanças:
“Dahlmann não estranhou que o outro, agora, o conhecesse, porém sentiu que essas palavras conciliadoras agravavam, de fato a situação.” (pág. 589 de suas Obras Completas).
“(...) ele não estranhou que o outro, agora, o conhecesse, porém sentiu que essas palavras conciliadoras poderiam agravar a situação.” (‘a morte sonhada’).
Se no primeiro caso, o argentino explica que o simples fato de terem identificado o bibliotecário, protagonista de seu conto, o empurrava para a reação, já que a ameaça dos gaúchos não era mais contra um ser sem rosto, mas contra um homem honrado, e sendo honrado, deveria defender seu nome, mesmo que isso culminasse na morte pelas facas; no meu texto, assim como não há mais valentões inocentes, ou malandros para se romantizar, defendo que não há mais honra suficiente que vale uma morte através de uma briga. As ‘palavras conciliadoras’ poderiam agravar a situação, mas não agem desta forma. Há a igualdade nas frases, mas seus sentidos, nos respectivos contextos, são angularmente opostos.
Também difere, em meu conto, da idéia de que o protagonista argentino procura uma morte honrada, enquanto o meu é vítima de um ato fatídico, mesmo que sonhado, exatamente como no primeiro caso. No meu documento, tento representar a neurose coletiva, o medo ante a violência sem forma; no outro, uma exaltação pela honra, pela violência como algo másculo. Em ‘a morte sonhada’, tento relembrar que a morte pode ser inesperada e devemos sempre estar disposto a encará-la, não com unhas, mas tendo aproveitado ao máximo possível a existência; Borges, numa espécie de melancolia do que nunca existiu, renega habilmente o passado que teve, inflando outro que não há, apenas por conforto.
Quanto ao meu argumento de que nunca havia lido Borges antes de todo este imbróglio, não tenho solidez para comprová-lo. Tento esclarecer que tais coincidências são tão ou mais prováveis quanto aos escritos que são propositalmente idênticos. Contudo, admito que não haja como corroborar tal tese. Relembro, porém, uma idéia do próprio argentino, num prólogo desta mesma coletânea de contos, ao comentar um dos seus mais conhecidos, quando defende a falta de originalidade de sua, ou qualquer obra: “Não sou o primeiro autor da ‘Biblioteca de Babel’”.
Conto com a boa vontade de todos os juízes não para modificar o imutável passado, mas para corrigirem o inevitável futuro.
Desde já grato,
r.
terça-feira, 7 de setembro de 2004
Produção CASEIRA, entrega DOMICILIAR.
O sonho de qualquer empreendedor no mundo inteiro.
O porquê
Pedro Dória, um jornalista de menos de trinta anos que em NOMÍNIMO tem a incumbência de ser o ‘homem da internet’, foi o último que li sobre o tal conselho de jornalismo. E sua argumentação é completamente contrária a tudo o que havia LIDO até o momento (mesmo assim, também era CONTRÁRIO a sua IMPOSIÇÃO).
Sua TESE era uma peça de simplicidade: o TROÇO estatal + sindical já nasce obsoleto.
Seus ARGUMENTOS, de uma obviedade escrota: o conselho serve para coibir meia dúzia de grandes e tradicionais empresas de comunicação. Mas com a popularização (o termo é meu) da internet, CENSURAR uma produção sem periodicidade, sem regulamentação, até sem origem fixa se torna IMPOSSÍVEL.
Na PRÁTICA, copio-o: “Lá nos EUA tem comentarista político com blog na mão tão influente quanto comentarista político do ‘New York Times’. Com centenas de milhares de leitores diários. É só fazer uma busca no Google: determinados assuntos aparecem primeiro em blogs e só depois na grande imprensa”.
ANTES, já havia lido, em algum lugar, que, pela primeira vez na HISTÓRIA, blogueiro foi tratado de igual para igual com jornalista na convenção dos DEMOCRATAS.
O cerne
O SUJEITO, dono de blog, ou que participa de um site de música, ou literatura com uns amigos, sem nenhuma pretensão, só por esporte, mas com algum tipo de rigor, com vontade de fazer diferente: este será UM JORNALISTA. Talvez, um dia, ganhe até um dinheirinho para fazer o que mais gosta, de bobeira, em casa, sem exigir muito de si.
O google, só para ficarmos no raso, oferece, através do seu blogger, RENDA para o blogueiro através de PROPAGANDA. Criaram uma empresa que faz a interface entre os anunciantes e o dono do ‘conteúdo’. Seleciona produtos afins, cobra de um lado e PAGA por CLIQUE ao hospedeiro. São tão bonzinhos que deixam o blogueiro escolher a forma e o jeito de publicidade que mais gosta.
(Na sexta conferi e já tenho quatro centavos de dólares para receber ; )).
O finalmente
Os argumentos tradicionais já existem e já os escutei. O mais facilmente apontável: O Brasil NÃO é igual ao EUA. NÃO temos nem tantos computadores, nem tamanho acesso à rede. Complemento dizendo que NUNCA teremos uma equiparação. Mas e daí? Também não temos muitos leitores, quiçá de jornais. Entretanto, a profissão JAMAIS ficou em baixa.
Este espaço, como outrora dito, funciona bem assim: nosso jornalzinho da faculdade, que há trinta anos era mimeografado, há vinte fotocopiado, há dez impresso, agora é desta forma que VOSMECÊ confere. SÓ Abolimos o papel.
E temos a POSSIBILIDADE do acesso limitado apenas à vontade e à conexão dos leitores. Produção CASEIRA, entrega DOMICILIAR. O sonho de qualquer empreendedor no mundo inteiro.
O sonho de qualquer empreendedor no mundo inteiro.
O porquê
Pedro Dória, um jornalista de menos de trinta anos que em NOMÍNIMO tem a incumbência de ser o ‘homem da internet’, foi o último que li sobre o tal conselho de jornalismo. E sua argumentação é completamente contrária a tudo o que havia LIDO até o momento (mesmo assim, também era CONTRÁRIO a sua IMPOSIÇÃO).
Sua TESE era uma peça de simplicidade: o TROÇO estatal + sindical já nasce obsoleto.
Seus ARGUMENTOS, de uma obviedade escrota: o conselho serve para coibir meia dúzia de grandes e tradicionais empresas de comunicação. Mas com a popularização (o termo é meu) da internet, CENSURAR uma produção sem periodicidade, sem regulamentação, até sem origem fixa se torna IMPOSSÍVEL.
Na PRÁTICA, copio-o: “Lá nos EUA tem comentarista político com blog na mão tão influente quanto comentarista político do ‘New York Times’. Com centenas de milhares de leitores diários. É só fazer uma busca no Google: determinados assuntos aparecem primeiro em blogs e só depois na grande imprensa”.
ANTES, já havia lido, em algum lugar, que, pela primeira vez na HISTÓRIA, blogueiro foi tratado de igual para igual com jornalista na convenção dos DEMOCRATAS.
O cerne
O SUJEITO, dono de blog, ou que participa de um site de música, ou literatura com uns amigos, sem nenhuma pretensão, só por esporte, mas com algum tipo de rigor, com vontade de fazer diferente: este será UM JORNALISTA. Talvez, um dia, ganhe até um dinheirinho para fazer o que mais gosta, de bobeira, em casa, sem exigir muito de si.
O google, só para ficarmos no raso, oferece, através do seu blogger, RENDA para o blogueiro através de PROPAGANDA. Criaram uma empresa que faz a interface entre os anunciantes e o dono do ‘conteúdo’. Seleciona produtos afins, cobra de um lado e PAGA por CLIQUE ao hospedeiro. São tão bonzinhos que deixam o blogueiro escolher a forma e o jeito de publicidade que mais gosta.
(Na sexta conferi e já tenho quatro centavos de dólares para receber ; )).
O finalmente
Os argumentos tradicionais já existem e já os escutei. O mais facilmente apontável: O Brasil NÃO é igual ao EUA. NÃO temos nem tantos computadores, nem tamanho acesso à rede. Complemento dizendo que NUNCA teremos uma equiparação. Mas e daí? Também não temos muitos leitores, quiçá de jornais. Entretanto, a profissão JAMAIS ficou em baixa.
Este espaço, como outrora dito, funciona bem assim: nosso jornalzinho da faculdade, que há trinta anos era mimeografado, há vinte fotocopiado, há dez impresso, agora é desta forma que VOSMECÊ confere. SÓ Abolimos o papel.
E temos a POSSIBILIDADE do acesso limitado apenas à vontade e à conexão dos leitores. Produção CASEIRA, entrega DOMICILIAR. O sonho de qualquer empreendedor no mundo inteiro.
quinta-feira, 2 de setembro de 2004
"A música é a única arte que não constrói o pensamento"
Uma aula, uma frase e o estrago está feito.
Fatos soltos:
1) O argentino Jorge Luiz Borges sempre disse que a única regra que deveria ser respeitada na construção de uma poesia era a necessária busca pela música dentro das palavras. Citava que, dentre as sete (seis + cinema) principais categorias do que é comumente chamado 'arte', a música era a mais perfeita.
Em suas palavras: "(...) Reconheço que, nos poemas, as palavras devem ser musicais; às vezes vacilo entre duas possibilidades para completar um poema: uma é lógica, a outra e musical. É claro que prefiro a musical" (La Nacion, 7/8/85).
ou
"Tenho ouvido para a música oral, mas não entendo a música. Se não entendo minha própria vida nem o universo... Contudo, consigo conceber um universo que se expresse em música. Um universo do tempo... e a música daria a mais grata das formas do tempo, porque a música flui com o tempo." (idem ao anterior)
ainda:
"Sinto a música como algo infinito" (igual às outras duas citações)
2) Em seu "O nascimento da tragédia no espírito da música" (1871), Friedrich Nietzsche tenta refutar o pensamento socratiano o qual argumenta que as formas de arte que devem existir são somente as cerebrais.
Na introdução a esta obra está escrito: "(...) Sócrates interpretou a arte trágica como algo irracional, algo que apresenta efeitos sem causas e causas sem efeitos, tudo de maneira tão confusa que deveria ser ignorada. Por isso Sócrates colocou a tragédia na categoria das artes aduladoras que representam o agradável e não o útil e pedia a seus discípulos que se abstivessem dessas emoções 'indígnas de filósofos' (Nietzsche, Obras Incompletas págs 9 e 10).
Para argumentar contrário ao grego, o alemão compara a tragédia à música. Diz que ambas são da ordem do impalpável, onde não podemos alcançar a lógica, porque esta não há e, assim, talvez, cheguemos o mais próximo possível de uma explicação para toda a existência (certamente um pensamento bombardeado de metafísica). Para comparar ambas as formas artísticas, Nietzsche cita um conterrâneo que define belissimamente a música e que funcionava para ele como uma espécie de tutor na época: Arthur Schopenhauer.
"(...) a música, como foi dito, difere de todas as outras artes por não ser cópia do fenômeno, ou mais corretamente, da objetividade adequada da vontade, mas cópia imediata da própria vontade, e portanto apresenta, para tudo o que é físico no mundo, o correlato metafísico, para todo fenômeno, a coisa em si". (A. Schopenhauer, Mundo como vontade e representação vol I, 309).
novamente, o mesmo autor:
"(...) o mundo fenomênico, ou a natureza, e a música, como duas expressões diferentes da mesma coisa, a qual, por sua vez, é portador único da mediação de ambos. (...) A música é, portanto, se considerada expressão do mundo, um linguagem universal em sumo grau (...)" (idem anterior).
Assim, de acordo com os germânicos, a música seria a forma mais fácil de explicar o inexplicável porque não era uma cópia de uma pensamento sobre o absurdo, mas a cópia do próprio absurdo, diretamente, sem meneios, ou entraves.
3) Isto tudo só porque eu voltei às aulas e escutei de um professor de estirpe conservadora, numa aula que ainda citava (como novidade) a escola de Frankfurt e as definições 'alta cultura e baixa cultura', uma frase que batucou durante dias na minha cabeça: "A música é a única arte que não constrói o pensamento". Ele dizia que, se não considerarmos as letras, as notas sozinhas não, necessariamente, te fornecem uma idéia forte sobre o que deseja passar. Assim, você deve criar o seu próprio raciocínio, a sua própria imagem mental sobre o som que escuta. Não é nem necessário dizer que achei bem interessante.
4) Por último, cito o Zé. Lembro dele ter dito, da sua maneira e em variadas oportunidades, que, apesar de gostar de cinema, livros (um pouco menos), muito de imagens (de pinturas clássicas a grafites nos muros), o que mais mexia com ele era a música. Inexplicavelmente, ou à sua maneira, perdido em várias explicações prolixas, o moçoilo dizia a mesma coisa que todos os outros aí de cima.
Uma aula, uma frase e o estrago está feito.
Fatos soltos:
1) O argentino Jorge Luiz Borges sempre disse que a única regra que deveria ser respeitada na construção de uma poesia era a necessária busca pela música dentro das palavras. Citava que, dentre as sete (seis + cinema) principais categorias do que é comumente chamado 'arte', a música era a mais perfeita.
Em suas palavras: "(...) Reconheço que, nos poemas, as palavras devem ser musicais; às vezes vacilo entre duas possibilidades para completar um poema: uma é lógica, a outra e musical. É claro que prefiro a musical" (La Nacion, 7/8/85).
ou
"Tenho ouvido para a música oral, mas não entendo a música. Se não entendo minha própria vida nem o universo... Contudo, consigo conceber um universo que se expresse em música. Um universo do tempo... e a música daria a mais grata das formas do tempo, porque a música flui com o tempo." (idem ao anterior)
ainda:
"Sinto a música como algo infinito" (igual às outras duas citações)
2) Em seu "O nascimento da tragédia no espírito da música" (1871), Friedrich Nietzsche tenta refutar o pensamento socratiano o qual argumenta que as formas de arte que devem existir são somente as cerebrais.
Na introdução a esta obra está escrito: "(...) Sócrates interpretou a arte trágica como algo irracional, algo que apresenta efeitos sem causas e causas sem efeitos, tudo de maneira tão confusa que deveria ser ignorada. Por isso Sócrates colocou a tragédia na categoria das artes aduladoras que representam o agradável e não o útil e pedia a seus discípulos que se abstivessem dessas emoções 'indígnas de filósofos' (Nietzsche, Obras Incompletas págs 9 e 10).
Para argumentar contrário ao grego, o alemão compara a tragédia à música. Diz que ambas são da ordem do impalpável, onde não podemos alcançar a lógica, porque esta não há e, assim, talvez, cheguemos o mais próximo possível de uma explicação para toda a existência (certamente um pensamento bombardeado de metafísica). Para comparar ambas as formas artísticas, Nietzsche cita um conterrâneo que define belissimamente a música e que funcionava para ele como uma espécie de tutor na época: Arthur Schopenhauer.
"(...) a música, como foi dito, difere de todas as outras artes por não ser cópia do fenômeno, ou mais corretamente, da objetividade adequada da vontade, mas cópia imediata da própria vontade, e portanto apresenta, para tudo o que é físico no mundo, o correlato metafísico, para todo fenômeno, a coisa em si". (A. Schopenhauer, Mundo como vontade e representação vol I, 309).
novamente, o mesmo autor:
"(...) o mundo fenomênico, ou a natureza, e a música, como duas expressões diferentes da mesma coisa, a qual, por sua vez, é portador único da mediação de ambos. (...) A música é, portanto, se considerada expressão do mundo, um linguagem universal em sumo grau (...)" (idem anterior).
Assim, de acordo com os germânicos, a música seria a forma mais fácil de explicar o inexplicável porque não era uma cópia de uma pensamento sobre o absurdo, mas a cópia do próprio absurdo, diretamente, sem meneios, ou entraves.
3) Isto tudo só porque eu voltei às aulas e escutei de um professor de estirpe conservadora, numa aula que ainda citava (como novidade) a escola de Frankfurt e as definições 'alta cultura e baixa cultura', uma frase que batucou durante dias na minha cabeça: "A música é a única arte que não constrói o pensamento". Ele dizia que, se não considerarmos as letras, as notas sozinhas não, necessariamente, te fornecem uma idéia forte sobre o que deseja passar. Assim, você deve criar o seu próprio raciocínio, a sua própria imagem mental sobre o som que escuta. Não é nem necessário dizer que achei bem interessante.
4) Por último, cito o Zé. Lembro dele ter dito, da sua maneira e em variadas oportunidades, que, apesar de gostar de cinema, livros (um pouco menos), muito de imagens (de pinturas clássicas a grafites nos muros), o que mais mexia com ele era a música. Inexplicavelmente, ou à sua maneira, perdido em várias explicações prolixas, o moçoilo dizia a mesma coisa que todos os outros aí de cima.
Assinar:
Postagens (Atom)