quinta-feira, 24 de junho de 2004

Autores-críticos

Do pouco que atento para a crítica, tanto literária, quanto a cinematográfica, ou de qualquer outra estirpe, pude perceber que alguns dos clichês mais badalados não existem na realidade. O crítico não é um sujeito frustrado porque não conseguiu trabalhar com aquilo que ele agora fala mal. Nem sempre, ao menos. Normalmente é o homem que gosta tanto do que lhe é apresentado para “provar” que não conseguiu começar a produzir pares. Não diria que gosta mais ou menos que os próprios autores, mas é comum encontrar críticos com maior e mais vasta cultura sobre o seu objeto de estudo que os próprios criadores de obras. O problema vem da idéia de que alguns são, ao mesmo tempo, críticos e autores, e nessas horas, há a possibilidade de se misturar um lado com o outro.

Não, não sugiro (nem quero) que haja no mundo uma espécie de “distanciamento jornalístico”, ou “visão antropológica”, ou “posicionamento objetivo”. Se há dois pontos-de-vista sobre a mesma obra, a objetividade já é contestável.

O que eu digo é que algumas das críticas feitas por autores impregnam-se de suas próprias obras. Como se elas fossem os centros onde as outras criações gravitassem em volta. Dizendo assim parece até algo cruel, ou pelo egoísta e bastante umbilical. Não, é bem mais simples. Se o crítico-autor acha que aquilo que ele escreve reflete bem o que ele acredita, normalmente ele estará ligado fortemente com as suas raízes. Assim, tudo o que se distanciar desse universo, será visto como estranho. E como Borges já bem disse, “gostar é reconhecer”.

Com exemplos. O sujeito é grande fã de Dostoievski. E toda a sua obra é inspirada nos clássicos do famoso russo. Os personagens são emotivos, fortes, impulsivos, com características marcantes, as cenas são imprevisíveis e não saem de sua memória, as idéias são grandiosas, imensas, movem mundos. Sua própria obra terá algo disso dentro. Ou, o autor-crítico considerará como bom àqueles que apresentarem essas características.

Quem escrever concisamente, ou por meio de parábolas, onde o que ele quer dizer nunca está escrito, numa linguagem quase cifrada, com personagens fatalistas, pessimistas, como em Kafka, será considerado ruim.

Claro que esses exemplos são apenas demonstrativos e absurdamente exagerados. Não creio que alguém teria condição de não gostar de Kafka – só se não o entender; o que, aliás, é até fácil, considerando os nossos companheiros de jornada.

O bom crítico-autor seria aquele que colocasse o seu centro de análise para longe das suas próprias obras, de duas raízes, de suas influências. Analisasse as suas cobaias independentes do mundo que as roda, sozinhas, isoladas no mundo. Tendo em mente onde elas querem chegar e se conseguiram passar todas as informações desejadas na primeira leitura – ou se esconderam detalhes para uma segunda, mais cuidadosa. Ou o autor quis que sua cria fosse algo dissecado aos poucos, com cada leitura, uma casca saísse e você pudesse enxergar mais profundamente.

O autor-crítico deve encarar a obra como um esfomeado encara um prato de comida, sem concessões. Sem pré-julgamentos, ou conceitos estabelecidos. Como se o mundo inteiro não existisse e só apenas aquela pequena obra fosse o caminho conhecido.

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