terça-feira, 26 de outubro de 2010

Segundo capítulo

Como estou com o tempo razoavelmente livre, decidi voltar a um novel que já tinha começado há muito tempo e parado lá pela página 82. Agora, posso reescrevê-lo e completá-lo. Hoje refiz o segundo capítulo que, modéstia e clichês à parte, ficou legal. Publico aqui embaixo, para quem quiser comprovar.

***


2

Antes do despertador tocar, às 7h, coloco a minha mão sobre o aparelho e o desligo. Estou acordado há muito tempo. Ou melhor, mal dormi durante toda a noite. Tinha sido assim nas últimas semanas - talvez esta noite tenha sido até pior que nas últimas semanas. Ou sempre foi assim, mas agora, eu não sei por que, me sinto cansado, muito cansado. Não importa. Estou cansado, é isso que importa. Suspiro vagarosamente algumas vezes antes de levantar o meu corpo. Reluto. Me sinto pesado. Quero um guindaste para me tirar daqui. O problema é que, apesar do meu corpo estar em frangalhos, a minha cabeça fica ligada durante todo o dia e, principalmente, durante toda a noite. Sem descanso, ininterruptamente. Eu queria mesmo era virar um robô que não precisa pensar, apenas repetindo um código, uma combinação, um programa desenvolvido por alguém que está muito cansado.  Fico de frente ao espelho no banheiro. Estou como se tivesse virado a noite me destruindo. Ou como se tivesse trabalhado sem parar nas últimas semanas. Meus olhos estão vermelhos, ejetados e profundos, cheios de ranhuras e olheiras, com bolsas. Não tenho força nem para abrir as pálpebras por inteiro. Elenco uma a uma as obrigações do dia enquanto esfrego automática e vagarosamente a escova de dentes para lá no molar e para cá no canino. O dia até que não seria dos piores no trabalho. Mo-lar. Reuniões, ca-ni-no, planilhas, mo-lar, sorrisos falsos, ca-ni-no, piadas sem graça. Mo-lar. Cuspo. Minha mãe vai me ligar e me perguntar se está tudo bem e não teremos mais o que conversar após respondê-la protocolarmente de que sim, estava tudo bem. Gar-ga-re-jo. Estava? Penso nisso enquanto tomo banho. Não tenho uma resposta muito certa. A verdade é que não sei. Mantenho-me num cotidiano sem muitas alterações, sem emoções, vazio. Se isso é bom, não sei, não quero pensar nisso agora. Estou muito cansado.

No banho, escolho mentalmente uma entre as 30 camisas de manga comprida e botões para usar no trabalho. São todas iguais. Para que perder o meu tempo comprando camisas diferentes? Vou em uma e compro várias do mesmo estilo. Assim, posso gastar o meu tempo em outras coisas mais importantes. É assim que eu penso, é assim que eu faço.

Pego o ônibus às 7h30 – quando ele não atrasa – em direção ao Centro. Reproduzo os meus passos cotidianamente: faço sinal, corro atrás do ônibus, subo os três degraus, olho para motorista, cumprimento formalizante [apenas um balançar de cabeça para demonstrar que eu o vi e que sei que ele existe, mas sem dar a chance de ele entabular qualquer iniciativa de conversa], vou em direção à roleta, me segurando para não cair enquanto o motorista arranca como se estivesse atrasado para uma prova de morte, pego o dinheiro no meu bolso direito – o das chaves, no esquerdo fica o meu celular e no bolso de trás, a minha carteira – entrego as moedas e a nota ao trocador,  cumprimento formalizante, sento no primeiro banco do lado direito para evitar o sol – se estiver ocupado, escolho o segundo e assim sucessivamente –, abro o jornal, leio primeiro o caderno de esportes, depois os quadrinhos e antes que eu chegue à economia ou à política, chego ao meu destino. Salto no ponto às 8h – 8h05 quando ele está atrasado, 8h10, quando há retenção, 8h15, quando o engarrafamento é forte. Nunca chego à editoria de polícia. Caminho sete minutos até o trabalho pelas ruas mais antigas da cidade onde o chão ainda é feito de paralepípedo do século XIX e os mendigos já não se importam com o cheiro da urina. Digo maquinalmente “bom-dia” à recepcionista, com o meu sorriso menos sincero, quando estou de melhor humor, e me sento à minha mesa esperando minha máquina carregar para começar a minha rotina: tenho que inventar coisas para o tempo passar até a hora do almoço, ao meio-dia e meia.

Às vezes é fácil arranjar o que fazer. Geralmente, sigo uma série de procedimentos: vejo meu e-mail, confiro o resto do jornal na internet, vejo se alguém deixou algum recado na minha página pessoal, navego, navego, navego. Às vezes, as minhas páginas acabam e eu fico sem ter o que fazer. Hoje é esse dia.

No almoço, demoro um pouco menos de uma hora, e regresso ao escritório. Em outras épocas eu gostava de caminhar pelas ruas. Agora quero só que isso acabe o mais rápido possível. De volta ao trabalho, são mais quatro horas sem fazer nada até às 17h quando, com o céu ainda claro, me levanto para ir embora.

Quando chego em casa, dou uma longa caminhada, para tentar matar o tempo – como faço todos os dias. Caminho duas horas seguidas, sem roteiro pré-estabelecido, sem rumo definido. Acho que tenho que ir para aquele lado, seja qual for, e coloco o pé a frente do outro. A cabeça continua a dar mil voltas, mas, pelo menos, sinto o sangue correr nas veias.

Volto para casa com o meu corpo inteiro, a cabeça acabada, e resolvo ir me deitar. Não tenho nada para fazer. Ligo e desligo a TV. Abro o computador. Escuto uma música. Tento ler um livro, mas ele não consegue me prender. Decido dormir. Apago as luzes, mas as luzes não se apagam.

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