quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

O barulho que segue 'O som ao redor'

[Texto publicado originalmente na "Revista de História".]

Há ao menos dois fenômenos sociais expostos com o início da exibição de “O som ao redor” no Brasil. Um que parte do filme para tentar entender a sociedade. E outro, quase em sentido inverso, que parte da população em geral, passa pelo filme, e ricocheteia em direção aos espectadores. O filme, de toda forma, já tem por si só um grande mérito: espelhar facetas nem sempre mostradas de nosso corpo social. Comecemos pelo segundo caso, que, talvez, explique de maneira pouco tradicional o primeiro.

Poucos filmes brasileiros, desde o início da Retomada, tiveram uma projeção internacional como esta produção do cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho. Podemos nos lembrar dos indicados ao Oscar ou de quem recebeu prêmios nos principais festivais de cinema do mundo, como Cannes ou Berlim. O primeiro longa de Kleber, que já tinha rodado vários curtas, além de trabalhar como crítico de cinema, seguiu outro caminho. Foi escolhido pelo jornal “The New York Times” como um dos dez melhores filmes de 2012. Essa foi a deixa para uma onda de críticas positivas ao filme na terra brasilis.

Não que o filme não mereça todos os elogios – ao contrário. Ao retratar um microcosmo da sociedade brasileira raramente exibido no cinema – a classe média – a história traz um frescor incomum para as telas. O filme se passa em Recife, mas, como destacou o crítico do jornalão americano, “nós poderíamos estar em qualquer lugar”. Kleber respeitou o velho conselho de falar sobre o seu universo particular para ser universal. Não há uma grande trama, mas pequenos esquetes do cotidiano, mostrados com uma intimidade às vezes desconcertante. Lembra, nesse aspecto, o cinema da argentina Lucrecia Martel.

O grande acerto de Kleber, é bom ressaltar, ficou na escolha de seus personagens: são todos factíveis. Você pode apostar que conhece alguém parecido com João, Sofia, Bia ou mesmo seu Francisco, o grande latifundiário que ainda mantém seu poder quase intacto, ou Clodoaldo, o segurança miliciano da rua. Em alguns momentos, são engraçados. Em outros, dão raiva. Em todos, são múltiplos, ambíguos, estranhos. São humanos, enfim. Fazer um filme não necessariamente realista, mas sobre a realidade, é um fato cada vez mais raro entre nossas produções.


Contudo essa percepção positiva por parte da crítica não refletiu em uma boa bilheteria. Apesar da boa-vontade geral de certaintelligentsia liberal que ri de situações constrangedoras, como a citação depreciativa aos leitores da revista “Veja”, “O som ao redor” tinha levado cerca de 60 mil espectadores para os cinemas, em suas cinco primeiras semanas de exibição. Como efeito de comparação, “De pernas para o ar 2”, uma comédia leve e despretensiosa focada no público feminino, em seis semanas tinha feito quase 4,5 milhões de espectadores. Isso não prova muita coisa, já que há outros elementos envolvidos nos números frios de uma produção do cinema hoje em dia. Tratado como produto, esta equação respeita muito mais elementos como distribuição, propaganda e outras formas de marketing, que a simples qualidade do filme. As críticas positivas se tornam apenas uma peça dentro dessa estratégia.

É exatamente aí que “O som ao redor” começa a mostrar uma das facetas da nossa sociedade. Há um racha que existe há muito tempo e que, aparentemente, só tende a se ampliar: o pensamento crítico não representa a vontade do público. Não há diálogo entre essas duas instituições. Muitas vezes há exatamente o oposto: o público que escolhe o filme entre os piores criticados; e o crítico que esnoba as grandes bilheterias. Assim, acontecem bate-bocas públicos, como o exposto pela “Folha de S. Paulo”, entre o próprio diretor Kleber Mendonça Filho, pelo lado dos críticos, do cinema cult, da “alta cultura”; e o diretor-executivo da Globo Filmes, Cadu Rodrigues, pelo lado do público, do cinema de massa, popular, tendendo ao popularesco.

O curioso disso, dessa discussão, e finalmente adentrando o segundo tópico, é que a vontade declarada de Kleber ao rodar esse filme era, de certa forma, atualizar o tema freyreano da casa-grande e senzala, da divisão entre senhores e escravos. As cenas iniciais são mais claras nesse aspecto: após mostrar uma sequência de fotos antigas que exibem essa disparidade social e de poder, ela mostra que não houve tantas mudanças até hoje, com um condomínio lotado de babás negras tomando conta de crianças brancas. Em entrevista à revista Carta Capital, ele reclama do desprezo que temos em relação à História: “O Brasil só pensa no presente e no futuro. Esquece que o passado é o manual de instruções de uma sociedade”, desabafou Kleber.

Ou seja, apesar de tentar e, na opinião de muitos especialistas, conseguir mostrar a classe média brasileira, e, de certa forma, a mundial – por ser cada vez mais parecida em seus consumos e gostos – o cineasta apontou sua câmera para os extremos da sociedade brasileira. Como se ele conseguisse mostrar o estrato mediano, ao mirar no alto e no baixo, dessa sociedade. Ao mesmo tempo, porém, o filme, ao se levar em conta os seus números, não consegue se comunicar com essa mesma classe média, que é, provavelmente, a maior consumidora de cinema no Brasil.

Qual será o motivo dessa dissonância? Será que não vemos o cinema como um espaço para espelhar e problematizar a nossa sociedade? Será que enxergamos a sala escura apenas como um lugar para escapar do que acontece fora dela? Será que não temos, em geral, as ferramentas para interpretar filmes que fogem de uma estética televisiva? Ou será que finalmente estamos chegando ao mercado dividido em nichos específicos em que cada um tem, deve ter, e terá o seu espaço para trabalhar?

Excesso de memória

[...] é possível viver quase sem lembrança, sim, e viver feliz assim, como o mostra o animal; mas é absolutamente impossível viver, em geral, sem esquecimento. Ou, para explicar-me ainda mais facilmente sobre meu tema: há um grau de insônia, de ruminação, de sentido histórico, no qual o vivente se degrada e por fim sucumbe, seja ele um homem, um povo ou uma cultura.
Contra a hegemonia desses tempos super-históricos, Nietzsche.

Ou como bem notou o narrador de "Funes...": "Le era muy difícil dormir. Dormir es distraerse del mundo".

[escreverei mais sobre isso em breve.]

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Muita modernidade

Uma das maiores curiosidades ao ler sobre cerveja é descobrir que, apesar de milênios de produção, a forma como nós a consumimos agora, hoje, tem no máximo dois séculos. Antes, eram experimentos muito aleatórios, cujos mestres não sabiam ainda bem o que estavam fazendo, ou quais seriam os resultados.

O mesmo acontece com o consumo de outros produtos [reparem que eu escolhi a palavra "produtos"]. Livros, para ficar em um assunto que eu já li algo sobre. Foi também há mais ou menos dois séculos que houve uma mudança nas tiragens e um aumento do público-leitor - isso, claro, nos países ricos.  Enfim. Esses exemplos servem para reforçar que realmente houve uma mudança forte no comportamento por volta da virada do século XVIII para o XIX, que até hoje nos influencia. É a tal da modernidade.

O que fica na cabeça de quem estudou comunicação na virada do século e do milênio, porém, é que a modernidade teria se findado. Ou melhor, se transformado em algo que, por falta de nome melhor, é chamado de pós-modernidade. Alguns, com vergonha do nome, chamam apenas contemporaneidade [como se o que é contemporâneo agora fosse mais contemporâneo que em outros momentos].

Imagino que qualquer busca na internet vai dar um tabela com as diferenças esquematizadas entre a modernidade e a pós-modernidade, portanto o que eu disser aqui será mera bobagem - já que não terá a profundeza e a preocupação de um ensaio maior moderno, nem a ligeireza e a síntese de um gráfico pós-moderno.

No esquema do segundo, é possível passar rapidamente por uma ideia em um imagem criada por um design que transforma as principais informações em lindos desenhos estilizados de fácil decodificação - e, por que não? -, fruição estética, e que não precisam de grande esforços. É tudo fácil, bonito, prático, indolor, rápido. Já a modernidade requer um trabalho grande de contextualização histórica, demonstrando as sua origens, prováveis explicações, numa reta em direção a um progresso dado como inequívoco. Os modernos são quase positivistas. Ou pior, filhos de Hegel.

A verdade é que essas definições são criações humanas. E como tais, falíveis. Imagino que essa minha afirmação já é encarada por um conservador-moderno [abundam!] como pós-moderna, já que eu admito a incapacidade de chegar a uma conclusão. Porém, quero levantar a sobrancelha do eventual leitor [principalmente se for conservador] para a ideia de que, talvez, só talvez, a pós-modernidade seria apenas uma conclusão, uma linha, ou melhor, a linha de chegada da modernidade. Como dizem dois amigos, e eu sempre os cito, sempre tendemos a achar que vivemos no momento mais importante da História. Eu acrescento: ou que esse momento nos escapou por um triz [no caso dos saudosistas daquilo que não se viveu]. Tendemos, segundo esse ponto, a valorizar inconscientemente o nosso presente em detrimento a outros tempos.

Como fui acusado recentemente de ser flexível demais, de tentar sempre mostrar o outro lado, em detrimento de apresentar o que eu verdadeiramente acredito - eu que na verdade não sei nada bem o que eu verdadeiramente sei - vou voltar no argumento. É inegável, porém, que esse momento mais "cibernético" seja diferente dos anteriores. Não há nada parecido com essa transformação do homem em um ciborgue, em um ser completamente veiculado com máquinas. Estamos, na minha humilíssima opinião, testemunhando a criação, como diria Heidegger, de um novo Dasein.

Taí. Eu acredito que estamos vivendo o início, sim, de uma nova era, de um novo tempo. Bato este martelo. E, como as anteriores, estamos em um processo de transformação, em que outros tempos ainda convivem concomitantemente - e esses caminhos temporais paralelos devem se manter por muitos e muitos anos e décadas, talvez até séculos. Também acho que não descartaremos o que houve no passado, pelo contrário, apenas estamos nos adaptando a esse novo presente, usando, inclusive as ferramentas que aprendemos no passado. Também acredito que não vivemos nem próximo da totalidade do que será essa nova era, e provavelmente essa totalidade nunca existirá, além do campo da teoria.



Antigamente, há 40, 50 anos, pensavam o século XXI, o ano 2000, como um mundo habitado pelos Jetsons. Quando, na virada do milênio, nada de espantoso aconteceu, houve uma espécie de decepção. Esqueceram-se de que as grandes transformações são contínuas e, na maioria das vezes, silenciosas.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

A grande questão filosófica

O franco-argelino Albert Camus inicia o seu "O mito de Sísifo" com uma das frases mais impactantes de toda a sua obra: "O suicídio é a grande questão filosófica de nosso tempo, decidir se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma pergunta fundamental da filosofia" [como aliás, eu já notei aqui ao comentar algo parecido com o que eu vou falar hoje].

Resumidamente, o filósofo-romancista está perguntando que, se o mundo não é feito de grandes absolutos [deuses, instituições, ícones, ideologias, etc.] dados a priori, não existiria uma "razão" intrínseca para se viver. Portanto, ele pergunta por que, então, não cometeríamos, todos, suicídio? Por que viver uma vida sem uma razão essencial? Ele conclui que a resposta é que deveríamos ser afirmativos, seguir adiante. Se eu me lembro bem, sugere termos uma atitude do homem trágico. Se eu me lembro bem [2], sem referência diretíssima à tragédia grega, mas tendo esse mesmo comportamento do personagem que sabe que seu mundo é inviável, mas que continua assim mesmo - como Sísifo - empurrando a pedra morro acima. No fim, ele conclui: "É preciso imaginar Sísifo feliz".

Vou pedir licença a Camus, um dos grandes, para tentar, não corrigi-lo, mas fazer uma pequena intervenção em sua frase, logo a inicial, a inicial!, e tentar adaptá-la ao que eu imagino. Ficaria assim: "A vida é a grande questão filosófica, entender por que vivemos é responder à pergunta fundamental da filosofia". Por que a mudança? Porque em minha versão, você não "precisa" imaginar Sísifo feliz. Ele pode ser ou não. Mas, de qualquer forma, ele continua empurrando a pedra morro acima.

Por que ele não simplesmente para? Por que ele não desobedece aos deuses? Não desperta, não toma as rédeas da própria vida? Porque, acredito, estamos condenados a viver. O que Camus faz é uma sugestão, já que estamos presos à vida, devemos, então vivê-la da melhor maneira possível. O que não cabe qualquer dúvida. Mas a minha pergunta é anterior: por que estamos condenados à vida?



Em seu último filme, o franco-austríaco Michael Haneke mostra exatamente o fim da vida, aquele momento em que não nos parecemos mais com o que costumamos chamar de ser humano, que a vontade está se desprendendo do corpo, mas que continuamos, de acordo com as definições técnicas, vivos. Por que nos agarramos à vida? Por que não podemos simplesmente fechar os olhos e nunca mais levantar? Por que não temos esse poder?

É curioso como nos agarramos aos fiapos do viver. Podemos dizer que estamos sob influência de gerações e gerações de catequese, que colocava o suicídio como o maior dos pecados. Mas e as sociedades que não tem influência cristã, como as africanas? O que faz com que as crianças famélicas simplesmente não desistam? O que mantém o brilho, mesmo que cansado, nos olhos delas?

No fundo, o que eu quero saber é: por que há uma "vontade" [nos similares sentidos de Schopenhauer e Nietzsche]? Por que ela existe? O que a torna parte integrante de todos os corpos? Essa é, e continua sendo, e será, para sempre, a única pergunta que existe. [Mas que não de uma pequena curiosidade, reparem.]

domingo, 24 de fevereiro de 2013

'Raiz, só de mandioca'

Cito mais uma vez Gil: raiz para mim só de mandioca. Samba é música moderna, criada no início do século 20, inclusive com a invenção de instrumentos novos, como o surdo, criado a partir de tonéis industriais. Tudo muda, o tempo todo. Ficou mais pobre? A partir de que critério? Sei que o relativismo está fora de moda. Nem ligo: sou relativista incorrigível, cada vez mais radical. Constantemente me pego fazendo coro para Hêmon brigando com seu pai Creonte, em Antígona: "Guarda-te, pois, de te apegares a um só modo de pensar, crendo que o que dizes, e por seres tu que o dizes, exclui qualquer outra possibilidade de ver e sentir as coisas". Não tem quem me convença que há um fundamento estético único a partir do qual podemos decretar o empobrecimento ou o enriquecimento das criações humanas. Mas digamos que há: então encontro no funk muitos elementos que o tornam superior a uma sub-MPB que tentam me empurrar como música de qualidade. O tamborzão do funk salvou a música brasileira na virada do século 20 para o 21. É vanguarda mesmo, concretismo eletrônico afro-brasileiro. Mas para quem acha que hip hop não é música, ou que Stockhausen não é música, o que estou falando é delírio. Um consolo é saber que a produção da gravadora Motown um dia foi considerada por todos os críticos como lixo comercial sem futuro.
Mais da entrevista do Hermano Vianna ao "Estadão" aqui.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Estupideza econômica

"É a economia, estúpido". Foi assim que um assessor do Clinton respondeu a uma pergunta sobre como o seu chefe havia sido eleito, mesmo tendo como adversário um Bush pai com uma boa aprovação do seu governo, que tentava a reeleição. Apesar de os norte-americanos terem apoiado a sua invasão ao Iraque [estou falando da primeira vez, e do primeiro Bush], a economia dos EUA não ia assim tão bem. Essa frase me veio à cabeça por conta de dois momentos históricos razoavelmente parecidos cuja resposta pode ser a mesma.

Uma das melhores argumentações do motivo pelo qual os ânimos se arrefeceram contra a ditadura brasileira de 1964 foi exatamente o sempre citado milagre econômico. Quando o golpe acontece, há um movimento razoavelmente forte de oposição à ditadura - considerando todos os pesares -, que vai diminuindo de intensidade por vários motivos, sendo uma das principais a crescente e cada vez mais violenta repressão, com tortura, mortes, desaparecimentos. Mas não foi a única razão.

Na virada para os 1970s, com os grupos de oposição acéfalos, encurralados e sem perspectivas, houve ainda esse crescimento brasileiro. Mesmo que não fosse algo compartilhado por toda a população diretamente, como é lembrado pela frase do bolo que só no futuro se repartiria, houve um aumento de poder aquisitivo por parte dessa classe cada vez mais amorfa chamada "média". Como ouvi de um guerrilheiro: perdemos a nossa fonte de recrutamento.

Liu Xiaobo, na página do Nobel
O jovem universitário tinha que colocar em um dos pratos da balança a possibilidade de lutar por liberdade, um país mais justo, ou mesmo a revolução comunista - que seja -, mas com risco para a própria vida; ou simplesmente seguir uma existência comum, e quadrada, com um emprego e uma família para sustentar. Não tenho dúvidas qual prato ficou mais pesado.

Hoje, em uma reportagem no "Prosa" sobre o lançamento [no ano passado] do livro do Nobel da paz de 2010, Liu Xiaobo, lemos que ele reclama exatamente dessa "geração nascida após a abertura econômica, a quem considera negligente, 'amaciada pelo bem-estar e pelo pragmatismo' e 'uma geração cuja lembrança é totalmente vazia'". Parece ter encontrado o mesmo problema lá na China.

Não imagino que todas as decisões humanas sejam tomadas de acordo com a economia, em detrimento da ideologia. Mas suspeito que as pessoas prezam o bem estar pessoal sobre o sentimento coletivo de liberdade. A liberdade, ou o sentimento de estar fazendo algo certo, é algo intangível. O carro do ano, ou o último gadget - ou simplesmente ter comida no prato, perguntem aos cubanos - não é.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

O tempo do velho

O tempo do velho não é mais o tempo da memória – como indicou Ecléa Bosi nos idos dos anos 1970 em Memória e sociedade: lembrança de velho. Porque o tempo de acessar o passado e recontá-lo às novas gerações não é mais viável. Expropriado de sua função de lembrar (para além da função de trabalhar), o velho só é valorizado quando desempenha funções que não seriam atribuídas primeiramente a ele. É a vovó que pratica esportes radicais ou o vovô 'antenado' com a realidade virtual.
Porque o tempo lento da velhice não cabe no cotidiano acelerado do hoje. E para não permanecer à margem, o velho precisa se incluir no ritmo do presente. Encarar o declínio da vida é apavorante. Não apenas quando se é jovem e vê nas gerações passadas o futuro distante, mas, principalmente, quando o tempo da velhice já chegou e o universo conhecido se esvai com as pessoas que desaparecem sem se despedir. Assim como tudo o que é familiar, como o bairro ou a rua em que cresceu, engolidos pelo crescimento das cidades. A paisagem é estranha, as pessoas vão morrendo e a forma de interagir com o mundo se torna cada vez mais 'moderna'. O velho é obsoleto como a tecnologia.
Alice Melo, minha amiga, dizendo tudo sobre a sociedade dos novos.

O primata assassino

A tal da teoria do "primata assassino", chamada também de "naked ape", me lembra - ou lembra por si só - uma frase muito repetida, algumas vezes fora de contexto, outras, trocando completamente o seu sentido, mas que é defendida pelos que têm medo de uma vida mais livre: "Se deus não existe, tudo é possível".

Escreve Ciro Flamarion Cardoso em seu artigo "Por que os homens agem como agem?" [leitura aqui e sobre o qual eu já falei um pouco aqui] que essa teoria do "macaco nu" foi bastante divulgada num período de acirramento de posições, auge da guerra fria, em um ambiente norte-americano, quase como uma justificativa das violências praticada pelas nações. Como se argumentasse que o equilíbrio entre os países era mantido "unicamente no 'terror das armas'" [anota Ciro, citando Raymond Dart, o paleontólogo sul-africano que conseguiu popularizar a ideia do "primata assassino"]. Segundo essa teoria, a "agressão e o militarismo são inerentes, naturais e inevitáveis", exemplifica Ciro.


Ciro explica que "devido à leitura aprovadora do primeiro livro de Ardrey [um escritor, não cientista, que defendia essa teoria] por Arthur C. Clarke, a noção do 'primata assassino' serviu para organizar a parte inicial de um dos filmes mais influentes da década de 1960: '2001: uma odisseia no espaço' [1968], com roteiro de Clarke e direção de Stanley Kubrick [...]".

Não concordo com isso. Não concordo porque, como disse acima, me lembra a citação lá de cima de Dostoiévski, que, para mim, é herança da tradição cristã, de cerceamento da liberdade. Pelo que eu sei, a frase, como ela ficou famosa, jamais foi escrita ipsis litteris na obra do russo. Mas o tema da necessidade de um deus, de algo que nos controle, que seja um juiz universal, permeia "Os irmãos Karamazov", principalmente ao redor do personagem Ivan Fyodorovich Karamazov, também chamado de Vânia, e que na minha péssima tradução é nomeado de Ivã. Ele é o irmão do meio [oficialmente], inteligente, racionalista e ateu. É dele, por exemplo, o poema "O grande inquisidor" - e você pode imaginar quem seja esse sujeito grande.

Um trecho interessante sobre a necessidade de um deus é o diálogo entre os outros dois irmãos, que na minha tradução são chamados de Mítia, o sensualista irmão mais velho, e Aliócha, o adorável e provável protagonista da obra - além de seminarista. Em certo momento, Aliócha, que [sem fazer spoiler] está em apuros, pergunta: "Como viverei sob a terra sem Deus?" Para, logo em seguida, ainda em torpor fazer outra pergunta: "Que fazer se Deus não existe?" Para tentar responder: "Neste caso, o homem seria o rei da terra, do universo. Muito bem!". Só para cair, novamente, em outra dúvida: "Somente, como será ele virtuoso sem Deus? Pergunto a mim mesmo. Com efeito, a quem amará o homem então?" Lembrando uma discussão com o colega seminarista Rakitin, Aliócha o acusa: "'Tu mesmo, não acreditando em Deus, elevarás o preço da carne se houver oportunidade, e ganharás 1 rublo em vez de 1 copeque'". Na dúvida, pergunta ao irmão: O que é virtude? É coisa relativa? E lembra de uma outra questão feita ao outro irmão, "Ivã", "Então, tudo é permitido?"

Em outro trecho interessante sobre o assunto, "Ivã" conversa com Smierdiákov, o provável filho ilegítimo do pai Fiodor, cujo nome quer dizer o filho da fedorenta, e que trabalha na casa dos Karamazov, além de ser amigo de "Ivã", com quem compartilha do ateísmo - e que está envolvido no mesmo apuro de Aliócha. Copio o trecho inteiro aqui, com Smierdiákov sendo o primeiro a falar:
— [...] Foi o senhor quem, com efeito, me ensinou isso e muitas vezes explicou-o: se Deus não existe, não há virtude e ela é inútil. Raciocinei assim.
— Chegaste a isso sozinho? — perguntou Ivã, com um sorriso constrangido.
— Sob a influência do senhor.
— Então tu crês em Deus, agora, pois que entregas o dinheiro?
— Não, não creio nele — murmurou Smierdiákov.
— Por que então o entregas?
— Deixe isso! — cortou Smierdiákov num gesto de lassidão. — O senhor mesmo repetia então que tudo é permitido. Por que está tão inquieto agora? Quer mesmo denunciar-se? Mas não há perigo! O senhor não irá! — afirmou ele, categórico. 
Geralmente essa necessidade de um controlador universal se dá pelo raciocínio de que o[s] homem[ns] precisa[m] de instituições - ou deuses, no dizer de Nietzsche - para poder domar, controlar seus instintos. Instintos esses que seriam assassinos. Quantas vezes você já não ouviu que se fôssemos fazer tudo o que queremos acabaríamos nos matando? Como se a primeira coisa que quiséssemos fazer fosse sair pelas ruas atirando uns nos outros. Como se houvesse, como dito lá em cima, um sentimento anterior, adormecido, de assassino - do primata assassino - e que as instituições controlassem. Quando, na verdade, isso não necessariamente aconteceria.

Qualquer afirmação sobre esse caso, sobre esse comportamento, me parece, na hipótese mais pessimista em relação à humanidade, uma generalização. Como se todos agissem de maneira igual. E de maneira igualmente cruel, egoísta, ignorando o outro, as necessidades dos semelhantes. Como Aliócha exemplifica, que, sem deus para controlá-lo, o colega seminarista logo aumentaria o preço da carne - não deve ser à toa que se usa a expressão "deus-mercado" [curiosa essa citação aqui]. É uma hipótese tão forte - ou fraca - como qualquer outra. Inclusive igual aquela que diz exatamente o seu oposto: que viveríamos muito melhor, em paz mundial, sem qualquer preconceito ou perseguições, sem as instituições.

Mas por que ser tão extremista e se ater a apenas uma posição?

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

'O Medo', de Carlos Drummond de Andrade

O Medo

Em verdade temos medo.

Nascemos no escuro.

As existências são poucas;

Carteiro, ditador, soldado.

Nosso destino, incompleto.

E fomos educados para o medo.

Cheiramos flores de medo.

Vestimos panos de medo.

De medo, vermelhos rios

Vadeamos.

Somos apenas uns homens e a natureza traiu-nos.

Há as árvores, as fábricas,

Doenças galopantes, fomes.

Refugiamo-nos no amor,

Este célebre sentimento,

E o amor faltou: chovia,

Ventava, fazia frio em São Paulo.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Assassinato de Che



"Mais uma íntegra de 'Personal Che'. Felix Rodriguez, o homem da CIA que participou da operação de captura e execução de Guevara", como explica meu amigo Douglas Duarte.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Flexibilidade x fixação

Ainda num clima "O individual, o coletivo e o conservador", leio um texto do historiador, mestre de muitos amigos, Ciro Flamarion Cardoso, em que ele pergunta logo no título: "Por que os seres humanos agem como agem?". Dono de uma cultura vastíssima, ele tenta no início mostrar os seus próprios limites na pesquisa - já que o assunto é praticamente infinito. E os divide em "dois grandes eixos": coletivo x individual; natural x social/cultural. Correndo o sagrado risco da generalização, e sem importância prática para o que se verá aqui, acho que os dois grupos são a praticamente a mesma coisa.

Ele escreve em certo momento: "Toda conduta humana, seja individual, seja coletiva, pode ser apresentada como resultado final de dois processos de seleção".  O social/cultural e o natural, ou coletivo e o individual. Passa-se primeiro pelos primeiros e depois se chega aos segundos. Antes, a tomada de decisão passa pelo todo e depois vai para o pormenor. Não dá, portanto, para priorizar um dos "dois filtros", como ele chama, em detrimento do outro.

E é esse o erro de quem opta por um dos dois lados apenas. Somos mais que extremistas. Somos mais que esquerda e direita [ou centro]. Preto e branco [e amarelos]. Certo e errado, verdade e mentira. Somos gamas, tensões, híbridos, tons. Somos seres que deveriam se adaptar às situações dadas, em vez de ficarmos presos a dogmas pré-estabelecidos há gerações. Temos que tentar fazer o melhor que conseguirmos, com as ferramentas que temos, na hora que o problema se apresenta.

Mais ou menos como é a minha interpretação da proposta nietzscheana, que eu já tinha escrito no texto anterior, da vontade de potência [apenas no caso alemão é mais afirmativo]: se você quer algo e esse algo é possível, faça. Simplesmente.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Conselho para teses de um conselheiro

[...] é preciso ainda apreender a escrever como um intelectual acadêmico ( note que acadêmico não se refere mais à Academia Brasileira de Letras, mas à universidade ). Sobretudo, não deixe que seu estilo se confunda com o de jornalistas ou outros leigos. Você deve transmitir a impressão de profundidade, isto é, não pode ser entendido por qualquer leitor. Há três regras básicas que formulo com a ajuda do editor S. T. Williamson. Primeira: nunca use uma palavra curta se puder substituí-la por outra maior: não é “crítica” mas “criticismo”. Segunda: nunca use só uma palavra se puder usar duas ou mais: “é provável” deve ser substituído por “ a evidência disponível sugere não ser improvável”. Terceira: nunca diga de maneira simples o que pode ser dito de maneira complexa. Você não passará de um mero jornalista se disser: “os mendigos devem ter seus direitos respeitados”. Mas se revelará um autêntico cientista social se escrever: “o discurso multicultural, com ser desconstrutor da exclusão, postula o resgate da cidadania dos povos da rua”
José Murilo de Carvalho deu, em 1999, ótimas dicas para se dar bem na Acade... na Universidade.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Homenagem aos historiadores

Os fatos que geram a História são alterados pela má memória, pela interpretação conveniente, pela ornamentação fantasiosa, por tudo que vem com o tempo depois do fato. Com o tempo o mito vira realidade e a realidade vira mito. Mas é só dar mais tempo ao tempo que a verdade aparecerá.
 Verissimo mostra um certo otimismo com o tempo. De toda forma, o faz com maestria, como sempre.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Gigante Lincoln

"Lincoln" é um grande filme grande. E, como já ressaltado por críticos de verdade, Spielberg, desta feita, é menos espetaculoso. Parece mais um filme de roteirista, principalmente se pensarmos que Tony Kushner é oriundo do teatro. É um longa mais centrado em diálogos - e que diálogos! -, em discursos, em histórias contadas, não mostradas.



É também uma produção que valoriza o trabalho dos atores, principalmente de Daniel Day-Lewis, que deveria receber um Oscar hors concours, e parar de participar da disputa anualmente. Não lembro de outro ator tão bom que consegue optar tão bem por papéis tão interessantes. Sua encarnação de Lincoln é surpreendente. Além da completa personificação, em certos momentos ele ainda se dá o luxo de demonstrar que ali dentro daquela carne e envergando os ossos que andam com dificuldade, há um ator interpretando. Seu rosto - e a fotografia do filme gostou do estratagema de só mostrar rostos dos atores - é ora de Lincoln, ora de Day-Lewis, ora de um híbrido.

Mas é no roteiro, e nos diálogos, que reside a força dessa história. Fazer a biografia de um personagem tão rico e significativo fornece material para uma longa série ou uma dessas intermináveis novelas americanas. Já fazer um recorte preciso, para um filme, e, ao fim da exibição você não ter vontade de procurar saber mais do retratado, porque as perguntas que você se fez durante o filme foram respondidas, não é nem próximo de uma tarefa simples.

Tudo bem que o filme se vale do fato de ser realmente grande [150 minutos, ou duas horas e meia], mas a escolha do período é significativa: o momento logo após sua reeleição, quando ele decide apostar todo o seu cacife político numa jogada polêmica: a abolição da escravatura. Além disso, acontecia razoavelmente no mesmo período a Guerra Civil americana, que estava em franco declínio, com o Norte claramente vencendo o embate. Já no plano familiar, Lincoln enfrentava a dor da perda de um filho, a ingerência de um outro, além da neurose de sua esposa.

Em vez de apresentar, porém, o presidente dos EUA como um super-homem, o filme o mostra como, além de outras características mais abonadoras, um trapaceiro. Que montou um esquema digno do mensalão para comprar deputados da oposição democrata [isso, ele era republicano e apoiava o fim da escravidão, enquanto os democratas, hoje considerados mais liberais, eram contra a ideia de igualdade entre os homens] para votar a famosa 13ª. emenda da constituição americana.

Além de trapaceiro, Lincoln é um sedutor, excepcional contador de causos e histórias, e um negociador implacável. Outra característica que pode ser vista como familiar a um determinado ex-presidente da nossa República Federativa tem a ver com o seu passado humilde. Mesmo que não mostre a época em que ele convivia com escassez de recurso, tal momento é citado ao menos duas vezes. Diferentemente do nosso ex-guia, todavia, Lincoln estudou e se formou em direito, que ele usava como arma e estratagema para alcançar o seu objetivo maior.

Lincoln também não é mostrado como o único responsável pela aprovação da emenda.

Aliás, antes de prosseguir, é importantíssimo ressaltar que o talvez provável maior mérito de Spielberg seja criar um clima de mistério sobre um assunto que todos, razoavelmente, já sabem como acaba. Voltando.

Lincoln é ajudado por congressistas, ministros, políticos de seu partido e pelos "lobistas" [talvez fosse melhor falar em "operadores"]. Ele próprio também ajuda bastante no propósito: mente, omite, suborna [ou mandar subornar], ameaça [ou manda ameaçar]. Tudo para seguir o seu intuito principal, que é libertar os negros.

Essas fraquezas de espírito, esses aparente defeitos de caráter, porém, têm o efeito inverso do esperado. Engrandecem o personagem principal, que curiosamente logo no início do filme, enquanto conversava despreocupadamente com soldados, brancos e negros, que lutavam na Guerra Civil, é inquirido sobre sua altura.

Ao terminarmos de ver o filme, não temos dúvida, ele era um gigante. Desses poucos que vivem de tempos em tempos. Que se preocupava com o outro, e, se acreditarmos em Kushner e Spielberg, obcecado por acabar com a escravidão.

Sorte a do país que conseguiu ter um homem como esse como presidente, razoavelmente no início de sua história. Um político que tinha ideais, e ideais que se mostraram corretos mesmo anos após a sua morte.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

O individual, o coletivo e o conservador

O grande problema da tradicional esquerda é ignorar a vontade de cada um ser um indivíduo. Já o grande problema da tradicional direita é, como se pode imaginar, o inverso: desconsiderar que em uma sociedade há uma necessidade de se pensar o todo, abrindo mão de alguns de seus quereres. O problema de ambos, quando muito tradicionais, é exatamente esse: ser conservador. Tentar parar o tempo num lugar imaginário que se chama passado, mas que nunca exatamente existiu.

Na verdade, ser individualista até poderia funcionar sempre, como regra. Desde que, é claro, o sujeito que opta por essa proposta de vida viva exatamente como prega: sozinho, longe de todas as outras pessoas. Se respeitar um pouco que seja a característica gregária dos seres humanos, já vai ter que deixar de fazer alguma coisa que ele acha importante. Viver com o outro é saber que há limites para as suas vontades.

Não pensem que eu opto pelo centro, por favor, não. Nem mesmo que eu virei um liberal inconsequente. O que sugiro é ser mais maleável e tentar se adaptar às situações à medida que elas apareçam. Ser individual quando puder ser, optar pelo coletivo, quando for o melhor para mim, e para todos. Ser individualista sempre, talvez, mas pensar no médio e longo prazo também. Considerar que não preciso fazer tudo de imediato, que ganharei, e ganharemos todos, se pensar em todos, agora, e sempre.

Além disso, que eu não preciso decidir todos os meus passos, deixar que a "ventura", a "fortuna", a "sorte", ou o "devir" cuidem do meu caminho, do que vem à frente, do meu destino, que não precisa ser sempre tão baseado nas minhas ambições. Que eu saiba entender os meus limites e os "nãos".

Ficar no meio do caminho, ou no caminho do meio, como diriam os budistas, é também se isolar, é não respeitar as características de cada uma das situações. É não perceber que a nossa grande vantagem, o que torna os homens [no sentido de humanidade] mais aptos é exatamente essa capacidade de se adaptar. Temos que pensar que a vida vem em ondas [isso, Lulu Santos], e que há dias sim, e dias não [arrã, Cazuza]. E temos que viver em ambas as situações. Afirmativamente. Não é positivamente, repare, nem otimisticamente. É afirmativamente.

O conservador, tanto o de esquerda quanto o de direita [não há muita diferença], então, erra em princípio. Quer um mundo idealizado. Costuma dizer que o passado era melhor que o presente - mas esse passado é apenas imaginação e fantasia. Se houvesse uma máquina do tempo para revisitar a data pelo conservador mencionada, ele mesmo não reconheceria o que era melhor. O conservador não aceita a realidade. É um nostálgico. Nega o presente porque o seu ideal [penso agora em Platão e no que Nietzsche chamou de neo-platonismo: o cristianismo] é sempre superior. É sempre passivo, vive em função do outro. Remissivo. Ressentimento. O alemão bigodudo dizia que o cristão é o um ressentido porque precisa do seu oposto, o pecador, para ter algum sentido. Precisa de um inimigo.

O conservador, no meu entender [e eu posso estar enganado] pensa sempre que ele é o centro do mundo, e que quem não concorda com ele está, em princípio, errado. O seu passado, o seu tempo, aquela época citada era melhor. Hoje, com todas as vontades de várias pessoas envolvidas, o resultado de tantas forças, que não envolve apenas o que eu penso, é pior. Sempre.

A minha proposta é simples e novamente cita o alemão do bigode. Você descobre o que quer [já é difícil bagarai]. Depois, descobre se isso é possível [outra dificuldade]. Se não afeta em demasia o outro, se não está sobrepondo a sua vontade sobre o outro. Se não está agindo apenas e unicamente individualmente em detrimento do coletivo. Por fim, se tiver ao seu alcance, se for ok, simplesmente faça. Faça, faça e faça, com vontade. E bastante.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

As tragédias e a catarse

A pior situação após uma grande tragédia é a cobertura jornalística de uma grande tragédia. É claro que isso é uma opinião minha, de quem já cobriu [poucas] tragédias, de diferentes tamanhos, e vê como o ser humano se mostra um pouco sádico nessas horas.

Escultura que representaria Aristóteles, do Louvre,
cópia do 
século I ou século II de uma outra,
do escultor grego 
Lisipo,
Imagino que Aristóteles poderia explicar bem esse sentimento geral. Não deve ser coincidência utilizarmos o termo "tragédia" quando algo completamente fora da normalidade choca um público grande.

Na sua obra "Poética", como em todas as suas demais obras, o aluno de Platão e professor de Alexandre analisa [no sentido científico do termo, de tentar separar o todo em partes menores] a estética, principalmente sob o viés da tragédia, o gênero teatral.

Essa obra seminal ditou as formas como o Ocidente entendeu as obras de arte - principalmente as escritas - durante séculos. Alguns de seus conceitos são usados até hoje, como a ideia de mímese [dá para ler um pouco sobre isso aqui] ou, e é aí onde queremos chegar, a de catarse.

Aristóteles era filho de médico. Daí, acredita-se, a sua vontade de "analisar" seus objetos, de torná-los fontes para ciência, de, inclusive, criar esta mesma ciência como a conhecemos hoje. Igualmente é especulado que vem de seu pai o vocabulário usado em alguns termos, como em catarse. No grego, essa palavra que tomou o significado de "efeito libertador", quer dizer simplesmente "expurgar", "purgação" ou, "purificação". Se minha memória não me falha, "catarse" [o Google me diz que se escreve assim em grego: "κάθαρση"] era o termo dado a quando se tomava um remédio para provocar vômitos, por exemplo.

O filósofo usa pouquíssimas vezes tal expressão em sua "Poética" [se eu não me engano, apenas duas]. Fora do contexto, a primeira citação funciona muito bem aqui: "Suscitando a compaixão e o terror, a tragédia tem por efeito obter a purgação [catarse] dessas emoções." Colocando as palavras em outros lugares na mesma frase: a tragédia conseguiria aterrorizar-nos, nós, os espectadores, e provocar-nos a compaixão, conseguindo, com isso, retirar, ou acostumar-nos, ou tornar-nos aptos a enfrentar emoções parecidas. Serviria, portanto, para doutrinar-nos, treinar-nos para a vida real, fora dos teatros, nas ruas, onde as tragédias verdadeiras acontecem.

Voltando, portanto e finalmente, às tragédias verdadeiras. Há uma espetacularização das tragédias por parte da cobertura e é fácil enxergar isso. Uma vontade de transformá-las em uma narrativa, de ficcionalizá-las. Se fôssemos pensar na estrutura de três atos, estes seriam:  1º/ a grande epifania, a cena do acidente, mortes, desespero e dor; 2º/ flashback, para contextualizar quem são as vítimas, humanizá-las, trazê-las para perto dos espectadores; 3º/ a busca ensandecida, e às vezes totalmente cega, por culpados, a caça às bruxas, a expiação do bode [que era carneiro, provavelmente], a vingança. A catarse, enfim [ver o ps. abaixo]. Todos ficam "expurgados" das emoções de "terror" e "compaixão", que faz tanto mal carregar dentro de si. Por isso as reportagens e as informações são consumidas com afinco, com vigor, com vontade.

O problema, contudo, de trocar as tragédias-teatrais pelas tragédias-verdadeiras é o mais simples de todos: confundir a realidade com a ficção. Não é tão fácil assim sair do teatro do cotidiano. Sem uma mudança na estrutura do roteiro das tragédias-verdadeiras, elas tendem a se repetir eternamente. E, diferentemente das peças teatrais, pessoas realmente morrem no dia-a-dia.

ps. do dia seguinte: Fiquei pensando que há uma segunda informação que não pode deixar de ser considerada. A mudança no sentido da palavra catarse, e a posição em que ela se encontra nas tragédias teatral e verdadeira. Na teatral, a catarse é o sentimento final, uma explosão, em que há a série de desgraças, e o tal "efeito libertador". As pessoas saem mal das peças, e por conta disso, sabem como é se sentir mal. Já na verdadeira, é o inverso. Diferentemente do que eu imaginei ontem, a catarse acontece no início, logo de cara, e as pessoas não sabem lidar com esse inevitável, com essa sensação do "sem sentido" e vão em busca de um significado maior, que tente ajudá-las a entender essa falta de razão exagerada. Procuram novamente voltar para um mundo em que há causa e consequência, em que há justiça, mesmo que divina. A busca por culpados é exatamente a tentativa de dar uma razão, de determinar as causas daquela catástrofe, tentar evitar aceitar que o mundo, às vezes, é aleatório, completamente aleatório. Na vida real, as tragédias não nos ensinam absolutamente nada.