[Tenho um grupo de estudos com amigos do trabalho sobre assuntos que nos interessam. O foco do grupo poderia ser, resumidamente, descrito da seguinte forma: como a História é uma forma de literatura. Eu sugeri um texto essa semana, que foi aceito: "Funes, el memorioso", de Borges. Repasso abaixo as minhas considerações ao livro, enquanto o relia.]
- No prefácio de "Artifícios", segundo volume das "Ficções", Borges anota uma frase curta: "['Funes...'] és una larga metáfora del insomnio". O autor argentino enfrentava o problema a essa época. E lembra a citação - talvez no sentido inverso - de Nietzsche.
- Já na primeira linha do conto, as palavras iniciais já dão o tom e o norte do que será o conto, apesar do neófito não ter muita informação para desvendar a referência: "Lo recuerdo...", escreve o narrador. Recordar, lembrar-se, conseguir resgatar algo dentro desse armazém empoeirado que é a memória. O narrador lembra-se dele, de Funes. Mas logo ele quase se arrepende de ter usado a expressão, exatamente porque a memória desse tipo parece ínfima, pequena demais ante o personagem que será mostrado. O narrador, imagino que para manter o suspense, não fala quem é o homem, o único homem que teria direito de usar, verdadeiramente, o verbo "recordar".
- Entre os sinônimos imperfeitos, como "rememorar" ou "acordarse", Borges escolhe "recordar". É interessante uma segunda interpretação para o verbo, como o de gravar, de registrar, principalmente se considerarmos que Borges falava inglês fluentemente desde muito pequeno.
- Quando Funes olha para a "passionaria", ele a observa durante todo o dia, porque a cada instante a flor é outra, diferente da anterior. O tempo modifica a matéria. Não há dois momentos iguais, não dá para mergulhar duas vezes no mesmo rio.
- Em certos momentos, o narrador se lembra de Funes, mas já duvida da própria memória e acrescenta um "creo".
- O narrador se mostra feliz com o projeto de escreverem sobre Funes - descobrimos que a conto-minibiografia faz parte de uma coletânea. Toda coletânea tenta abarcar o máximo possível, ou desejado, o objeto escolhido. Sejam escritores fantásticos, poemas brasileiros do século xx, ou músicas de uma banda. No caso de Funes. Uma coletânea é uma reunião de memória e interpretações sobre um assunto. Mas o que acontece quando o assunto, por ter a memória mais ampla que existe ou existiu, seria o único candidato capaz, ou ao menos indicado, ou melhor, sugerido, a tentar a tarefa inglória de descrever o absoluto, o todo de algum assunto? Só quem se lembra de tudo poderia, em tese, fazer isso.
- Talvez até faltasse capacidade de enxergar o todo, porque uma memória geral não quer dizer obrigatoriamente que se é capaz de captar o todo, mas apenas que o captado não é esquecido, mas haveria espaço para armazenar informações.
- Uma coletânea sempre é falível. Como qualquer lista. Sempre haverá omissões.
- O narrador se diz parcial. Mesmo que se proponha a um relato objetivo, como faz, ele vai se esquecer de algo.
- Então, antes mesmo da segunda página do conto, já temos ao menos três aspectos ligados à memória e ao tempo:
-- Como o tempo afeta a percepção dos objetos e os próprios objetos, sem falar na memória.
-- Como só uma memória infalível poderia conceber uma história total.
-- Só uma memória infalível poderia se propor a ser imparcial [o que não seria garantido].
- O narrador compara Funes ao super-homem nietzscheano. Funes é, de uma maneira até anedótica, o inverso do homem supra-histórico. Se no texto de Nietzsche, o alemão se refere a uma questão ética, do homem que não fica acorrentado a um passado, o super-homem borgeano difere minuto a minuto a contagem do tempo, por apreender tudo. Conhece todos os detalhes, todos os que lhe são depositados.
- No primeiro encontro, ele parece "normal". Vai adoecendo. Sua voz, no início, é aguda e burlona. No fim, fica nasal.
- A memória serve para as línguas!
- A citação de Plínio, o velho, da "Naturalis historia", "ut nihil non iisdem verbis redderetur audítum", quer dizer: "Nada que é ouvido pode ser contada da mesma forma".
- Logo em seguida, o narrador pede desculpas porque a história, o trecho que ele narrará já passa de meio século. A memória enfraqueceu com o tempo.
- Casos de memórias excepcionais na obra de Plínio:
- Para se reconstruir um dia inteiro se requer um dia inteiro. [Borges volta a essa metáfora em "El hacedor", quando fala de um mapa perfeito.]
- O narrador levanta a hipótese de que um homem imortal saber, um dia, tudo. É a metáfora dos macacos escritores, virada ao avesso. A teoria desconsidera, porém, a capacidade de parar de aprender, por exemplo. Ou de simplesmente repetir o aprendizado.
- O sistema de numeração: é um dos recursos mais famosos da memorização. Ao fazer ligações entre assuntos diversos, a memória é ativada.
- Os projetos de Funes revelam, segundo o narrador, grandeza. Daí, talvez, a ligação com o super-homem de Nietzsche. Uma das condições do alemão é exatamente deixar sua marca registrada na História.
- A parte mais interessante fica para o final: quando o narrador diz que Funes era "casi incapaz" de ideias gerais, platônicas, e dá o exemplo do "perro". O símbolo, para alguém com essa memória super-humana, não consegue identificar nenhum grupo, quiçá o indivíduo, já que ele se modifica com o tempo e o espaço. "Era el solitario y lúcido espectador de un mundo multiforme, instantáneo y casi intolerablemente preciso".
- Novamente a metáfora da insônia: o narrador diz que Funes quase não dormia porque "Dormir es distraerse del mundo".
- Sobre a incapacidade de generalização, o narrador expõe uma suspeita: "no era muy capaz de pensar", diz um pouco com vergonha, e explica o que entende por pensar: "es olvidar diferencias, es generalizar, abstraer". No mundo de Funes, só há "detalhes".
- Funes, apesar de ter apenas 19 anos, parece gasto, velho. Como se houvesse vivido mais que os outros. Como se o tempo houvesse corrido mais rapidamente para ele. Ou ele tivesse alongado o tempo, saboreado cada um dos seus segundos.
- Ao fim, ele morre com 21 anos, de uma morte cotidiana, talvez para humanizá-lo, retirar o caráter supra-humano dele. Talvez para mostrar que à morte, todos somos iguais.
- No prefácio de "Artifícios", segundo volume das "Ficções", Borges anota uma frase curta: "['Funes...'] és una larga metáfora del insomnio". O autor argentino enfrentava o problema a essa época. E lembra a citação - talvez no sentido inverso - de Nietzsche.
- Já na primeira linha do conto, as palavras iniciais já dão o tom e o norte do que será o conto, apesar do neófito não ter muita informação para desvendar a referência: "Lo recuerdo...", escreve o narrador. Recordar, lembrar-se, conseguir resgatar algo dentro desse armazém empoeirado que é a memória. O narrador lembra-se dele, de Funes. Mas logo ele quase se arrepende de ter usado a expressão, exatamente porque a memória desse tipo parece ínfima, pequena demais ante o personagem que será mostrado. O narrador, imagino que para manter o suspense, não fala quem é o homem, o único homem que teria direito de usar, verdadeiramente, o verbo "recordar".
- Entre os sinônimos imperfeitos, como "rememorar" ou "acordarse", Borges escolhe "recordar". É interessante uma segunda interpretação para o verbo, como o de gravar, de registrar, principalmente se considerarmos que Borges falava inglês fluentemente desde muito pequeno.
- Quando Funes olha para a "passionaria", ele a observa durante todo o dia, porque a cada instante a flor é outra, diferente da anterior. O tempo modifica a matéria. Não há dois momentos iguais, não dá para mergulhar duas vezes no mesmo rio.
- Em certos momentos, o narrador se lembra de Funes, mas já duvida da própria memória e acrescenta um "creo".
- O narrador se mostra feliz com o projeto de escreverem sobre Funes - descobrimos que a conto-minibiografia faz parte de uma coletânea. Toda coletânea tenta abarcar o máximo possível, ou desejado, o objeto escolhido. Sejam escritores fantásticos, poemas brasileiros do século xx, ou músicas de uma banda. No caso de Funes. Uma coletânea é uma reunião de memória e interpretações sobre um assunto. Mas o que acontece quando o assunto, por ter a memória mais ampla que existe ou existiu, seria o único candidato capaz, ou ao menos indicado, ou melhor, sugerido, a tentar a tarefa inglória de descrever o absoluto, o todo de algum assunto? Só quem se lembra de tudo poderia, em tese, fazer isso.
- Talvez até faltasse capacidade de enxergar o todo, porque uma memória geral não quer dizer obrigatoriamente que se é capaz de captar o todo, mas apenas que o captado não é esquecido, mas haveria espaço para armazenar informações.
- Uma coletânea sempre é falível. Como qualquer lista. Sempre haverá omissões.
- O narrador se diz parcial. Mesmo que se proponha a um relato objetivo, como faz, ele vai se esquecer de algo.
- Então, antes mesmo da segunda página do conto, já temos ao menos três aspectos ligados à memória e ao tempo:
-- Como o tempo afeta a percepção dos objetos e os próprios objetos, sem falar na memória.
-- Como só uma memória infalível poderia conceber uma história total.
-- Só uma memória infalível poderia se propor a ser imparcial [o que não seria garantido].
- O narrador compara Funes ao super-homem nietzscheano. Funes é, de uma maneira até anedótica, o inverso do homem supra-histórico. Se no texto de Nietzsche, o alemão se refere a uma questão ética, do homem que não fica acorrentado a um passado, o super-homem borgeano difere minuto a minuto a contagem do tempo, por apreender tudo. Conhece todos os detalhes, todos os que lhe são depositados.
- No primeiro encontro, ele parece "normal". Vai adoecendo. Sua voz, no início, é aguda e burlona. No fim, fica nasal.
- A memória serve para as línguas!
- A citação de Plínio, o velho, da "Naturalis historia", "ut nihil non iisdem verbis redderetur audítum", quer dizer: "Nada que é ouvido pode ser contada da mesma forma".
- Logo em seguida, o narrador pede desculpas porque a história, o trecho que ele narrará já passa de meio século. A memória enfraqueceu com o tempo.
- Casos de memórias excepcionais na obra de Plínio:
Ciro, rey de los persas, que sabía llamar por su nombre a todos los soldados de sus ejércitos; Mitrídates Eupator, que administraba la justicia en los veintidós idiomas de su imperio; Simónides, inventor de la mnemotecnia; Metrodoro, que profesaba el arte de repetir con fidelidad lo escuchado una sola vez.- A leitura de Plínio desperta em Funes, como numa epifania, seu "poder", sua memória. Mas não somente. Além da memória, sua percepção era agora "infalible". Como ter memória sem percepção?
- Para se reconstruir um dia inteiro se requer um dia inteiro. [Borges volta a essa metáfora em "El hacedor", quando fala de um mapa perfeito.]
- O narrador levanta a hipótese de que um homem imortal saber, um dia, tudo. É a metáfora dos macacos escritores, virada ao avesso. A teoria desconsidera, porém, a capacidade de parar de aprender, por exemplo. Ou de simplesmente repetir o aprendizado.
- O sistema de numeração: é um dos recursos mais famosos da memorização. Ao fazer ligações entre assuntos diversos, a memória é ativada.
- Os projetos de Funes revelam, segundo o narrador, grandeza. Daí, talvez, a ligação com o super-homem de Nietzsche. Uma das condições do alemão é exatamente deixar sua marca registrada na História.
- A parte mais interessante fica para o final: quando o narrador diz que Funes era "casi incapaz" de ideias gerais, platônicas, e dá o exemplo do "perro". O símbolo, para alguém com essa memória super-humana, não consegue identificar nenhum grupo, quiçá o indivíduo, já que ele se modifica com o tempo e o espaço. "Era el solitario y lúcido espectador de un mundo multiforme, instantáneo y casi intolerablemente preciso".
- Novamente a metáfora da insônia: o narrador diz que Funes quase não dormia porque "Dormir es distraerse del mundo".
- Sobre a incapacidade de generalização, o narrador expõe uma suspeita: "no era muy capaz de pensar", diz um pouco com vergonha, e explica o que entende por pensar: "es olvidar diferencias, es generalizar, abstraer". No mundo de Funes, só há "detalhes".
- Funes, apesar de ter apenas 19 anos, parece gasto, velho. Como se houvesse vivido mais que os outros. Como se o tempo houvesse corrido mais rapidamente para ele. Ou ele tivesse alongado o tempo, saboreado cada um dos seus segundos.
- Ao fim, ele morre com 21 anos, de uma morte cotidiana, talvez para humanizá-lo, retirar o caráter supra-humano dele. Talvez para mostrar que à morte, todos somos iguais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário