sexta-feira, 22 de março de 2013

Guerrilheiros de ontem a hoje

[Reportagem publicada na RHBN desse mês de março]

Especial Guerrilheiros -- No dia 28 de agosto de 1979, o então presidente da República, João Batista de Oliveira Figueiredo, sancionou o que ficou conhecido como a “Lei da Anistia”. Ela concedia indulto a quem tinha cometido crimes “políticos ou conexos com estes” ou crimes “eleitorais” e também a quem tinha sido punido “com fundamento em Atos Institucionais e Complementares”. Eram beneficiados pela lei os brasileiros que abriram mão de sua juventude – conforme eles mesmos afirmam –, para lutar por uma sociedade mais igualitária, pela liberdade democrática, ou apenas aqueles que foram colocados na genérica categoria de subversivos. Além de devolver a cidadania a essas pessoas, a lei contém, segundo um dos envolvidos na luta, alguns artigos que não foram escritos. Trata-se de um código de comportamento que, mesmo implícito, foi respeitado por uma parcela significativa de homens e mulheres dessa geração. “O primeiro: ‘Não falarás da sua luta’. O segundo: ‘Poderás falar do seu sofrimento, mas nunca da luta’”, enumera Carlos Eugênio Paz, um dos últimos comandantes da Ação Libertadora Nacional, a ALN, responsável por organizar e participar de diversas “ações revolucionárias” como, por exemplo, o “justiçamento” (as mortes dos agentes da repressão) do empresário dinamarquês Henning Boilensen. Além de financiar a ditadura, de acordo com os relatos dos revolucionários, Boilensen fazia questão de assistir às sessões de tortura. Para eles, seu assassinato era uma questão de justiça. Justiça revolucionária.

“Guerrilheiro não é somente quando você está com a arma na mão. É quase como uma concepção de vida”, segundo Carlos Eugênio Paz

Paz acredita que a história de sofrimento, com prisões aumentando em escala exponencial ao longo da ditadura, e torturas cada vez mais “científicas”, que se “aperfeiçoavam” para retirar mais informações dos subversivos, é uma das prováveis explicações para a dificuldade de encontrar quem se autodenomine guerrilheiro hoje em dia. Para ele, entretanto, “Guerrilheiro não é somente quando você está com a arma na mão (...). É quase como uma concepção de vida”, argumenta Paz, que até hoje atende pelo nome de guerrilha, Clemente. Para mostrar o alcance da luta, ele afirma ter feito um censo da ALN, no final de 1971, em todo o Brasil. Desde a sua criação, em 1966, haviam passado pela organização 15 mil militantes – ou guerrilheiros? – incluindo sua própria mãe, que ele diz ter recrutado para a luta.

“Mao Tsé-Tung calculava que para cada pessoa que pegava em arma, você tinha que ter cinco pessoas no apoio. A luta mostrou que você deve ter de 15 a 20 pessoas, que vão ser o ponto de apoio dentro daquela corporação”, calculou ele, citando como exemplo o caso de guerrilheiros que trabalhavam como jornalistas nas seções policiais para trazer informações diretas do “inimigo”.

A história da transformação de Paz em Clemente data de quando ele era muito jovem. Quando o golpe aconteceu, ele tinha apenas 13 anos. Era um escoteiro, disciplinado, que quase ignorou o acontecido: apenas ficou feliz por não ter tido aula. Em seguida, com a reação dos politizados familiares, percebeu a catástrofe que tinha sido a derrubada do regime democrático. Aos 15 anos, conheceu Carlos Marighella, o criador da ALN, do qual virou um ídolo. O líder comunista o selecionou para a sua organização fazendo dois pedidos: não se envolver com o movimento estudantil e entrar no Exército para aprender a atirar e descobrir como os militares pensam.

“Não existem muitas pessoas que, por sua experiência direta, tenham conhecido o cotidiano e as entranhas da luta armada desde o seu começo até o fim”, escreveu o ex-ministro Franklin Martins sobre Clemente, no prefácio do livro Viagem à luta armada, de Carlos Eugênio Paz (1996), sobre o fato improvável de seu autor não ter sido preso, apesar da “repressão” o ter escolhido como um dos principais inimigos. Foi uma exceção.

A história de Clemente encontra curiosos paralelos na do professor de natação Rômulo Noronha, que atualmente trabalha na Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos. Assim como Clemente, Noronha era um robusto nadador que foi escolhido por Marighella para atuar no Grupo Tático Armado, mais comumente chamado de “grupo de fogo”, que reunia quem realmente pegava nas armas. Coincidência ou não, Noronha é outro que admite ter sido guerrilheiro – e, bastante assertivo, os dois não escondem até mesmo os erros cometidos. O professor de natação também serviu ao Exército: foi paraquedista. E os dois pensam o mesmo sobre os tempos de luta. Se Paz acredita que houve uma “vitimização” desse passado, por conta da enorme violência que começou com o golpe, Noronha afirma que “não quis entrar nessa de coitadinho”.

“Participei, no Méier [Zona Norte do Rio], de uma 'expropriação' de banco para obter recursos que eram usados para manter guerrilheiros”, recorda ele, usando outro jargão usado pelos revolucionários. “Os guerrilheiros ganhavam pouco mais de um salário mínimo, viviam vida espartana. Essa história de que ‘nós assaltávamos banco para viver bem’... Porra nenhuma!”

Noronha “caiu” e ficou preso de 11 de março de 1970 até 6 de fevereiro de 1979 – sabe até hoje o número de dias que passou atrás das grades. Na hora do julgamento não escondeu que tinha participado da ação, mas não concordou com o processo porque as denúncias tinham sido obtidas por meio de tortura – jamais, segundo ele, falou segredos da organização. Quando perguntado, em juízo, sobre o motivo que o levou a se envolver na “expropriação”, usou como resposta a fala de um personagem de Bertold Brecht em “A ópera dos três vinténs”: “O que é roubar um banco comparado a fundar um banco?”. Conclusão: “Fui condenado por desacato. Éramos considerados jovens cultos e rebeldes”.

“Guerrilheiro pouca gente foi”, defende o ex-ministro José Dirceu. Para ele, o objetivo das organizações, como a que participou, era “a propaganda armada”

Além da prisão, o caso de Noronha se diferencia do de Paz por uma característica própria: Noronha tinha uma companheira, no outro sentido do termo. Foi por conta dela que ele, junto com outros presos políticos, lutou para mudar o sistema carcerário, permitindo a visita íntima na cela. “Greve de fome de 16 dias, eu fiz cinco. As de menos tempo, eu perdi a conta”, enumera.

Ilma Maria Horsth Noronha, a companheira, hoje tem 61 anos e trabalha como bibliotecária na Fiocruz, no Rio de Janeiro. Fala mais pausadamente que o marido, como se estivesse repetindo um amargo capítulo que aconteceu há tantos anos e que ela “começa a esquecer”. Revisitando essas duras memórias, contou que quando o marido, na época namorado, foi preso, ela estava grávida da primeira filha. Decidiu imediatamente ir para a clandestinidade. Saiu do Centro da cidade e após passar por diversos “aparelhos” (assim se chamavam as células destes movimentos armados), foi morar em uma casa pequena no bairro de Piedade, subúrbio do Rio, com “um menino de 23 anos” que era um dos dirigentes da ALN, Elson Pereira Fortes.
“Minha filha já tinha nascido e para a vizinhança nós éramos um casal recém-casado que tinha vindo morar no Rio, para não ter nenhuma possibilidade de se chegar à minha família, que era da cidade”, conta. Nunca chegou a participar de ações armadas porque era do setor de inteligência. “Fazia levantamento dos bancos a serem assaltados, digo, expropriados, e das pessoas de destaque para serem sequestradas”, explica.




Por uma questão de segurança, ninguém da própria organização conhecia o endereço desse “aparelho”, diz ela. Porém, quando os companheiros começaram a ser presos, eles tiveram que quebrar algumas regras de segurança para socorrê-los. Em fuga da polícia, um casal de São Paulo fez contato com a ALN, que o deslocou para o endereço de Piedade. E esse casal acabou “abrindo”, ou seja, informando sobre a localização do “aparelho”.

“A polícia chegou lá de madrugada, cercou a casa”, diz ela. “Minha combinação com Elson era que ele tinha que chegar até às 21 horas, era o nosso código. Se não chegasse era porque alguma coisa muito grave tinha acontecido, e eu teria que sair até às 7 horas do dia seguinte. Não sairia de madrugada porque com o bebê chamaria mais atenção”, diz ela, um pouco confusa. “Fui esvaziando a casa, queimando documento, escondendo as armas. Quando eu abri a porta com a Tânia no colo, pronto.

Todos se levantaram de armas em punho... Foi algo que eu nem me lembro muito bem.” Ela foi presa com a filha Tânia. E foi levada para o quartel do Exército na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca, Zona Norte do Rio. Ficou lá um tempo, não sabe dizer ao certo, enquanto entregavam a sua filha para a mãe de Noronha. Dias depois, Ilma foi liberada por falta de provas. Apesar da prisão, do sofrimento, do isolamento, da ausência, da memória fraca, ela diz que faria tudo outra vez. “O sentimento de que aquilo era importante é muito claro para mim.”

Como Che Guevara e outros ícones da década de 1960, o termo guerrilha foi ironicamente apropriado pelo mercado. Hoje em dia, talvez seja mais fácil encontrar quem se considere guerrilheiro entre os que praticam a moda do “marketing de guerrilha” do que entre aqueles que participaram de organizações de luta armada, buscando a volta da democracia.

“A gente deveria ter feito uma resistência política e popular à ditadura, combinada com a resistência armada”, argumenta Dirceu.

“Guerrilheiro pouca gente foi”, defende em entrevista à Revista de História, o ex-ministro José Dirceu, também ex-líder estudantil que foi preso no congresso da União Nacional dos Estudantes, em Ibiúna, no sul do estado de São Paulo, no ano de 1968 – um dos 15 nomes escolhidos para ser trocado pelo embaixador norte-americano sequestrado naquele mesmo ano. Após passagem rápida pelo México, ele acabou indo para Cuba, onde começou a participar do Movimento de Libertação Popular (Molipo). Para ele, o objetivo das organizações, como a que participou, era “a propaganda armada”. “Queríamos organizar, no interior, colunas guerrilheiras. E isso é outra discussão”, argumenta, explicando a sua atuação como “política”. Ele considera que “apoiou ou integrou uma organização que fazia luta armada”.

“Não tínhamos a postura de combate”, reitera, e explica o conceito segundo o seu ponto de vista: “Combater é tomar um quartel, tomar uma delegacia, cercar uma tropa, prender ou aniquilar aquela tropa. Tomar uma cidade, assaltar um trem. O que fazíamos era uma sobrevivência.”

Em Cuba, ele fez um treinamento militar básico, inicial para “qualquer outra tropa especial”. “É você aprender a sobreviver, marchar, conhecer emboscadas, defesas, retiradas, como organizar uma coluna, conhecer todo tipo de explosivo, armas sem recuo, metralhadoras .30, .50, todos os tipos de armamento, principalmente os que têm em seu país, como o fuzil FAL, que estava sendo introduzido.” Dirceu explicou que o aprendizado mais teórico sobre histórias de guerra, da América Latina e de Cuba, e a doutrina militar, são apenas a primeira fase do treinamento, que podia demorar até um ano e meio. Depois havia uma especialização, se aprendia diversos ofícios que podiam ser úteis para o guerrilheiro, como radiocomunicação, fotografia, falsificação de documentos, ou como viver na clandestinidade – que foi o caso dele.

José Dirceu voltou clandestino ao Brasil na metade de 1971. Ficou um tempo em São Paulo, no bairro do Brás, mas logo teve que fugir mais uma vez. Primeiro, Recife. Depois, Havana novamente, após passar por um périplo pela Europa. Sempre carregando uma mala com armas, dinheiro e documentação falsa.

“Nós transformamos a luta armada e a possibilidade de guerrilha rural numa prioridade”, diz ele. “Na verdade, a gente deveria ter feito uma resistência política e popular à ditadura, combinada com a resistência armada.”




Essa revisão do passado, às vezes, é feita com menos ideologia política e mais melancolia. Os anos de violência, repressão, censura e tortura marcaram profundamente a geração que viveu diretamente esses eventos. Quando começa a falar por que a guerrilha brasileira não funcionou no Brasil, o advogado pernambucano Francisco de Assis Rocha Filho, mais conhecido como Chico de Assis, dá um riso nervoso, de quem percebe como é duro falar do fim dos sonhos da juventude: “Porque [a ideia revolucionária] morreu no período inicial, bem primário de preparação, que seriam as ações urbanas, armadas, para fortalecer a parte rural”, explica replicando o manual guerrilheiro de Marighella.

Sua trajetória é a de muitos que optaram por lutar contra a ditadura. Estudante de classe média e militante da esquerda era preocupado com os problemas sociais da época. Empolgado com a política, em seu caso, com um exemplo prático no estado: o governo de Miguel Arraes, eleito em 1962, “o melhor entre os seus seis mandatos”. Com o golpe, opta por entrar em uma organização dissidente do PCB, o PCBR, com “R” de “revolucionário”, exatamente porque o partidão não tinha pegado em armas contra a “revolução” da direita de 1964. A diferença dos outros grupos, explica Chico, era que o PCBR ainda mantinha uma preocupação partidária. De resto, praticava os mesmos estratagemas, com “expropriações” de bancos para bancar uma futura guerrilha rural, que seria o germe da revolução, esta de esquerda.

“Dava impressão de que estávamos dominando o mundo, vivíamos o dia inteiro em reuniões, em pontos, mas estávamos, cada vez mais, nos resumindo às nossas forças”, conta ele sobre o turbilhão de emoções que era viver na clandestinidade, em “aparelhos”, como profissional do partido. “Nós fomos perdendo à medida que a repressão foi crescendo, que a violência foi se tornando algo real na sociedade, prendendo as ruas do Recife, e das capitais brasileiras, que se tornaram palco de arrastões permanentes, dentro dos quais se levava qualquer cara suspeito.”

“As lutas pelo aprofundamento da democracia ao longo da história sempre exigiram o alargamento de suas margens”, acredita Cid Benjamin

Foi preso em 1970, “ficando nove anos, quatro meses e 27 dias” em reclusão. Ao sair, por conta das amizades antigas, foi trabalhar como assessor de Roberto Freire, então do quadro político do PCB e atual deputado pelo PPS. A única exigência de Chico? Não ter qualquer vínculo com organizações revolucionárias. “O que ficou do comunismo para mim foi a sua a feição humanista.”

Mesmo com os sofrimentos generalizados, parece haver um sentimento em comum entre quem lutou contra a ditadura: valeu a pena. Uma sensação compartilhada, talvez um novo artigo não escrito na Lei da Anistia, por colocar do “lado certo” da disputa aqueles que, apesar dos arrependimentos e cuidado nas escolhas de palavras, não tem medo de falar abertamente sobre o período, inclusive desafiando o “outro lado” a fazer o mesmo.

“Tenho orgulho desse passado, pois ele significa que tivemos consciência dos crimes cometidos pelo estado ditatorial e demonstramos que sempre haverá quem lute pela liberdade e pelo bem comum”, resume o jornalista Andrei Bastos, que militou na Vanguarda Popular Revolucionária. Assim como Carlos Eugênio Paz e Rômulo Noronha, o jornalista também entrou no Exército para se preparar para a “linha de fogo”. O contato com leituras diversas e com militantes do PCB fizeram com que ele recuasse para a retaguarda da organização.

“A luta armada era inviável no Brasil, especialmente pela correlação de forças absurdamente desfavorável e pela evidência de que a população não seguiria uma vanguarda revolucionária, tanto pelo alto grau de alienação quanto pelo fato de que se vivia uma fase de abundância no chamado ‘Brasil Grande’”, diz ele enfatizando uma explicação meio comum para o fracasso da oposição à ditadura: a economia.

Quase meio século depois, as controversas memórias finalmente começam a aparecer. Uma mesma cena pode virar objeto de disputa sobre quem teve a ideia de tal ou qual ação. Ou ser narrada de diferentes pontos de vista, às vezes, contraditórios. Há também esquecimentos e lapsos como forma de proteção psicológica. Mas, talvez por conta do esquecimento público, também exista muita vontade de relembrar. Ao menos, para uma parcela que lutou contra a ditadura – e tudo o que ela representou. Filmes, livros, vídeos na internet, blogs, a Comissão da Verdade, esta edição da Revista de História mesmo. Não deixa de ser representativa a coleção de informações que apareceu recentemente. Uma onda de versões do que aconteceu.

“Malgrado os erros políticos que cometemos, temos o direito de bater no peito e afirmar que estivemos sempre do lado certo, o lado daqueles que lutaram para conquistar uma sociedade em que todas as pessoas fossem respeitadas igualmente e vivessem com dignidade”, escreve o jornalista e professor Cid Benjamin, um dos idealizadores do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, na apresentação de seu livro de memórias ainda inédito. “As lutas pelo aprofundamento da democracia ao longo da história sempre exigiram o alargamento de suas margens.”

Para que a luta – e a juventude – desses homens e mulheres não tenha sido em vão, parece que o artigo secreto da Lei da Anistia está começando a ser desrespeitado.

Leia também:
Especial Guerrilheiros
Saiba mais:
- DA-RIN, Silvio, Hércules 56 – O sequestro do embaixador americano em 1969. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
- FERREIRA, Jorge e REIS, Daniel Aarão (org.), As esquerdas no Brasil, Volume 3: Revolução e democracia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
- PAZ, Carlos Eugênio, Viagem à luta armada. Rio de Janeiro: Best Bolso, 2008 (Record, 1996)

Filme:
- Hércules 56, Silvio Da-Rin, Brasil, 2006

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