Na quinta-feira, quando a a polícia usou bombas como confete, houve uma situação de nós x eles, nós que apanhávamos, eles, que batiam. E nós, ali, era todo mundo que apanhava. Quem carregou cartaz com mensagens-sacadinhas e quem destruiu o ponto de ônibus. Porque o gás não escolhe o nariz de quem vai entrar. E a polícia não separa bandido de morador.
Fiquei imaginando que se toda a população fluminense estivesse nas ruas, toda ela, sem exceção, todos os 16 milhões de moradores do estado do Rio de Janeiro, menos os policiais e os governantes: ainda assim eles estariam defendendo o poder constituído? Porque a polícia, naquele dia, não defendia "nós", mas o governo. A polícia, ali, servia para proteger a autoridade, nada além disso.
Isso não aconteceu, segundo relatos, com o chamado "arrastão" da Barra, ontem. Lá, o "nós" era - para usar uma das palavras na moda - difuso. Havia a polícia, havia o "arrastão" e o protesto. Havia o governo, o pobre da CDD que quebra vidro de concessionária de carro e o rico, que sabe se manifestar "civilizadamente". O rico e a polícia, nesse caso, estão do mesmo lado, contra o pobre da CDD. Mas qual é a diferença de um pobre que rouba uma televisão e um rico que rouba uma bolsa? A rica é presa arbitrariamente.
Curiosamente, essa onda de protestos toda começou com reclamações sobre o transporte público, de péssima qualidade, e caro. E como se investe em transporte privado - ou seja, carros - de maneira errada.
O protesto requer um caráter do incômodo. Se eu fosse um pouco mais abusado, eu arriscaria que o protesto nasceu dentro da sociedade moderna, ou seja, dentro do aparecimento da individualidade, quando descobrimos que nós temos vozes e que podemos falar e expressar aquilo que queremos e temos vontade. Descobrimos que não há um deus que vai nos mandar para o inferno caso façamos algo errado e que somos donos do nosso próprio destino. O protesto nasceu junto com o "eu", ou foi uma consequência direta dele. É uma forma de se chamar a atenção para uma demanda que para alguma pessoa é urgente.
Não funciona se houver um protesto sem qualquer tipo de incômodo, senão, se naturaliza, se torna mais um evento, se torna paisagem. Senão poderíamos construir um protestódromo em que as pessoas desfilariam seus cartazes mais criativos e suas máscaras customizadas. Haveria alas: os policiais, os vândalos, os pacíficos... Poderíamos ter um júri que avaliaria também as músicas de protesto mais criativas. Criaríamos novos feriados...
Mas qual é o limite do incômodo? Como controlar o gênio que saiu da garrafa?
Na passeata-protesto-manifestação de quinta, entre o "nós" - aquele não era a polícia - havia claramente dois grupos: os que gritavam "sem moralismo" e os que gritavam "sem vandalismo". E entre os primeiros, havia ainda um subgrupo: a vanguarda incendiária.
Como o sentimento geral era de que estávamos sendo agredidos, atacados, nos transformamos, rapidamente, em uma tropa em retirada. Me lembrei nessa hora do filme "Fuga de Nova York" e congêneres. Nesses filmes apocalípticos, sempre quem tem habilidades escusas é mais valorizado. Quem se importa se você era um ladrão quando o mundo acabou? Ou melhor, se você já matou alguém, não vai ter qualquer drama moral para matar um inimigo que aparecer ali. Portanto, você é mais "útil" nessa situação.
A vanguarda incendiária era composto por meninos pretos, muito provavelmente pobres, magricelos, que já devem ter apanhado - física e moralmente - muito da polícia, e, por isso inclusive, nutrem um ódio antigo da polícia, do estado e do Estado que ela representa. É um ódio quase geracional, de quem nunca foi olhado. Era a hora de eles participarem do protesto do jeito deles.
Enquanto éramos atacados por bombas - que foram chutadas, enquanto dava, para dentro do canal que divide a Presidente Vargas -, eles voltaram destruindo tudo o que conseguiram destruir. Ou quase tudo. O colégio da prefeitura e o centro de diagnóstico em imagens do estado permaneceram quase intactos. Eles começaram a tentar quebrar, sim, porque o ódio cega e eles não enxergavam nada, queriam apenas a destruição, mas a galera do "sem moralismo" gritava que "na escola não", "no hospital não" e eles, apesar de cegos, não eram surdos.
Ao menor sinal de qualquer grito de "sem vandalismo", o outro grupo, o "sem moralismo", protegia a vanguarda incendiária.
Talvez nem toda junção de 300 mil pessoas - segundo os cálculos oficiais - provoque cenas de saque. Talvez quando o papa vier ao Rio, mês que vem, as pessoas se darão as mãos e cantarão cânticos de alegria e felicidade. Mês que vem vamos poder tirar essa prova.
Em um protesto, em uma manifestação em que o objetivo é exatamente exigir uma modificação do status quo, é constranger o governante, é mostrar que quem manda não é ele, ele apenas é um representante, há a possibilidade de muita gente com mais raiva no coração que o habitante do Facebook aparecer. Uma possibilidade forte, suspeito. Gente que vê nessa aglomeração de gente uma possibilidade de mostrar para o mundo suas frustrações, chamar a atenção para os seus problemas. Protestar da sua maneira. Ou como os ricos da Barra ontem viram, da maneira "errada".
Ou simplesmente ir lá para levar umas bolsas e umas televisões para casa.
O governante não pode ter vida boa. Não pode. Ele deve ter que pensar duas vezes antes de assumir qualquer cargo público. Política não deve ser algo bom, não deve ser algo desejável. Não podemos ter uma profusão de candidatos, quiçá de partidos. O cargo público deve ser aceito como um fardo. A vida de um político deve ser mediada pelo receio de não agradar às pessoas. Ele deve tentar fazer o melhor, sempre, para o povo com medo de que haja manifestações contra ele, contra o que ele representa. Exatamente para se evitar que haja esse tipo de situação "exagerada", essa maneira "errada" de protestar. Porque os protestos são, por sua natureza - e assim que devem ser -, incontroláveis.
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Fiquei imaginando que se toda a população fluminense estivesse nas ruas, toda ela, sem exceção, todos os 16 milhões de moradores do estado do Rio de Janeiro, menos os policiais e os governantes: ainda assim eles estariam defendendo o poder constituído? Porque a polícia, naquele dia, não defendia "nós", mas o governo. A polícia, ali, servia para proteger a autoridade, nada além disso.
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Isso não aconteceu, segundo relatos, com o chamado "arrastão" da Barra, ontem. Lá, o "nós" era - para usar uma das palavras na moda - difuso. Havia a polícia, havia o "arrastão" e o protesto. Havia o governo, o pobre da CDD que quebra vidro de concessionária de carro e o rico, que sabe se manifestar "civilizadamente". O rico e a polícia, nesse caso, estão do mesmo lado, contra o pobre da CDD. Mas qual é a diferença de um pobre que rouba uma televisão e um rico que rouba uma bolsa? A rica é presa arbitrariamente.
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Curiosamente, essa onda de protestos toda começou com reclamações sobre o transporte público, de péssima qualidade, e caro. E como se investe em transporte privado - ou seja, carros - de maneira errada.
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O protesto requer um caráter do incômodo. Se eu fosse um pouco mais abusado, eu arriscaria que o protesto nasceu dentro da sociedade moderna, ou seja, dentro do aparecimento da individualidade, quando descobrimos que nós temos vozes e que podemos falar e expressar aquilo que queremos e temos vontade. Descobrimos que não há um deus que vai nos mandar para o inferno caso façamos algo errado e que somos donos do nosso próprio destino. O protesto nasceu junto com o "eu", ou foi uma consequência direta dele. É uma forma de se chamar a atenção para uma demanda que para alguma pessoa é urgente.
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Não funciona se houver um protesto sem qualquer tipo de incômodo, senão, se naturaliza, se torna mais um evento, se torna paisagem. Senão poderíamos construir um protestódromo em que as pessoas desfilariam seus cartazes mais criativos e suas máscaras customizadas. Haveria alas: os policiais, os vândalos, os pacíficos... Poderíamos ter um júri que avaliaria também as músicas de protesto mais criativas. Criaríamos novos feriados...
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Mas qual é o limite do incômodo? Como controlar o gênio que saiu da garrafa?
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Na passeata-protesto-manifestação de quinta, entre o "nós" - aquele não era a polícia - havia claramente dois grupos: os que gritavam "sem moralismo" e os que gritavam "sem vandalismo". E entre os primeiros, havia ainda um subgrupo: a vanguarda incendiária.
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Como o sentimento geral era de que estávamos sendo agredidos, atacados, nos transformamos, rapidamente, em uma tropa em retirada. Me lembrei nessa hora do filme "Fuga de Nova York" e congêneres. Nesses filmes apocalípticos, sempre quem tem habilidades escusas é mais valorizado. Quem se importa se você era um ladrão quando o mundo acabou? Ou melhor, se você já matou alguém, não vai ter qualquer drama moral para matar um inimigo que aparecer ali. Portanto, você é mais "útil" nessa situação.
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A vanguarda incendiária era composto por meninos pretos, muito provavelmente pobres, magricelos, que já devem ter apanhado - física e moralmente - muito da polícia, e, por isso inclusive, nutrem um ódio antigo da polícia, do estado e do Estado que ela representa. É um ódio quase geracional, de quem nunca foi olhado. Era a hora de eles participarem do protesto do jeito deles.
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Enquanto éramos atacados por bombas - que foram chutadas, enquanto dava, para dentro do canal que divide a Presidente Vargas -, eles voltaram destruindo tudo o que conseguiram destruir. Ou quase tudo. O colégio da prefeitura e o centro de diagnóstico em imagens do estado permaneceram quase intactos. Eles começaram a tentar quebrar, sim, porque o ódio cega e eles não enxergavam nada, queriam apenas a destruição, mas a galera do "sem moralismo" gritava que "na escola não", "no hospital não" e eles, apesar de cegos, não eram surdos.
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Ao menor sinal de qualquer grito de "sem vandalismo", o outro grupo, o "sem moralismo", protegia a vanguarda incendiária.
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Talvez nem toda junção de 300 mil pessoas - segundo os cálculos oficiais - provoque cenas de saque. Talvez quando o papa vier ao Rio, mês que vem, as pessoas se darão as mãos e cantarão cânticos de alegria e felicidade. Mês que vem vamos poder tirar essa prova.
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Em um protesto, em uma manifestação em que o objetivo é exatamente exigir uma modificação do status quo, é constranger o governante, é mostrar que quem manda não é ele, ele apenas é um representante, há a possibilidade de muita gente com mais raiva no coração que o habitante do Facebook aparecer. Uma possibilidade forte, suspeito. Gente que vê nessa aglomeração de gente uma possibilidade de mostrar para o mundo suas frustrações, chamar a atenção para os seus problemas. Protestar da sua maneira. Ou como os ricos da Barra ontem viram, da maneira "errada".
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Ou simplesmente ir lá para levar umas bolsas e umas televisões para casa.
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O governante não pode ter vida boa. Não pode. Ele deve ter que pensar duas vezes antes de assumir qualquer cargo público. Política não deve ser algo bom, não deve ser algo desejável. Não podemos ter uma profusão de candidatos, quiçá de partidos. O cargo público deve ser aceito como um fardo. A vida de um político deve ser mediada pelo receio de não agradar às pessoas. Ele deve tentar fazer o melhor, sempre, para o povo com medo de que haja manifestações contra ele, contra o que ele representa. Exatamente para se evitar que haja esse tipo de situação "exagerada", essa maneira "errada" de protestar. Porque os protestos são, por sua natureza - e assim que devem ser -, incontroláveis.
2 comentários:
Clap, clap, clap.
Obrigado, "eu".
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