O sujeito
tendeu, nos últimos séculos, a sujeitar a si mesmo. Heidegger cita
o "ego", da fórmula cartesiana de "ego cogito"
como exemplo para isso. Quando Descartes mostrou que o homem
existiria ao tomar consciência da própria razão, deu ao homem o
poder de controlar, de sujeitar a sua própria existência, e,
consequentemente, sujeitar o que quer que fosse. O resultado disso,
segundo o Heidegger, é sujeição do mundo ao homem, o mundo se
transforma em objeto do homem, perde o seu Ser, que não é visto
pelo sujeito, e se transformando em ente.
O que isso
quer dizer? Que o homem ao se tornar senhor de si, sem um deus para
obedecer / seguir, transforma o mundo em seu objeto. A terra se torna
um objeto incondicional – nunca mais teríamos contato com o seu
Ser. A Natureza, por sua vez, se torna o objeto da tecnologia, apenas
provendo os recursos necessários, sem nunca também mostrar o seu
próprio Ser. O homem se coloca no centro de um mundo, numa posição
que era de deus, mas sem o poder que deus tinha. Deus também
legislava. E mesmo que legislasse de acordo com princípios
controversos, tinha uma importância para todos. O homem, não. É
único, individual, sem alcance para o mundo.
Uma das
consequências desse processo seria o fim da filosofia como a
conhecemos, como doutrina e imagem da cultura, como a linguagem da
verdade. Mais ou menos o mesmo tom da entrevista de Heidegger para a
revista Der Spiegel.
Essa
dominação do mundo, segundo Heidegger, é consequência da Vontade
de potência, mas que nunca é entendida dessa maneira. Porque essa
luta por dominação sobre a terra, essa era da subjetividade está
direcionando para o consumo. Uma cobiça para dar vazão à razão,
quase uma forma de compensar os anos de sujeição. Por isso, explica
Heidegger, é indispensável se tornar consciente da
vontade-que-deseja além da vontade de potência. Não é controlar a
vontade, nem determinar os seus limites, mas saber, avaliar ao menos
suas consequências para não se tornar um escravo da própria
vontade. Porque a vontade vai querer sempre mais. E é importante ter
alguma noção se é realmente um desejo da vontade ou simplesmente
um vício
que se repete.
"'O
grande meio-dia'”, escreve Heidegger, “é o tempo do mais brilhoso brilho, a saber, da
consciência de que a incondicionalidade, e em cada respeito, se
transformou consciente de si mesmo, como aquele saber que consiste em
deliberadamente desejar a vontade de potência como o
Ser-do-que-quer-que-for."1
A citação
ao "grande meio-dia" se refere provavelmente a um trecho do
“Crepúsculo dos ídolos” em que Nietzsche narra a trajetória da
metafísica desde Platão até ele mesmo, passando por Kant,
utilizando a metáfora da passagem da escuridão noturna à claridade
do dia, como passando, segundo os seus critérios, dos períodos na
História, desde a criação da metafísica platônica, culminando,
ao "grande meio-dia", no seu (de Nietzsche) momento
histórico, em que essa metafísica não faria mais sentido. São
seis passos identificados, que demonstrariam, nas palavras de
Nietzsche, “como o mundo 'verdadeiro' terminou por se tornar uma
fábula”. No último passo, Nietzsche escreve que com a supressão
do mundo verdadeiro, ou seja, com o fim de uma tentativa metafísica
de se querer um mundo ideal, fora da nossa realidade, imaginado por
Platão e seguido pelos cristãos (ao menos), também se quebraria o
mundo aparente. Ou seja, não haveria mais uma divisão entre verdade
e aparência. Para existir a metafísica, ou esse tipo de metafísica
que dominou nossa forma de pensar durante milênios, é necessário
ter esses dois termos, o real e o imaginado, o aqui e o lá, o
aparente e o ideal. Sem um deles, o outro não consegue existir,
porque seria apenas um espelhamento do primeiro.
Heidegger
cita o momento mais brilhoso do brilho, o meio-dia, em que a luz do
sol incinde quase verticalmente, no “instante da sombra mais
curta”, como escreve Nietzsche. É o momento da razão mais
profunda, a “incondicionalidade”, ou seja, o não ter condições,
não haver um algo, um alguém, um Ser como parâmetro, isto é, é
saber que deus, em que formato ele tiver ou estiver, está morto. É
o momento em que se sabe que não há uma diferença entre mundo real
e aparente. É também nesse instante em que o sentimento tomou
consciência, despertou, que nasce um novo desejo, algo que
impulsiona, que "deliberadamente” deseja a vontade de
potência, de maneira quase aprisionadora. Dessa maneira, seguindo o
raciocínio de Heidegger, o homem resiste a se subjugar a qualquer
objetivação.
Heidegger
pergunta como consequência desse raciocínio, em que só todo
sujeito subjetiva, ninguém é objeto, o que é,
isto é Ser agora, agora que o "domínio da
Vontade de potência está amanhecendo" e que essa abertura está
se tornando uma função da vontade, está existindo em função da
vontade, ou seja, sendo subjugada, sujeitada, objetificada. O que é,
o que está acontecendo com o Ser neste momento de dominação? "O
Ser está sendo transformado em um valor", ele responde.
Ele não
fica satisfeito. Quer saber se o Ser pode ser melhor avaliado do que
simplesmente ser um valor, porque ele acredita que, desta forma, ele
já estaria degradado. Porque estaria, de certa maneira, condicionado
à vontade de potência, como se dependente da vontade de potência.
Ou mesmo subjugada, ou ainda sendo em função da vontade de
potência. Dessa forma, o Ser estaria despojado da "dignidade de
sua essência". A vontade de potência, nesse sentido, apenas
substituiria deus, sem qualquer vantagem para o Ser. Nesse sentido, o
Ser não seria a vontade de potência, mas algo além. E a vontade de
potência seria algo que, porque não consciente, poderia dominar o
ser. Nas palavras de Heidegger, este processo oblitera a experiência
do Ser.
1Heidegger,
1977 / 102, em tradução livre
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