terça-feira, 15 de abril de 2014

O Heidegger canalha

Em algum momento de seu longo casamento, Martin Heidegger diz para a sua esposa, Elfrid: Hannah Arendt, e não ela, é a paixão de sua vida. Rüdiger Safranski não explica, na biografia que ele escreveu sobre o homem de Messkirch, em que situação exatamente o filósofo contou de sua paixão pela judia, para a antissemita. Mas o que sabemos, nas sete parcas páginas do extenso livro dedicadas ao relacionamento dos dois, era que Arendt foi a inspiração para a obra mais conhecida de Heidegger, "Ser e tempo", e que ele foi extremamente injusto e egoísta com ela.

A relação dos dois sempre foi desigual. Ela tinha 18 anos quando, em 1924, vai para Marburg estudar com o salvador da filosofia, como ele estava sendo incensado na época. Ele tinha 35 anos, era casado e tinha dois filhos. E era visto como a grande aposta para revolucionar o pensamento da época. O primeiro grande a se atrever a falar numa época pós-metafísica, após a morte de Deus. Suas aulas eram superconcorridas. Aparentemente só precisava de uma grande obra para ter o reconhecimento que lhe estavam reservando. E essa obra foi "Ser e tempo".

Com esse desequilíbrio entre os dois, Heidegger impunha a Arendt as condições em que eles deveriam se encontrar. Havia uma série de esquemas, com luzes sendo acesas e apagadas numa determinada ordem, para que ninguém na pequena cidade, muito menos sua esposa, desconfiasse dessa relação. O professor visitou sua pupila por dois semestres no pequeno quarto que ela mantinha. Durante um bom tempo, ela aceitou esse estratagema humilhante, por amor, e para não deixar as coisas piorarem. Após um tempo, porém, ela começou a exigir mais.

Pensou em sair da cidade e ficou revoltada quando o próprio Heidegger sugeriu isso antes dela. Mudou-se, mas não conseguiu se afastar do, então, ex-professor. Tentou se relacionar com outros homens, para tentar esquecê-lo, mas, ao contar para ele, ele disse que não tinha importância, porque o amor dele por ela era maior que essas pequenezas. Ela desaparecia, não respondia suas cartas, mas bastava um convite, uma promessa, uma declaração de amor dele para ela se derreter de volta.

Os dois continuaram a se encontrar até o fim da década de 1920. Foi só com o envolvimento de Heidegger com o partido nacional-socialista, no início da década seguinte, que eles se afastaram. Só voltam a se reencontrar em 1949, quando Heidegger admite o quanto ela tinha sido importante para a sua vida, e toda a sua vergonha de como se comportou no passado. Eles iriam se encontrar, de tempos em tempos, até o fim da vida, numa relação forte de lealdade. Apesar de todo o passado de privações, Hannah Arendt para sempre iria defender Heidegger, mesmo de seus momentos mais indefensáveis.

Ela só vai se permitir discordar publicamente do seu ex-professor em seu último livro, "Life of the mind", aquele cuja terceira parte ela estava escrevendo no momento em que morreu, quando Heidegger já tinha 85 anos de vida. Para Celso Lafer, ex-aluno de Hannah Arendt e sempre chamado para escrever prefácios e posfácios de suas obras, Arendt discordava frontalmente do chamado segundo Heidegger, "cuja rejeição da vontade, no entender de Hannah Arendt, o impedia de perceber as possibilidade da política e da ação" dois dos seus temas preferidos [in "Homens em tempos sombrios", Arendt H., SP, 2010, p. 297].

Certamente a melhor maneira de demonstrar a complementariedade entre os dois é exemplificar o quanto Hannah Arendt compreendeu Heidegger - melhor até que ele próprio, defende Safranski. Além disso, o biógrafo acrescenta, ela o complementou, trouxe uma realidade que lhe faltava e contribuiu para a relevância da obra do alemão, com a sua chancela.
To his "running ahead into death' she will reply with a philosophy of being born; to his existential solipsism of Jemeinigkeit [each-one-ness] she will reply with a philosophy of plurality; to his critique of Verfallenheit [helpless addition] to the world of Man [One / They] she will reply with her amor mundi. To Heidegger's Lichtung [clearing] she will respond by philophically ennobling the 'public'. Only thus does Heidegger's philosophy become an entity - but he will not notice it. He will not read Arent's books, or only very cursorily, and what he does read will offend him. [Safranski, p. 140.]
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Para saber mais sobre a relação dos dois, o próprio Safranski cita o livro da professora Elzbieta Ettinger, do MIT, que também biografou Rosa Luxemburgo.

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